Cultura

Barrar homenagens a negros foi como se Bolsonaro falasse ‘parem de lutar’, diz presidente da Palmares

Em entrevista exclusiva à CartaCapital, João Jorge detalhou o esforço de retomada no primeiro mês da sua gestão na fundação

O presidente da Fundação Cultural Palmares, João Jorge Rodrigues, visita o Cais do Valongo com representantes do movimento negro —Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Após vivenciar uma crise institucional durante os anos da gestão de Sérgio Camargo, que protagonizou casos de assédio moral a funcionários e fez contundentes tentativas de esvaziar a missão da entidade, a Fundação Palmares completa o primeiro mês em nova gestão, agora sob o comando de João Jorge Rodrigues, ex-líder do Olodum e mestre em direito pela Universidade de Brasília.

Em entrevista a CartaCapital, o novo executivo da fundação detalhou como é o trabalho de resgate de memória e acervo da entidade. Em um mês no comando da Palmares, João Jorge já reverteu duas portarias impostas pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). A primeira delas, impedia homenagens a negros vivos nos canais da fundação. Já a segunda, dificultava a auto identificação de quilombolas.

A Palmares está voltando para o lugar devido, o lugar da luta, da representatividade, do empenho em defender os direitos de igualdade ao povo afro-brasileiro

Para ele, as medidas adotadas por Camargo e Bolsonaro traduziram, na prática, um dos maiores exemplos da perseguição da extrema-direita ao movimento negro brasileiro e suas lutas. “Foi como um recado: ‘olha população negra, não luta não, para aí, não vai atrás da Justiça’”, destacou. “Então teve um impacto muito grande”.

Na conversa, João Jorge explica, ainda, qual futuro vislumbra para a Palmares após seu primeiro mês de gestão e como vem sendo a atuação do governo Lula (PT) para recompor o afetado orçamento da entidade. Durante a entrevista, ele também não foge dos grandes temas atuais, como o recorte racial na onda de ataques em escolas do País.

“A Palmares vai cooperar para que se tenha uma cultura de paz nas escolas, nos espaços, porque essa cultura da violência atinge quase sempre a população negra”, disse. “Veja também o caso das balas perdidas, quase sempre a população negra é a atingida”.

Confira os principais trechos da entrevista:

CartaCapital: Como tem sido esse processo de resgate da Fundação Palmares neste primeiro mês e quais são as principais metas e objetivos da sua gestão? 

João Jorge: Agora no dia 21 de abril faz um mês que eu assumi a Fundação Palmares e, neste período, tratamos de algumas coisas bacanas. A volta da credibilidade da Palmares em todo o País em relação às políticas da fundação. 

Nós revogamos, por exemplo, duas medidas extremamente hostis à população negra. A primeira declarava que não podia ter personalidades vivas nas homenagens do site da Palmares e a outra era uma portaria que dizia que a população da comunidade quilombola não podia se auto identificar

Essas duas portarias foram revogadas e traduziu-se em um grande aplauso na sociedade. A primeira porque ela traz de volta a personalidade da comunidade negra para fazer parte da Palmares e a outra porque abre caminho para a comunidade quilombola não ter impedimentos para se auto identificar. 

Aconteceu também a volta da bandeira do Xangô, da Justiça, como símbolo da paz. Há um tempo, Palmares recebeu muitos visitantes e voltamos também a alguns lugares importantes como o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. 

CC: Duas ações da última gestão foram bastante simbólicas. A primeira foi a mudança da logo da fundação para uma arte com alusão à bandeira do Brasil e depois a tentativa de mudar o nome da fundação para Princesa Isabel. Quais são os danos causados pela extrema-direita às missões da fundação? 

JJ: A direita vê a cultura como inimigo. Um inimigo de seu poder, da sua direção. Ela se voltou contra a cultura popular negra — contra a cultura do carnaval — de tal forma que nós podemos dizer que, entre as organizações da República, a Fundação Palmares foi a mais atacada. Porque ela foi atacada justamente por esse fazer cultural e no objetivo de destruir isso. Há também a questão da Palmares não estar mais ligada ao movimento negro, a concepção negra em si, mas sim a símbolos que a própria comunidade negra rejeitou. 

Um desses casos é a tentativa de dar o nome da princesa Isabel à fundação, que leva o nome do Zumbi dos Quilombos dos Palmares. O Quilombo sobreviveu depois de quase trezentos anos de sua morte e, nestes trezentos anos, ele basicamente se reproduz como uma força grande do quilombismo. Então, a questão de Palmares, do quilombismo e da princesa Isabel não são trocas justas. A princesa Isabel não fez um movimento de dignidade da população negra, pelo contrário, ela promoveu a abolição da escravatura sem [observar] consequências sociais, cujos efeitos a população negra sofre até hoje. 

CC: No início deste mês, o senhor assinou a revogação da portaria que impedia a homenagem a personalidades negras vivas. Como recebeu a notícia da suspensão da lista de homenageados e, hoje, qual o significado de poder reverter essa ação? 

JJ: Eu fiquei incrédulo porque essas personalidades, Martinho da Vila, Leci Brandão, Zezé Motta, Pelé — que ainda era vivo, estavam dando sua contribuição acima do normal para qualquer pessoa. Então o site da Palmares reconhecia essas personalidades como alguém interessante para a história brasileira, para a cultura negra.

A revogação desses nomes era um ato desnecessário, feito principalmente por um gestor que deveria ter compromisso com a história de Palmares, com sua história pessoal, de sua família, do seu povo, da sua identidade. 

Foi como se [a antiga gestão] desse um recado: ‘Olha população negra, não luta não, para aí, não vai atrás da justiça’, então teve um impacto muito grande essa portaria. Para revogar ela, a gente tem que ter coragem de dizer basta, não pode continuar assim.

E mais, agora no seu lugar estarão os heróis, os líderes da pátria, os homens e mulheres que fizeram coisas bacanas para a pátria. A revogação não é um ato contra a gestão anterior, ela é um ato a favor da população negra, a favor de todos nós.

CC: No ato de revogação da portaria também foi instituído um grupo de trabalho. Como tem sido as reuniões deste grupo, é previsto ou já foram incluídas novas personalidades negras na lista de homenageados da Fundação?

JJ: Esse grupo de trabalho vai escolher novos nomes, vai manter nomes que já foram retirados e vai pesquisar mais ainda para que outras personalidades possam estar incluídas nessa lista. A Esperança Garcia, o Januário Garcia, o próprio Pelé [estão entre os novos homenageados]. Temos de ter muito mais mulheres e homens de todos os lugares. 

O GT vai trabalhar com a tese central de que as personalidades são importantes para a Fundação Palmares. É um grupo pequeno, interno, que visa dizer para a sociedade, com a historiografia, como que a Fundação encontra pessoas-chave de diferentes áreas para homenageá-las pelo que elas fizeram. 

CC: A gestão anterior da fundação também promoveu uma ‘caça’ ao acervo de obras. Tentou doar parte dos livros mantidos pela Palmares e separou um ‘cantinho da vergonha’ para obras consideradas comunistas. Em junho de 2021, CartaCapital também noticiou uma série de irregularidades no armazenamento deste acervo. Como está o acervo de obras da fundação?

JJ: Na realidade houve uma ação popular para impedir que a biblioteca fosse desconstruída e encontramos aqui tudo isso em uma situação deplorável. O que nós estamos fazendo no caso do acervo é recuperá-lo e prepará-lo para um processo de digitalização que virá agora. Vamos preservá-lo também no formato digital. 

Mas vou dar um exemplo simples, os quadros dos presidentes da Fundação foram encontrados com os vidros quebrados, trouxemos eles para o gabinete. Hoje eles estão pendurados na parede em uma ordem cronológica. São várias situações simbólicas que essa guerra cultural contra a Fundação Palmares, contra o Ministério da Cultura, contra a cultura do povo brasileiro. 

Mas, estamos em uma fase de reconstrução da Palmares e ao mesmo tempo fazendo avançar em algumas áreas. Como no direitos das comunidades quilombolas, das mulheres negras, do ponto de vista de produtoras culturais, no relacionamento com o rap, com o funk, com os ritmos novos das periferias. Estamos também na busca por novos recursos para uma Palmares mais dinâmica e mais federativa, que ature o Norte, o Centro-Oeste, o Sul. 

E assim, como alguém imagina bloquear livros? Como alguém imagina tirar nomes de pessoas? Como alguém imagina diminuir a situação dos funcionários? Houve muito assédio, os funcionários entraram na Justiça contra esses assédios. Diminuiu-se a capacidade financeira dessa organização, então agora é hora de superar tudo isso com energia que vai dar resposta àqueles beneficiários da Palmares, mais de 100 milhões de afrobrasileiros. Destruir livros não ajudaria em nada os 100 milhões de brasileiros. Tirar o nome da lista de personalidades não ajudaria em nada.

O que ajuda os 100 milhões de brasileiros é a Palmares fazer novos editais, apoiar financeiramente as comunidades, dar o seu talento à certidões e titulação dos quilombos e, ao mesmo tempo, ter uma linha de cobrança internacional grande, poderosa, que permita a Palmares conectar com países africanos, com Caribe, com Estados Unidos de uma forma positiva.  

CC: Na última semana, tivemos um caso de um entregador agredido no Rio de Janeiro, que reacendeu uma discussão sobre as consequências do racismo estrutural. Por que casos como este seguem se repetindo? 

JJ: Toda legislação brasileira antirracista se esgota em uma necessidade de eficácia. Há a legislação e os casos concretos, mas nem sempre isso termina por se concluir em uma ação que beneficie aquele que foi agredido.

E é isso que aconteceu no Rio de Janeiro e tem acontecido nacionalmente. Nós temos uma legislação bastante eficaz, bastante correta, mas o resultado disso não é satisfatório. O que precisa ser feito é divulgar mais os casos de racismo e fazer com que esse racismo institucional consiga ter uma ineficácia em relação às leis. Há também o resultado das análises dos juristas, que muitas das vezes entendem que o caso não é tão grave.

Em um primeiro momento, no caso do Rio de Janeiro, os setores que foram ouvidos disseram que se tratava de uma injúria e não de uma injuria racial. Então, às vezes a pessoa não sabe que está sendo discriminada. Houve um caso recente de uma professora que recebeu um saco de bombril no dia dos professores, mas na hora não considerou que aquilo era uma ofensa, considerou que era uma brincadeira.  

Nós temos um histórico de racismo institucional desde 1549, que perpassa por várias coisas, o mito da discriminação racial — que no Brasil não tem. Temos a educação que reforça estereótipos, a comunicação social, o que você vê nos outdoors não é a imagem da população negra em várias campanhas. 

E temos a Fundação Palmares, criada desde 22 de agosto de 1988 para atuar em outro plano, no plano da identidade, da auto estima, do orgulho e para educar o Brasil sobre a herança africana nesse continente.

CC: O atentado na escola de SP, que vitimou uma professora, foi feito por um aluno que já tinha histórico de ataques racistas em sala de aula. Nos outros casos de violência em escolas, os agressores usavam máscaras com símbolos nazistas. No que a fundação pode contribuir nessa discussão? 

JJ: A Fundação Palmares vê tudo isso com grande preocupação. Esse ambiente de ódio que existe no Brasil há bastante tempo, primeiro contra a população indígena, depois contra a população africana e nos últimos anos se espalhou no Parlamento, em autoridades fazendo de tudo para criar um ambiente de ódio, terminou neste retrato de chegada às escolas. 

Mas nós não compreendemos que podemos ter uma sociedade armada, violenta e que esse ambiente fique fora das escolas, das famílias. Por outro lado, as escolas se seguraram no princípio de paz, compreensão e companheirismo, mesmo na adversidade total.

E a Palmares vai cooperar para que se tenha uma cultura de paz nas escolas, nos espaços, porque essa cultura da violência atinge quase sempre a população negra. Veja o caso das balas perdidas, quase sempre a população negra é a maioria, é uma criança, um trabalhador, alguém que não tinha nenhuma culpa que é baleado, agredido.

Por outro lado, mesmo que tivesse envolvimento, não há justificativa para que vá se matando como se mata no brasil e isso contaminou boa parte da nossa juventude através das redes sociais com cada vez menos idade. Como aconteceu agora em Blumenau, quando um homem entra e esfaqueia crianças totalmente indefesas. Não há nada que possa justificar esses atos, então violência escolar, programações que só tratam de violência, são um indutor para que isso aconteça.

Mas o Brasil de 2023 tem de volta a Fundação Palmares ativa, o Ministério da Cultura ativo com Margareth Menezes como ministra, mulher do nordeste, negra, cantora uma mulher do campo popular, que tem um ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos, a ministra Anielle Franco, o presidente Lula em seu terceiro mandato. Nós todos temos que cooperar para um ambiente de paz, de conciliação.

Assista à entrevista:

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