Justiça

cadastre-se e leia

Invasão premiada

Se prevalecer a tese de Alexandre de Moraes, a União terá de indenizar ruralistas que ocupam terras tradicionalmente indígenas de “boa-fé”

Futuro incerto. Os povos originários acompanham com muita apreensão os desdobramentos do julgamento no STF – Imagem: Nelson Jr./STF
Apoie Siga-nos no

Uma novela que se arrasta há dois anos, o julgamento do marco temporal para a demarcação de terras indígenas foi retomado, na quarta-feira 30, pelo Supremo Tribunal Federal, em meio a uma forte pressão da bancada ruralista, que vem tentando aprovar, no Congresso, um projeto de lei com o mesmo teor. Pela proposta, os povos indígenas só teriam direito aos territórios que ocupavam ou reivindicavam até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Na Corte, o relator da proposta, ministro Edson Fachin, apresentou parecer contrário à tese, a qual classificou como inconstitucional por desconsiderar os direitos indígenas como cláusulas pétreas. O ministro Alexandre de Moraes acompanhou Fachin, mas apresentou uma proposta intermediária, a prever a indenização aos ruralistas.

Até a sessão do dia 30, Kassio Nunes Marques havia sido o único a decidir a favor do marco temporal, voto que ganhou a adesão do ministro André Mendonça, empatando o placar em dois a dois. Ambos foram nomeados por Jair Bolsonaro. A sessão foi suspensa e a votação deve ser retomada na quinta-feira 31, após a conclusão desta reportagem [Nota do editor: Na tarde desta quinta, Zanin votou contra a tese, desempatando o placar.]. Havia uma grande expectativa em relação ao voto do recém-empossado ministro Cristiano­ ­Zanin, indicado pelo presidente Lula, que tem sido alvo de duras críticas por ter votado contra pautas defendidas pelo campo progressista, como a descriminalização da maconha e a equiparação da homotransfobia ao crime de injúria racial.

Até o fechamento desta edição, além de Zanin, faltavam votar os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e a presidente do STF, Rosa Weber. Ela tem dado demonstrações de que votará contra a tese jurídica e assumiu o compromisso com os indígenas de pautar o julgamento antes de se aposentar, em setembro. A tendência é de que o Supremo derrube a tese do marco temporal, mas o inferno mora nos detalhes. O impasse maior é conciliar os direitos dos indígenas com os de proprietários que usaram de “boa-fé” ao adquirir fazendas em territórios tradicionalmente indígenas, como fez questão de distinguir Alexandre de Moraes ao defender uma indenização tanto pelas terras desapropriadas quanto pelas benfeitorias existentes.

A Articulação dos Povos Indígenas, conhecida pela sigla Apib, é radicalmente contra a proposta, afirmando que ela ignora a história da grilagem no Brasil e incentiva mais violência nos territórios. Segundo a entidade, a indenização também pode inviabilizar futuras demarcações. “Se esse voto for acatado pela maioria dos ministros, vai premiar o invasor que recebeu o título lá atrás do Estado brasileiro e vai dificultar ainda mais o processo de demarcação. Hoje, um dos principais gargalos para a demarcação é o pagamento dessas indenizações, uma vez que a União não tem recursos suficientes para pagá-las”, diz Kleber Karipuna, da coordenação da Apib, durante ato em Brasília, poucas horas antes do início do julgamento.

Rafael Modesto, assessor do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, avaliou, em entrevista ao canal de CartaCapital no YouTube, que o marco temporal é uma tese ruralista cujo objetivo é impedir as demarcações. Ele também criticou a proposta de indenizar os proprietários rurais pelas terras, não somente pelas benfeitorias, como ocorre atualmente. “A gente sabe que existiu má-fé, grilagem etc. E, na prática, reconhecem-se dois direitos onde só pode caber um: os indígenas têm direito, mas os ruralistas detêm os títulos. Os dois lados vão reclamar o mesmo território.”

“O governo não terá recursos para pagar essas indenizações”, diz Kleber Karipuna, coordenador da Apib

Enquanto no STF o juízo final do marco temporal segue pendente, no Congresso a tramitação da tese corre em prazo célere. Aprovado na Câmara dos Deputados em maio, dias antes de o Supremo retomar a apreciação do caso, no Senado o PL 2903/2023 recebeu o aval da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária e aguarda parecer da Comissão de Constituição e Justiça para ser encaminhada para votação em plenário. De acordo com o relatório da senadora ­Soraya Thronicke, do Podemos, caso o indígena não comprove estar no território em 5 de outubro de 1988, a terra não será reconhecida como da comunidade originária nem poderá ser demarcada.

Na CCJ, o relator é o senador Marcos Rogério, do PL de Bolsonaro, mas o governo aposta que o presidente da comissão, senador Davi Alcolumbre, do União Brasil e aliado do presidente Lula, vai postergar a votação até que o STF conclua o julgamento. Várias entidades indígenas vêm fazendo um trabalho junto a senadores e partidos políticos, no sentido de convencer sobre a necessidade de derrotar a matéria.

Procurador jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, Eliésio ­Marubo defende a inconstitucionalidade da proposta e promete judicializar a questão, caso a matéria seja aprovada pelos senadores. “A gente parte do pressuposto de que a norma constitucional, o Artigo 231, que trata exatamente da proteção das terras e dos direitos indígenas, diz que essas terras são indisponíveis e os direitos sobre elas são imprescritíveis. Dentro da hierarquia das leis, a Constituição está no ponto máximo, é a partir de lá que se sobressaem todas as normas. É a partir dessa régua que a gente espera prevalecer o bom senso e a justiça em favor dos povos originários.”

O Ministério dos Povos Indígenas elaborou uma nota técnica que também conclui pela inconstitucionalidade do marco temporal, tese que classifica como “indecorosa”. O documento afirma que, caso seja aprovada, a proposta pode resultar na responsabilização internacional do Estado brasileiro perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que já se manifestou contrário ao tema, alegando que os direitos territoriais indígenas não estão submetidos à condição temporal. O relatório chama atenção para a violação da Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, que determina a consulta prévia aos povos interessados no caso de medidas legislativas ou administrativas suscetíveis a afetá-los diretamente.

Na nota, a pasta destaca ainda que o Projeto de Lei aprovado na Câmara e em debate no Senado abre espaço para a exploração de garimpo, projetos de energia, acesso a territórios de povos isolados e até mesmo a revisão de áreas demarcadas. Autoriza ainda o cultivo de espécies vegetais geneticamente modificadas, algo que colide frontalmente com os costumes e tradições das populações tradicionais. •

Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo