Política

Fake news sobre urnas eletrônicas surgiu em 2018 e foi alimentada por páginas bolsonaristas

Estudo inédito em parceria com o Facebook identificou a origem das notícias que alimentarem a desconfiança contra sistema eleitoral na rede

Bolsonaro em live dedicada a 'denunciar' supostas fraudes nas urnas eletrônicas. Foto: Reprodução/Redes Sociais
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As notícias falsas que colocam em xeque a confiabilidade das urnas eletrônicas, que deram a tônica dos atos antidemocráticos do 7 de Setembro, surgiram no Facebook brasileiro durante as eleições de 2018, em perfis de apoio ao presidente. E foram alimentados por grandes páginas bolsonaristas durante todo o período eleitoral.

Essas são algumas das conclusões da quarta fase de um estudo inédito, coordenado pelo Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Tecnologias Digitais da Universidade Positivo, no Paraná, em parceria com o Facebook.

O resultado do relatório, ao qual CartaCapital teve acesso com exclusividade, mostra que 11 páginas pró-Bolsonaro agiram para, entre outras coisas, descredibilizar o sistema eleitoral brasileiro. São elas: A Terra é Plana; Bernardo Kuster; Conservador e Patriota; Desperte; Thiago Lima; Diego Rox; Dr. Rey; Gospel Prime; Naturalmente Saudável; O Jacaré de Tanga; e Terça Livre TV. A ação pode ter sido arquitetada em conjunto e com uma coordenação centralizada.

A divulgação de fake news por essas páginas não é exatamente  novidade. Motivou, inclusive, a abertura da CPMI das Fake News no Congresso. Parte das páginas mapeadas também é alvo de inquéritos no Supremo Tribunal Federal pelo mesmo motivo, inclusive com mandado de prisão contra seus fundadores, como é o caso do blogueiro Allan dos Santos. O mapeamento da origem da notícia, no entanto, reforça as suspeitas de que ela pode ter sido usada para influenciar no resultado final das eleições.

“É criado um grande descrédito dos elementos que compõem o cenário eleitoral brasileiro. Não apenas as urnas eletrônicas, mas também os partidos políticos, as pesquisas eleitorais e o debate como ferramenta da democracia”, aponta Olívia Pessoa, pesquisadora do grupo.

Para além da urna, por exemplo, foram identificadas mentiras sobre atos de terrorismo contra Bolsonaro que teriam sido programados para os dias do debate eleitoral na TV. A fake news foi amplamente divulgada pelos perfis como justificativa para a ausência do então candidato nos eventos.

Esse clima de desconfiança descrito por Pessoa passou a alimentar temores de que houvesse uma grande ameaça de fraude sobre processo eleitoral. E que apenas Jair Bolsonaro e o voto impresso poderiam impedi-la.

“Se cria uma verdadeira narrativa de disputa do bem contra o mal, em que Bolsonaro é pintado como Messias, um enviado de Deus para salvar o Brasil desta ameaça de corrupção”, diz a pesquisadora. “São exatamente essas palavras que são usadas: Deus, Messias, bem contra o mal.”

Tom semelhante foi adotado em postagem recente da deputada Carla Zambelli (PSL-SP) que divulgou a imagem de Lula ao lado de uma figura demoníaca e Bolsonaro sendo acompanhado por anjos e Jesus Cristo.

O clamor pelo voto impresso e o temor de fraudes nas urnas, embalados neste sentimento de religiosidade, podem ter influenciado na vitória de Bolsonaro naquele ano, explica Pessoa.

“Vai se criando toda essa narrativa. A questão do voto impresso surge ali neste exato contexto, no dia da eleição, no primeiro e no segundo turno, quando foram disseminadas notícias sobre fraudes e nestes links mais compartilhados e curtidos, com maior engajamento, quando se clica é uma postagem que não fala de fraude, mas sim de urna substituída por defeito, apesar do título indicar ‘urna eletrônica fraudada no interior do estado’”, relata Pessoa.

Há ainda casos em que o link já está fora do ar, mas a postagem ainda traz títulos e legendas alarmistas, ‘criando uma verdadeira sensação de insegurança’, descreve a pesquisadora.

Milícia digital

Em meio a essas mentiras, chama a atenção a forma muito parecida como os temas são abordados, a semelhança nos termos utilizados e o curto espaço de tempo em que elas são divulgadas.

Pessoa explica que a ação de robôs e de uma milícia digital ainda não é o foco deste relatório parcial. A intenção, explica, é ampliar as análises sobre o tema em novas fases do estudo. Ainda assim, ela já vê indícios de que a ação nestas páginas era coordenada durante o período eleitoral de 2018.

“Ainda não estamos olhando ações de robôs, mas identificamos um padrão nas postagens. Quando sai um assunto em uma página, você vê ele sendo reproduzido da mesma forma em várias outras páginas bolsonaristas, com muitas características de uma ação coordenada. Isso ficou muito claro no episódio da facada e nas supostas fraudes nas urnas no dia da eleição”, relata.

“Esse movimento coordenado é como se fosse um combustível para manter essas páginas e seus apoiadores em constante mobilização”, acrescenta Pessoa. “É a instalação de um risco iminente, seja ele do Brasil se tornar uma Venezuela ou do processo eleitoral ser fraudulento. A forma é construir um estado permanente de medo e que algo antidemocrático vai acontecer a qualquer momento.”

Modus operandi se repete para 2022

O estudo também mostra que o modus operandi bolsonarista também tende a se repetir em 2022, apesar da maior vigilância, tanto por parte da Justiça, quanto por parte das big techs. A análise dos dados vai de 2010 a 2020 e mostra que, a cada novo avanço da esquerda ou recuo da direita, os mesmos mecanismos são ativados pelos perfis.

“Mesmo com o presidente tendo sido eleito, o discurso é retomado para o debate público justamente quando ele começa a perder nas pesquisas eleitorais. Esse é o instrumento mobilizado para colocar em xeque um sistema eleitoral quando existe uma sensação de perda de uma eleição”, explica Pessoa. “É como se fosse uma receita para responder a um cenário. Temos um cenário de derrota, vem à tona a fraude na urna eletrônica, como um instrumento nesta luta de bem contra o mal”, completa.

A pesquisa, que até o momento tem foco no Facebook e utiliza o CrowdTangle, aplicativo de navegação de dados da própria empresa, pretende ampliar ainda mais o escopo da análise em 2022. Dessa vez, o foco será também o Twitter, de onde os pesquisadores também pretendem detalhar dados desde e o início do ano para compreender como as notícias falsas poderão impactar na decisão dos brasileiros.

Confira a íntegra do quarto relatório do estudo:

4º relatório parcial da pesquisa - eleições, redes sociais e democracia - setembro.2021 (1)

Após 2018, bolsonarismo se tornou maior que trumpismo no Facebook

Foto: Agência Brasil

Em outra parcial do mesmo estudo, os pesquisadores apontam que o engajamento de Bolsonaro no Facebook ultrapassou o de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, a partir das eleições de 2018.

As estratégias dos dois políticos, de acordo com os pesquisadores, se assemelham em muitos aspectos, principalmente na forma com que foram usadas durante os períodos eleitorais. Mas, de acordo com os dados da própria plataforma, o brasileiro se distanciou de Trump na interação nos vídeos nativos postados em seu perfil.

“Ainda que Trump tenha números absolutos superiores aos de Bolsonaro, dada a sua projeção global, vemos que as interações geradas pelos vídeos têm números maiores entre os espectadores de Bolsonaro do que entre os de Trump. Isso nos permite inferir que o engajamento do ‘bolsonarismo’ no Facebook seria mais intenso que o do ‘trumpismo’ na rede social”, explica Henrique Braunstein Raskin, doutor em Filosofia e coordenador de Relações Internacionais da universidade.

Foto: Reprodução

O cruzamento das linhas do gráfico – com a linha azul de Bolsonaro cruzando a vermelha de Trump -, conforme explica Raskin, deixa claro como há uma mudança de patamar a partir das eleições de 2018, indicando como o brasileiro soube manter sua audiência ativa mesmo após as eleições.

De acordo com o professor, neste quesito, é possível afirmar que o bolsonarismo foi até três vezes maior do que o trumpismo em determinados momentos.

“Bolsonaro neste aspecto descola bastante. Depois do cruzamento das linhas nos gráficos, vemos Bolsonaro sempre acima de Trump. Chama a atenção que o único momento em que eles se igualam é na invasão do Capitólio, mas Trump sobe para alcançar e não para ultrapassar”, detalha o pesquisador.

Bolsonaro copiou Trump?

De acordo com o professor, os dados não permitem afirmar que o presidente brasileiro tenha copiado o americano. O que há, são semelhanças nas estratégias e coincidências entre os períodos utilizados, explica.

“As estratégias são bem parecidas e coincidem, desde o surgimento dos dois até o banimento de Trump”, comenta Raskin.

Os dados mostram que ambos iniciaram a relevância da sua trajetória virtual em 2015, Trump já motivado pelas eleições nos EUA e Bolsonaro impulsionado pelo golpe contra a então presidente Dilma Rousseff (PT), que se iniciava naquele momento.

Os gráficos também mostram que os dois políticos impulsionam sua atuação na rede no período eleitoral e diminuem consideravelmente o uso fora deste contexto. Não à toa, Trump tem dois auges, em 2016 e em 2020, anos eleitorais, já Bolsonaro registra sua maior relevância digital em 2018.

“O que a gente pode ver é que essa lógica eleitoral é muito visível, aparecer nas redes é estratégico para ambos nestes períodos. Os números deixam claro que nos dois casos o Facebook é uma grande ferramenta de campanha”, comenta Raskin, que relembra que juntos, Bolsonaro e Trump ultrapassam 7 bilhões de visualizações totais em suas atividades na rede.

‘Viralização’ e fake news

O estudo, por ora, se debruçou apenas em aspectos quantitativos dos dois perfis e ainda não é possível indicar que o uso das páginas bolsonaristas disseminadoras de fake news apontadas no outro trecho tenha influenciado diretamente no engajamento de Jair Bolsonaro em 2018. Há indícios, porém, para se avançar no tema.

“Por enquanto olhamos apenas para os números, sem detalhar o conteúdo ou caminho que eles seguiram. Os dois relatórios se somam, mas não necessariamente são metades da mesma informação. Mas é importante ressaltar que eles coincidem. Aqui a gente vê que quantitativamente o período eleitoral é decisivo para o crescimento de Bolsonaro e no outro trecho da pesquisa podemos ver que, no mesmo período, o teor das mensagens nas páginas começa a aumentar no sentido de pautas destrutivas”, destaca.

Raskin explica que, apesar de ainda não relacionar o perfil oficial de Bolsonaro diretamente ao compartilhamento nas páginas bolsonaristas , já é possível afirmar que a ‘viralização’ é um elemento essencial para a estratégia de crescimento.

O compartilhamento dos vídeos nativos do ex-capitão, por exemplo, são os responsáveis por dobrar o engajamento nas publicações no perfil oficial do presidente.

“Nos dados dos vídeos temos dois elementos, as visualizações na postagem original e as visualizações em páginas ou perfis em que aqueles vídeos foram compartilhados. Isso é muito interessante porque mostra que as visualizações totais são muitas vezes o dobro da postagem original. Ou seja, sem a disseminação em massa, o engajamento cairia pela metade”, destaca o pesquisador.

Segundo Raskin, esse aspecto também confirma a tese de que o bolsonarismo tem maior engajamento do que o trumpismo, já que o mesmo efeito não é observado nas redes do ex-presidente dos Estados Unidos.

“No perfil de Trump as visualizações totais nunca são tão impactadas pelos compartilhamentos como ocorre no perfil de Bolsonaro.”

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