Política

Coronavírus: como o Brasil virou exemplo negativo no mundo

Relembre frases de Jair Bolsonaro e os desmandos no Ministério da Saúde que trouxeram o Brasil até os 2 milhões de casos de coronavírus

O presidente da República, Jair Bolsonaro. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
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O Brasil bateu a marca dos dois milhões de brasileiros infectados pelo coronavírus nesta quinta-feira 16, uma quantidade que não muda a posição do país no ranking global da pandemia – ainda é o 2º com mais mortes e mais casos, atrás apenas dos Estados Unidos -, mas que deixa um rastro de questionamentos inevitáveis: como chegamos até aqui?

De um Ministério da Saúde desestruturado à falta de uma política de testes e de identificação do coronavírus, que mais mata a população negra e os indígenas em proporção, CartaCapital fez uma seleção de argumentos que relembram o cenário do coronavírus no Brasil.

Sem testes, sem dimensões reais da pandemia

Políticas de testagem massiva da população para identificar focos de contágio do coronavírus – adotadas nos países com maior êxito no combate à crise – não foram implementadas no País.

Com isso, o número dos dois milhões de infectados pode ser diversas vezes maior do que o indicado. A última pesquisa EPICOVID19-BR, realizada pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), aponta aproximadamente oito milhões de casos confirmados de coronavírus no Brasil.

Apesar de todos os ministros da Saúde até o momento terem prometido novas políticas de testagem, não há engajamento para mandar kits completos para os estados, segundo denunciou uma matéria do jornal O Estado de S. Paulo.

Com isso, de acordo com o último boletim epidemiológico divulgado, a média diária no Brasil circula em torno de 14,5 mil testes diários realizados nos laboratórios públicos centrais (Lacens) – ou apenas 20,8% do que era estimado.

Efeito “gripezinha” de Bolsonaro no enfrentamento à covid-19

O presidente Jair Bolsonaro foi destaque mundial devido à forma como tratou a pandemia – e pelos piores motivos.

No começo de março, o presidente afirmou que havia “superdimensionamento” da crise, que ainda se alastrava da China para os países europeus, então epicentros da pandemia. As medidas de quarentena, para ele, eram “histeria”. A fala foi anunciada em rede nacional e gerou incredulidade. O Brasil registrava, naquela época, 2201 casos e 46 mortes pela covid-19.

A ideia de que o vírus “não é tudo o que dizem” prevaleceu nas falas do presidente. Durante discurso em Miami, nos Estados Unidos, também declarou que a proliferação do vírus era “muito mais fantasia da grande mídia”. Dessa viagem, porém, ao menos 22 pessoas voltaram contaminadas.

Com o aceleramento do número de casos no Brasil e no mundo, no entanto, os argumentos passaram a mudar de forma. O isolamento social, defendido por especialistas como a única maneira de impedir que os sistemas de saúde não colapsassem – como aconteceu em Manaus (AM) e quase ocorreu no Rio de Janeiro -, passou a ser defendido apenas de maneira “vertical”.

 

A falta de evidências de que isolar apenas idosos funcionaria para conter a propagação do vírus não intimidou o presidente de, com isso, mobilizar seu capital político contra os governadores e prefeitos.

A pandemia, no entanto, não deu tréguas em inquéritos que incomodaram Bolsonaro, deputados da base aliada e seus filhos.

Presidente Jair Bolsonaro em almoço na casa do embaixador americano no Brasil, 2 dias antes da confirmação de que estava com coronavírus. (Foto: PR/Flickr)

A elevação de tensão criada desde o inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal (STF) à prisão do ex-amigo da família Fabrício Queiroz fez com que o presidente causasse mais aglomerações, manifestações antidemocráticas e demonstrações de desprezo às vítimas do coronavírus – como o “E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?” e a afirmação de que não era coveiro.

O teste positivo de Bolsonaro para o coronavírus chegou apenas no último dia 07 de julho, depois de o presidente ter se reunido em almoços e reuniões sem máscara de proteção. Nem o diagnóstico da doença mais trágica em toda a história recente fez com que o presidente interrompesse o ciclo de desinformação que consolidou.

A novela cloroquina

A utilização da cloroquina ou da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19 sofreu idas e vindas no mundo acadêmico, mas a conclusão final, na falta de estudos sérios que identifiquem o medicamento como seguro, é pela não utilização em pacientes com coronavírus.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou, no começo de julho, que iria interromper com efeito imediato o estudo com hidroxicloroquina e lopinavir/ritonavir

O comitê responsável analisou evidências de todos os ensaios apresentados na Cúpula da OMS entre 1 e 2 de julho e de um estudo provisório do grupo.

Concluiu-se que o uso da hidroxicloroquina e o lopinavir / ritonavir “produzem pouca ou nenhuma redução na mortalidade de pacientes com COVID-19 hospitalizados quando comparados ao padrão de atendimento”.

O medicamento, que é comumente utilizado em casos de malária, tornou-se motivo para a demissão de ministros de Saúde [veja mais abaixo], produção e distribuição massiva do remédio para os sistemas de saúde e até propaganda de Bolsonaro nas redes sociais a partir do momento que o presidente testou positivo para covid-19.

Militares no Ministério da Saúde

Na quarta-feira 15, o Brasil completou dois meses sem um ministro da Saúde à frente da pasta. Por mais que o momento não pudesse ser mais dramático para a ausência de um quadro técnico especializado em políticas de saúde pública, o comando do governo federal na pandemia se viu tomado por militares.

O atual ministro interino da pasta, general Eduardo Pazuello, nomeou ao menos 25 nomes de militares para cargos na área da Saúde, apontou um levantamento feito pelo jornal O Estado de Minas. Logo nas primeiras semanas, nove posições de gestão de recursos e de tomada de decisões foram para as mãos de tenentes, coronéis e generais.

Flexibilização precoce: o que o futuro nos guarda?

Desde meados de junho, alguns estados e municípios passaram a flexibilizar as medidas de quarentena em suas regiões, permitindo que comércios, shoppings e outros serviços abrissem as portas para a população – na época, alguns estados não forneceram dados completos sobre a ocupação de leitos de UTI, e seguiram lógicas distantes das recomendadas por infectologistas, que pregavam reabertura apenas em um momento de regresso do número de casos e mortes.

Cerca de 5 milhões de brasileiros já voltaram às atividades, diz o IBGE, sendo que o cenário do desemprego e do fechamento de empresas ainda é um drama sem a dimensão real dos números finais.

Embora o País apresente uma redução da velocidade do crescimento de sua curva de contágio, o Brasil ainda não alcançou o platô, nem muito menos caminha para um movimento descendente, opinou o médico Gonzalo Vecina em entrevista a CartaCapital. Com a marca dos dois milhões de casos, a fala do professor ainda parece ecoar sobre o que deve continuar a acontecer no Brasil: “É um erro assumir a reabertura, um erro grave, que vai custar a vida de um monte de brasileiros”.

Descaso: As frases de Bolsonaro durante a pandemia

Em muitos momentos da pandemia, o presidente fez declarações infelizes sobre o número de mortes e casos no Brasil. CartaCapital selecionou algumas delas.

“Superdimensionado”
Em 9 de março, em evento durante visita aos EUA, o presidente disse que o “poder destruidor” do coronavírus estava sendo “superdimensionado”. Até então, a epidemia havia matado mais de 3 mil pessoas no mundo. Após o retorno ao Brasil, mais de 20 membros de sua comitiva testaram positivo para covid-19.

“Gripezinha” e “histórico de atleta”
Ao menos duas vezes, Bolsonaro se referiu à covid-19 como “gripezinha”. Na primeira, em 24 de março, em pronunciamento em rede nacional, ele afirmou, que, por ter “histórico de atleta”, “nada sentiria” se contraísse o novo coronavírus ou teria no máximo uma “gripezinha ou resfriadinho”. Dias depois, disse: “Para 90% da população, é gripezinha ou nada.”

“Europa vai ser mais atingida que nós”
A declaração foi dada em 15 de março. Precisamente, ele afirmou: “A população da Europa é mais velha do que a nossa. Então mais gente vai ser atingida pelo vírus do que nós.” Segundo a OMS, grupos de risco, como idosos, têm a mesma chance de contrair a doença que jovens. A diferença está na gravidade dos sintomas. O Brasil é hoje o segundo país mais atingido pela pandemia.

“Todos nós vamos morrer um dia”
Após visitar o comércio em Brasília, contrariando recomendações deu seu próprio Ministério da Saúde e da OMS, Bolsonaro disse, em 29 de março, que era necessário enfrentar o vírus “como homem”. “O emprego é essencial, essa é a realidade. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós vamos morrer um dia.”

“A hidroxicloroquina tá dando certo”
Repetidamente, Bolsonaro defendeu a cloroquina para o tratamento de covid-19. Em 26 de março, quando disse que o medicamento para malária “está dando certo”, já não havia qualquer embasamento científico para defender a substância. Em junho, a OMS interrompeu testes com a hidroxicloroquina, após evidências apontarem que o fármaco não reduz a mortalidade em pacientes internados com a doença.

“Vírus está indo embora”
Em 10 de abril, o Brasil ultrapassou a marca de mil mortos por coronavírus. No mundo, já eram 100 mil óbitos. Dois dias depois, Bolsonaro afirmou que “parece que está começando a ir embora essa questão do vírus”. O Brasil se tornaria, meses depois, um epicentro global da pandemia, com dezenas de milhares de mortos.

“Eu não sou coveiro”
Assim o presidente reagiu, em frente ao Planalto, quando um jornalista formulava uma pergunta sobre os números da covid-19 no Brasil, que já registrava mais de 2 mil mortes e 40 mil casos. “Ô, ô, ô, cara. Quem fala de… eu não sou coveiro, tá?”, afirmou Bolsonaro em 20 de abril.

“E daí?”
Com mais de 5 mil mortes, o Brasil havia acabado de passar a China em número de óbitos. Era 28 de abril e Bolsonaro foi perguntado sobre os números. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre…”

“Vou fazer um churrasco”
O Brasil já tinha mais de 140 mil infectados e 9 mil mortes. No dia 7 de maio, Bolsonaro anunciou que faria uma festa. “Estou cometendo um crime. Vou fazer um churrasco no sábado aqui em casa. Vamos bater um papo, quem sabe uma peladinha…”. Dias depois, voltou atrás, dizendo que a notícia era “fake”.

“Lockdown não dá certo”
Bolsonaro subestimou com frequência as recomendações para evitar o contágio por covid-19. Visitou o comércio, restaurantes, lanchonetes, foi a protestos pró-governo, tirou selfies com apoiadores. Em 14 de maio, disse: “Eu não falo inglês, como é? Lockdown. Não dá certo, e não deu certo em lugar algum do mundo.”

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