Sociedade

Caso Genivaldo: Um ano depois, família de homem morto pela PRF ainda luta por Justiça

Caso aconteceu em Umbaúba, a 100 km de Aracaju, no Sergipe. Após recomendação da Procuradoria, PRF anuncia nesta quinta-feira instalação de câmeras nos uniformes dos policiais

Mauro Pimentel/Folhapress
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Um ano após a abordagem violenta que resultou na morte de Genivaldo Santos, no interior de Sergipe, familiares ainda buscam na Justiça a condenação dos agentes da Polícia Rodoviária Federal pelos minutos de tortura impostos ao homem na viatura da corporação. Na casa de Maria Fabiana dos Santos, com quem ele era casado há 17 anos, o choro tornou-se companheiro permanente e a ausência é sentida toda vez que o filho do casal, de 8 anos, rememora os momentos com o pai.

“Até hoje eu nem acredito que aconteceu aquela barbaridade. A dor é muito grande, cada vez que mexe, a gente volta lá [choro]… Foi uma coisa terrível”, diz a CartaCapital. “A gente fica sem respostas e sem saber porque aqueles policiais tomaram essa atitude de uma só vez. Eu nunca vi ou ouvi falar de abordagem tão truculenta como a que aconteceu com meu marido. Uma pessoa que permaneceu calma, sem agressividade e foi tratada daquela forma”.

O caso aconteceu no dia 25 de maio de 2022. Naquele dia, Genivaldo, um homem negro de 38 anos, acordou para cumprir uma rotina com a qual já havia se habituado desde que passou a morar em Umbaúba, cidade de 22 mil habitantes distante quase 100 quilômetros de Aracaju. Vestiu uma camiseta vermelha-bordô e uma bermuda jeans na cor azul. A escuridão que cobria o céu indicava para um dia nublado.

Antes de levar o filho Enzo à escola, conferiu os bolsos para certificar-se que não estava esquecendo a cartela de Quetiapina 25mg, medicação prescrita quando foi diagnosticado com esquizofrenia, aos 18 anos. Antes de buscá-lo, ao meio-dia, foi à casa da irmã, Damarise, localizada em uma das vias centrais da cidade. Lá, Genivaldo pediu emprestada uma Honda Biz 125 vermelha estacionada em frente à residência e disse que logo a devolveria. A promessa, porém, não foi cumprida.

No caminho de volta, agentes da PRF que patrulhavam as redondezas abordaram Genivaldo. Às margens da BR-101, uma rodovia importante para o escoamento da produção de estados do Nordeste para o resto do país, ele foi derrubado no chão, teve as mãos algemadas e os pés amarrados com fitas. Também foi alvo de xingamentos, rasteira e chutes. Depois, foi imobilizado por dois agentes que colocaram os joelhos sobre seu tórax.

No boletim de ocorrência, os policiais Kleber Nascimento Freitas, Paulo Rodolpho Lima Nascimento e William de Barros Noia afirmaram que o sergipano foi parado por não usar capacete. Relatam, ainda, que ele havia se recusado a levantar a camisa e colocar as mãos na cabeça – o que, segundo o documento, teria aumentado “o nível de suspeita da equipe”.

As imagens do episódio, porém, atestam que não houve reação à abordagem.

Ainda assim, Genivaldo ainda foi introduzido no porta-malas da viatura da PRF e obrigado a inalar gás lacrimogêneo, prática semelhante aos campos de concentração da Alemanha Nazista. 

Nas gravações da cena, é possível ver fumaça escapando da viatura enquanto Genivaldo grita e tenta escapar do compartimento. Nem mesmo os gritos de “vai matar o cara” e os celulares apontados para aquela sessão de tortura foram capazes de impedir a ação.

Os avisos de que o procedimento poderia ser fatal foram recebidos com deboche pelos policiais, conforme relembra sua irmã. 

Um dos agentes dizia: ‘ele está melhor do que nós, lá dentro é ventilado’. E meu irmão lá dentro, com a cabeça baixa, todo pálido 

No boletim de ocorrência, os três agentes chegaram a admitir o uso de gás, mas atribuíram a morte a um suposto mal súbito: “Por todas as circunstâncias, diante dos delitos de desobediência e resistência, após ter sido empregado legitimamente o uso diferenciado da força, tem-se por ocorrida uma fatalidade, desvinculada da ação policial legítima”, afirmou a equipe. 

De acordo com o laudo do Instituto Médico Legal, a principal causa da morte foi asfixia mecânica. O órgão, no entanto, não soube definir o que provocou a insuficiência respiratória. “Foi identificado de forma preliminar que a vítima teve como causa mortis insuficiência aguda secundária a asfixia. A asfixia mecânica é quando ocorre alguma obstrução ao fluxo de ar entre o meio externo e os pulmões”, disse o instituto. 

Os agentes Kleber Nascimento, Paulo Rodolpho e William Noia estão detidos no Presídio Militar de Sergipe, onde aguardam julgamento. Eles vão a júri popular pelos crimes de tortura-castigo e homicídio triplamente qualificado que, somadas as penas, podem chegar a quase 40 anos de detenção. 

Recentemente, um dos envolvidos no caso se manifestou pela primeira vez. Em uma carta, Paulo Rodolpho negou ter agido intencionalmente para matar Genivaldo e disse ter usado a força para “conter a agressividade e preservar a integridade” dos envolvidos. Defendeu, ainda, que o caso só ganhou repercussão pelo momento político no qual o País estava inserido e criticou a ‘bolsonarização’ das polícias, em referência ao apoio nos quartéis ao presidente Jair Bolsonaro (PL).

Genivaldo Santos foi introduzido no porta malas da viatura da PRF e obrigado a inalar gás lacrimogênio. O caso aconteceu em maio de 2022 em Umbaúba, interior de Sergipe

Passado um ano desde o episódio, Enzo ainda não sabe que seu pai foi torturado. Segundo a mãe, a criança acredita que ele foi alvejado por tiros, mas logo terá contato com as gravações vistas com perplexidade em meio à repercussão internacional.

“A gente fica na ansiedade de condenação até para que eu, em particular, possa dar uma resposta ao meu filho”, conta Maria Fabiana. Para ela, o racismo foi determinante na abordagem truculenta. “O fato do meu marido ser negro, não estar bem vestido, não aparentar ter condições [financeiras] contribuiu.”

Agora, a viúva tenta seguir em frente enquanto aguarda um consenso sobre a indenização a ser paga pela União. “Esse crime desestruturou toda minha família, toda minha vida, [sou um] ser humano que está meio sem rumo. Eu voltei a estudar agora porque tenho um objetivo lá na frente maior que este caso. Mas isso destruiu de forma muito brusca as nossas vidas. E é justamente por isso que vamos em busca de justiça”, afirma.

O caso Genivaldo é apenas uma entre várias tragédias que escancaram a crise da violência policial no Brasil.

A taxa de mortes por letalidade policial dos últimos dez anos atinge a casa dos 43 mil e representam mais de 12% em relação ao total de mortes violentas do país.

No Sergipe, 9 em cada 100 mil habitantes são alvos da letalidade da polícia no estado, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgados no ano passado. O estado só fica atrás do Amapá, que possui a polícia mais violenta do Brasil – patamar quase sete vezes maior que a média nacional.

A ‘pele-alvo’ é a negra

Cerca de 74% das mortes ocasionadas pela intervenção policial tem um padrão específico: são, em sua maioria, adolescentes da periferia cujas idades variam entre 18 e 29 anos. O número é 5,8% maior que o registrado em 2021 – isso porque, ao passo que o percentual de vítimas brancas caiu, o de pessoas negras aumentou significativamente.

Esses dados, contudo, podem esconder um cenário ainda mais preocupante, porque há risco de subnotificação pela ausência dos indicativos de raça, cor e etnia no preenchimento dos boletins de ocorrência, segundo os pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

De acordo com Vera Lúcia Vieira, do Observatório da Violência Policial da PUC-SP, a estrutura que sustenta os padrões e métodos de abordagem das polícias no Brasil é fincada no racismo. Na maioria das vezes, diz, os agentes tendem a considerar “suspeitos” homens negros e a prisão se dá pela cor, pela roupa ou pela forma como essas pessoas andam. 

“É uma coisa absurda. Os casos, que não são isolados, são de adolescentes presos por usar um tênis de marca. Um tênis que é caro para aquela aparência que ele tem. Nós temos inúmeros casos desse tipo”, afirma. “Mas o buraco é mais embaixo: as autoridades, quando assumem esses cargos de formular políticas públicas, perpetuam essa posição de pensar a periferia e territórios vulneráveis como potenciais celeiros de criminosos”. 

Existe, no entanto, uma mudança no entendimento sobre o racismo policial. Como mostrou CartaCapital, ministros do Supremo Tribunal Federal passaram a discutir a legalidade das abordagens quando a cor da pele passa a ser determinante. Na mira dos magistrados está um caso específico: a ação penal movida contra um homem condenado por tráfico de drogas pelo porte de 1,5 grama de cocaína. 

Trata-se de Francisco Cicero dos Santos Júnior. Ele caminhava em uma calçada no dia 30 de maio de 2020, às 11 horas da manhã, em Bauru, cidade do interior paulista. Uma viatura da polícia de SP, que passava pelo local a caminho de uma ocorrência, avistou Santos Júnior e os policiais desconfiaram que seria um vendedor de drogas – ele tentou fugir, mas foi alçado ao chão pelos agentes, que encontraram o entorpecente em um dos seus bolsos. No auto da prisão em flagrante, os PMs relataram tê-lo abordado apenas por ser negro, “que tinham visto um indivíduo ‘negro’ em uma cena que parecia de venda de droga”.

Em outra frente de atuação, o Executivo também tenta reduzir os índices de letalidade policial. Após recomendação da Procuradoria da República em Sergipe, a PRF iniciou os estudos para a instalação de câmeras corporais nos uniformes de agentes da corporação. A proposta é construída pela Secretaria de Acesso à Justiça e pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, que também ouviu especialistas no assunto antes de finalizar as discussões no grupo de trabalho. 

Nesta quinta-feira 25, exatos 12 meses após a abordagem a Genivaldo, o diretor-geral da PRF, Antônio Fernando Oliveira, anuncia a instalação dos equipamentos. Em outras oportunidades, o DG já manifestou ser favorável ao uso das câmeras nos uniformes.

“Trabalhei em estradas por mais de 10 anos e se eu tivesse trabalhando com uma câmera corporal eu me sentiria mais seguro. A câmera é um um instrumento de proteção da atividade policial”, declarou em entrevista ao jornal Folha de São Paulo publicada no dia 20 de fevereiro.

A ação, contudo, reforça a necessidade de pensar novas formas de desenvolver a atividade policial, hoje a face mais letal do racismo no Brasil. É preciso que o sistema de justiça e segurança pública repense e transforme o modus operandi que tanto mata jovens negros e criminaliza territórios vulneráveis. 

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