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À espera de indicados de Lula, o Supremo fustiga o racismo policial e tem brecha para decidir sobre o aborto

Relatores. Rosa Weber deve pautar o aborto antes de outubro. Edson Fachin deu voz ao movimento negro em caso de racismo policial - Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR
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O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, recebeu certa vez em seu gabinete, no governo Bolsonaro, integrantes da cúpula do departamento de jornalismo da Rede Globo. O então presidente ameaçava não renovar a concessão pública. Os globais queriam saber como o Judiciário lidaria com ele. “A culpa é de vocês”, reagiu Lewandowski, sobre a chegada do ex-capitão ao poder. A emissora havia apoiado a Lava Jato, responsável pela exclusão de Lula da eleição de 2018 e pela criminalização da política, e deveria, na visão do magistrado, fazer um mea-culpa, assim como a mídia cobra autopenitência do PT por “mensalões” e que tais. Consta que seus interlocutores saíram da conversa aturdidos.

Lewandowski está em contagem regressiva para deixar a Corte. A partir de 10 de março, exatos dois meses antes de pendurar a toga por completar 75 anos, não participará mais dos sorteios que definem o ministro que cuidará de um processo. Caberá a Lula indicar o substituto. Lewandowski gostaria de ser ouvido pelo presidente e tem um nome para a vaga, o jurista baiano Manoel Carlos de ­Almeida Neto, seu ex-auxiliar no comando do STF. Para Lewandowski, o escolhido precisa ter coragem para decidir de acordo com a própria convicção e com a Constituição, sem aceitar pressões. Coragem para peitar a mídia, como a Globo. Ou, quem sabe, para palestrar no MST, como Lewandwoski fez no mês passado.

O nome que Lula indicará é um mistério. “O cenário ainda não está nítido”, diz um colaborador do petista. Segundo esta fonte, o presidente está “escaldado” com o Supremo após tudo o que passou na Lava Jato. Segundo outro colaborador, Lula não se deixará influenciar por certas cabeças jurídicas, como ocorreu nas nomeações feitas em seus governos anteriores. Ele tem experiência de Presidência para saber qual a importância do STF, além de ter podido observá-la de fora do poder na Lava Jato e no impeachment de Dilma Rousseff. Para o líder petista, segundo este colaborador, a sociedade está atenta e não aceitará uma escolha delegada.

Francisco dos Santos Júnior foi preso com 1,5 grama de cocaína. Os PMs admitiram que o abordaram em razão da cor da pele

Independentemente de quem o presidente mandará para lá, o Supremo, Corte com gosto por julgar a favor de patrões e contra trabalhadores, vide a batalha em torno do piso salarial nacional para enfermeiros, parece disposto a adotar uma agenda social lulista. Por exemplo, o combate ao racismo, conforme um julgamento histórico iniciado na quarta-feira 1º, sobre a “cor da pele” em batidas policiais.

Bauru, cidade do interior paulista, 30 de maio de 2020, 11 da manhã. Os PMs Fábio Luís dos Santos e João ­Victor de Almeida estão em uma viatura a caminho de uma ocorrência, quando ­veem um indivíduo, Francisco Cicero dos Santos Júnior, em uma calçada ao lado de um carro. Pela cena, desconfiam que ele vendia droga ao motorista. Ao perceber a chegada deles, Santos Júnior afasta-se do veículo, que parte rapidamente, e joga algo no chão. Os PMs alcançam-no, acham 1,5 grama de cocaína em seus bolsos e o prendem. Seis meses depois, ele foi condenado por tráfico de drogas pela juíza Érica Marcelina Cruz, da 1ª Vara Criminal de Bauru, a 7 anos de prisão. Uma sentença mantida em seguida pela Corte de apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo.

Humilde, Santos Júnior recorreu à terceira instância através da Defensoria Pública. Seus defensores conseguiram uma liminar do Superior Tribunal de Justiça em abril de 2021. O juiz Sebastião Reis Júnior considerou a pena pesada, diante da “ínfima quantidade de droga apreendida” (palavras dele), baixou-a para dois anos e converteu-a em punição alternativa à prisão. Pela Lei 11.343, de 2006, o castigo por tráfico vai de 5 a 15 anos de cadeia. Em setembro de 2021, Reis Júnior levou o caso para quatro colegas decidirem sobre a liminar. No julgamento da 6ª Turma do STJ, comentou: “Em dez anos de tribunal, não me lembro de um processo em que a autoridade policial tenha dito, abertamente, que só fez a abordagem do suspeito em razão de sua cor”.

Perfil. Para Lewandowski, seu substituto precisa ter coragem de seguir a própria convicção, como ele fez ao visitar o MST – Imagem: Sara Sulamita/MST

Os PMs da batida em Bauru haviam declarado, no auto da prisão em flagrante, que o suspeito era “negro”, que tinham visto um indivíduo “negro” em uma cena que parecia de venda de droga. Para Reis Júnior, “a cor da pele foi o fator que primeiramente despertou a atenção do agente de segurança pública, o que não pode ser admitido”. Mais: “Se essa cena ocorresse nos Jardins, os policiais certamente não teriam se aproximado e abordado”. Jardins é uma região com bairros ditos chiques da capital paulista. A demonstração de racismo policial, prosseguiu o magistrado, era motivo para anular as provas contra Santos Júnior (aquele 1,5 grama de cocaína) e inocentá-lo. Seus colegas de turma concordaram com a redução da pena para dois anos, mas não com a absolvição.

O argumento de Reis Júnior foi usado pelos defensores do réu em um habeas corpus pedido ao Supremo. Foi esse caso que a Corte começou a examinar. Nunca o tribunal havia se debruçado sobre o que, no juridiquês, é chamado de “perfilamento racial”. Ou seja, o peso da cor da pele por trás da conduta policial. Conduta que torna “suspeitos” 56% dos brasileiros, a proporção de cidadãos autodeclarados negros e pardos. De cada três pessoas no sistema carcerário, duas são negras, informa o Anuário 2022 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Há dois anos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos divulgou um relatório sobre o Brasil que diz que as políticas de segurança daqui “usam práticas de perfilamento racial que colocam as pessoas afrodescendentes e residentes de bairros periféricos em maior risco de serem detidas e sofrerem tratamentos arbitrários por agentes policiais”.

Edson Fachin, ministro do Supremo que cuida do processo de Santos Júnior, permitiu que no início do julgamento várias entidades antirracistas pudessem opinar e apresentar argumentos como os do parágrafo anterior. A Procuradoria-Geral da República, na voz da “vice-xerife” Lindôra Araújo, foi contra absolver o acusado. “O STF não pode transformar crime de tráfico em racismo”, argumentou Lindôra. “Se entender que é racismo, vai ter de soltar todos os presos de tráfico.”

Rosa Weber pode deixar um voto histórico pela descriminalização do aborto antes de se aposentar

Fachin leria seu voto na tarde da quinta-feira 2, horas após a conclusão desta reportagem. Por tudo o que tem feito no Supremo, era provável que fosse a favor de anular as provas contra Santos Júnior. Se a aposta se confirmasse e cinco, dos outros dez togados supremos, o seguissem, estaria criado um precedente para réus negros reivindicarem tratamento igual. Fachin tem tentado ser uma barreira aos excessos policiais contra negros e pobres, e mostra isso em uma ação movida em 2019, pelo PSB, contra a violência policial em favelas do Rio de Janeiro. Em dezembro passado, ele ordenou ao estado que use câmeras na farda de PMs, como medida inibidora da letalidade policial. Em 16 de fevereiro, houve audiência de conciliação no Supremo sobre a determinação. O Rio tem cerca de 25 mil câmeras, mas não quer usá-las. A polícia não aceita.

O uso de câmeras em fardas policiais foi testado pela primeira vez em São Paulo, em 2020. É um tema que mostra proximidade entre o governo e o Supremo. O ministro da Justiça, Flávio Dino, é a favor. Seu secretário de Acesso à Justiça, Marivaldo de Castro Pereira, diz ter sido “uma decisão histórica” a de Fachin no caso do Rio e que apoiará estados dispostos a empregar tais câmeras. Segundo ele, em breve as três polícias ligadas ao Ministério (a Federal, a Rodoviária Federal e a Força Nacional de Segurança) adotarão a prática. “A câmera colabora para inibir o preconceito racial da polícia e, também, para proteger a vida do policial, pois inibe o comportamento violento de quem é abordado”, afirma. “Quando há uma morte nessas ações policiais, sempre é uma mãe negra chorando (a do PM ou a do abordado).”

Polícia. Pereira celebra o voto de Fachin por câmeras nas fardas – Imagem: Isaac Amorim/MJSP

Na terça-feira 8, o Supremo julgará outro caso em que há alinhamento com o governo. É uma ação de 2013 sobre militares que cometerem crimes contra civis em operações de Garantia da Lei e da Ordem. O tribunal decidirá se esses militares devem ser julgados na Justiça Militar, como é hoje, ou na comum. O julgamento havia começado no plenário virtual do Supremo, aquele que ocorre longe das sessões transmitidas pela TV Justiça, e o placar estava 5 a 2 a favor de ficar tudo como está. O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, conversou com a presidente do Supremo, Rosa Weber, e pediu que o processo fosse decidido no plenário, para que houvesse visibilidade. Ela topou.

Rosa Weber é outra que se aposentará este ano. Será em outubro. Em Brasília, há quem aposte que até lá a juíza colocará em pauta um dos assuntos mais polêmicos na Corte: a descriminalização do aborto. A ação foi movida em 2017 pelo PSOL contra punições previstas no Código Penal para a mulher que se submete à interrupção da gravidez e para quem faz a cirurgia nela. O caso ficou aos cuidados da ministra, que é a favor de descriminalizar, se a cirurgia ocorrer até a 12ª semana de gravidez, parâmetro comum no mundo. Votou assim em 2016, em um ­habeas corpus de umas pessoas acusadas no Rio de terem ajudado mulheres a abortar.

A ministra promoveu, em agosto de 2018, audiências públicas sobre a descriminalização, e a maioria dos participantes (selecionados por ela) era a favor. A ação ficou adormecida no governo Bolsonaro. Ao assumir o comando do tribunal, em setembro de 2022, guardou-a consigo. Quem está à frente da Corte costuma distribuir seus processos aos colegas. Rosa Weber segurou ainda aquele do “orçamento secreto”, e o STF proibiu o mecanismo em dezembro. Uma recente mudança no regimento da Corte limitou a 60 dias o tempo para um ministro manter interrompido um julgamento por pedido de vistas. Se a ministra pautar o aborto até a sua aposentadoria, deixará seu voto na história. O tribunal levaria no máximo dois anos para uma decisão final, na hipótese extrema de todos os demais ministros pedirem vistas. O período de dois anos compreende a presidência de Luís Roberto Barroso, que também é a favor da descriminalização e foi o ideólogo da absolvição, em 2016, daqueles acusados no Rio. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Neoliberal progressista “

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