Bárbara Caramuru

Doutora em Antropologia pela UFSC. Professora e pesquisadora

Helena Manfrinato

Doutora em Antropologia pela USP

Opinião

‘Estamos há 76 anos esperando’: relatos palestinos sobre a ofensiva do Hamas

Cabe agora pensar nos novos processos e reconfigurações de forças na região e os desdobramentos destas ações

Uma salva de foguetes é disparada por militantes palestinos, na escalada mais sangrenta no conflito mais amplo desde maio de 2021 (Foto: EYAD BABA/AFP)
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“A situação na Palestina ocorre devido ao exército [israelense] estar apoiando os colonos judeus. Há alguns meses atacam as cidades palestinas, os bairros, queimam a plantação de trigo, queimam árvores de azeitona… (…) Como eles têm agora o feriado deles, entraram na Mesquita de Al-Aqsa com o ministro deles, ministro da direita sionista, e explodiu a situação. (…) Não tem como… A situação é grave. Amanhã não tem escolas, eu também não vou trabalhar, porque a Palestina está em luto. O governo sionista de Israel continua atacando Gaza. O mundo está surdo e mudo, apoiando os sionistas e o governo de Israel, que tem direito a defesa. Já a nossa gente não tem esse direito!”

(entrevista concedida por Hussein*, em 7 de outubro de 2023)

No ano de 2020, os Acordos de Abraão, com o ambicioso objetivo de normalizar as relações entre Israel e outros estados do Oriente Médio, serviram como catalisador para o projeto de Donald Trump de anexar a Cisjordânia. Esse movimento, longe de ser um mero episódio, colocou a Palestina novamente na linha de fogo e perpetuou a ocupação ilegal de terras que compõem o território palestino histórico.

Em outubro, em mais um capítulo desta crônica de necroviolência, uma nova erupção aconteceu. No contexto do feriado judeu de Sukkot, que se estende de 29 de setembro a 6 de outubro e se liga às comemorações de Rosh Hashanah, o Ano Novo Judaico, movimentos extremistas e forças armadas israelenses protagonizaram ataques contra a população palestina em Jerusalém. A ocupação durou vários dias e teve como palco a emblemática Mesquita Al-Aqsa.

No dia 3 de outubro, colonos fecharam o portão da ala sul da mesquita, permitindo a entrada de um contingente de 500 a 600 colonos israelenses no local. No dia 5, por sua vez, fontes locais afirmaram que milhares de israelenses invadiram o complexo da Al-Aqsa. No dia seguinte, 6 de outubro, o Estado de Israel fechou o território palestino. Fontes locais relatam ainda também invasão de colonos à Mesquita de Abraão, na cidade de Hebron.

Há ainda relatos de violência e mortes de palestinos nos últimos dias. As cidades palestinas estão “fechadas”, sob cerco militar. Segundo um representante da Embaixada Brasileira na Palestina ouvido no sábado, a situação é de “apreensão em torno da escalada de violência”.

Cenas de violência, abuso e desrespeito protagonizadas por colonos e soldados israelenses em locais sagrados para os islâmicos não são raras. O santuário de Al-Aqsa, um dos locais mais sagrados para o Islã no mundo, tornou-se um alvo “perfeito” das agressões coloniais e islamofóbicas contra palestinos. É importante que se diga, ainda, que Jerusalém é uma cidade sagrada também para cristãos, que são igualmente alvos de ataques dessas forças coloniais.

Hussein* relata ataques diários nos últimos meses, com escalada de violência na Cisjordânia. Em Gaza, a situação é diferente. Gaza hoje conta com uma população aproximada de 2 milhões de pessoas vivendo em situação de grave crise humanitária: a taxa de desemprego está estimada em 82%, e 56% da população vive na pobreza. O cerco a Gaza ocorre há mais de 15 anos, desde a desocupação da região pelos colonos em 2005 e a chegada do Hamas ao poder, em meados de 2006. 

É importante dizer que o cerco militar serve a muitos propósitos, mas particularmente, é uma importante forma de controle do território continuado entre a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. Relatórios da Human Rights Watch e da ONG israelense B’Tselem, reconhecem a situação na Palestina como uma situação de apartheid.

Após mais atos de violência em Jerusalém e da invasão da mesquita Al-Aqsa, o Hamas declarou uma operação de retomada e resistência, denominada em Al-Aqsa Flood (Operação Inundação de Al-Aqsa – ou, como está sendo chamada em português, Tempestade de Al-Aqsa). O grupo lançou mísseis e conseguiu romper pontos do bloqueio terrestre, ocupando postos militares israelenses e rendendo soldados. A mídia contabiliza centenas de mortes e milhares de feridos, de ambos os lados, além de sequestros de civis. Prédios tem sido bombardeados em Gaza.

Enquanto as forças do Hamas avançavam, em um movimento inédito para o partido e uma ofensiva à Israel ainda não vista, a ideia de inteligência e um exército israelense ‘infalíveis’ caia por terra. Logo após os ataques, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netaniyahu fez declarações de “guerra” e prometeu destruição do “inimigo”. 

Essa ascensão nos movimentos de resistência palestina não pode ser deslocado do contexto histórico de ocupação do território. É preciso repensar a ideia de “inimigo” e “terrorista” que surge nas repercussões sobre o enfrentamento na Palestina. Os termos “guerra” e “conflito” pressupõe uma simetria de poder. De um lado há, porém, a Palestina, que sequer tem um Estado consolidado ou poderio bélico. De outro, Israel, que consolida um Estado e que tem alto poderio bélico. Há necessidade de pensar a situação como um processo de “limpeza étnica”.

No mundo inteiro, embaixadas palestinas têm se pronunciado lembrando as décadas de colonização.

Em nota oficial, a embaixada Palestina do Brasil afirmou:

“O ciclo de violência e ataques de colonos não parou durante sete décadas. Não haverá paz nem estabilidade até que termine a ocupação israelense, responsável pela continuação do conflito. O extremismo e o racismo aumentarão a taxa de violência. Israel deve respeitar o direito internacional e reconhecer os direitos nacionais legítimos e inalienáveis do povo palestiniano: o seu direito ao seu Estado independente e viável, com Jerusalém como capital, de acordo com as resoluções e entendimentos de legitimidade internacional. Nem a violência, a agressão, nem o racismo acabarão com esta anomalia: a ocupação.”

 A Federação Palestina do Brasil, FEPAL, se manifestou nas redes sociais: 

“A RESISTÊNCIA PALESTINA VIVE – e ela é justa e legal de acordo com o Direito Internacional. Hoje é um dia histórico. Após 76 anos de colonialismo, genocídio e limpeza étnica, os palestinos fazem valer seu direito à autodefesa, reagindo às políticas de extermínio sionistas.” Lembrando que dos dois milhões de palestinos presos em Gaza e da situação de precariedade”. Nota do Ministério de Relações Exteriores e expatriados da Palestina. Em seu discurso eles acionam a Resolução 3743/1882 da ONU que garante o direito de defesa previsto pela ONU, reiterando que a ação é “uma resposta ao processo de limpeza étnica” e que “a resistência palestina é justa e legal, de acordo com o direito internacional… Faz valer seu direito de autodefesa.”

A Embaixada Brasileira, através do escritório de representação de Ramallah informou em nota oficial que os “14 mil brasileiros residentes em Israel” estariam seguros, bem como os “6 mil residentes na Palestina”. Informou também que os residentes em Gaza estão em monitoramento. Todavia sabemos que Gaza está altamente bloqueada, com restrição de acesso a internet e luz.

Da desocupação de Gaza e à atualidade

No ano de 2005, iniciou-se o fim da ocupação territorial da Faixa de Gaza e a retirada das tropas israelenses e dos colonos. Em 2006, ocorreram eleições em Gaza, tendo sido eleito o Hamas. O Hamas é um movimento islâmico, sunita, fundado em 1987, no contexto da Primeira Intifada. Sua origem está atrelada à Irmandade Muçulmana do Egito (ramo Sírio-Palestino), o que faz com que seja visto como “inimigo” tanto de Israel quanto do Egito.

Os principais aliados do Hamas, atualmente, são Turquia, o grupo Hezbollah e o Irã, possuindo representação no Qatar. Após eleição do Hamas, a Faixa de Gaza sofreu um bloqueio por parte de Israel (e Egito, que, embora seja contra o Hamas, é próximo da ANP). Em 2019, uma comissão da ONU, alertou para o cometimento de crimes contra a humanidade pela ocupação israelense.

Deste a chegada do Hamas ao poder, a Faixa de Gaza sofreu sucessivos ataques em 2008, 2009, 2014 e 2021. Um dos eventos mais lembrados foi o genocídio em 2008/9, em que ocorreram ataques sucessivos entre 27 de dezembro de 2008 e 18 de janeiro de 2009. A Human Rights Watch acusou Israel de uso de fósforo branco como armamento. Conforme o Centro Palestino de Direitos Humanos, 1.434 palestinos/as foram mortos, incluindo 960 civis, 239 policiais e 235 militantes De 8 de julho a 26 de agosto de 2014, ocorreu o sequestro e morte de três jovens israelenses. Posteriormente, o Hamas foi acusado de ser responsável pelo sequestro, embora tenha negado. Extremistas judeus sequestraram e mataram o adolescente palestino Mohammed Abu Khdeir. Também ocorreram protestos e lançamentos de foguetes, com uma ofensiva israelense desproporcional que deixou em torno de 2.000 mortos.

No dia 1º de julho de 2020 teria início, oficialmente, o plano de Anexação da Palestina – 30% da Cisjordânia, que incluía o vale do Rio Jordão, todos os assentamentos israelenses ilegais e a margem norte do Mar Morto, conforme o plano de Donald Trump, intitulado como “Acordo do Século”. Tratou-se de um “acordo” de caráter unilateral sancionado entre Israel e Estados Unidos, desconsiderando a participação e posição das organizações palestinas e da Autoridade Nacional Palestina, a ANP.

Tal projeto foi recebido pelos palestinos e palestinas interlocutores deste trabalho como um meio para oficializar a colonização das terras palestinas, assentamentos sionistas, efetivação da limpeza étnica e violação dos direitos internacionais. O relator especial da ONU, Michael Lynk, em declaração pública afirmou: “O direito internacional é muito claro: a anexação e a conquista territoriais são proibidas pela Carta das Nações Unidas”. E prosseguiu. “o Conselho de Segurança, começando com a Resolução 242, em novembro de 1967, afirmou expressamente a inadmissibilidade da aquisição de território por guerra ou força em oito ocasiões, mais recentemente em 2016.″

Em maio de 2021, após reação do Hamas ao ataque na esplanada das Mesquitas e tentativa de despejo em Jerusalém, seguiram-se 11 dias consecutivos de ataque, gerando cerca de 242 mortos, incluindo 65 crianças.

Em 2021, o longo da pandemia da Covid-19, palestinos e palestinas foram incessantemente atacados pelas forças do governo e colonos israelenses. Um bairro inteiro, cerca de 500 pessoas correm risco de despejo, o que tem sido nomeado pelos/as interlocutores/as como uma “Nakbah contínua”, “expulsão dos palestinos e promoção da limpeza étnica”. O bairro de Sheik Jarrah é um bairro majoritariamente composto por palestinos refugiados da Nakbah.

A análise de alguns grupos de pessoas palestinas é de otimismo. “Estamos há 76 anos esperando”, disse um palestino em conversa com as autoras. Há leituras de que este momento é um momento histórico de retomada das terras e luta anti-colonial. 

Considera-se que o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, apoiou a reação do Hamas, tendo em vista que afirmou ser legítima a defesa contra os crimes de Israel. Enquanto isso, o líder do Hamas afirmou ser o início de uma ‘Revolução Árabe. Por fim, grupos como a Jihad Islâmica também manifestaram apoio. 

Poderíamos ensaiar afirmar que, nas próximas décadas, surgirá algo novo e promissor para palestinos? Haverá o surgimento de uma união dos grupos palestinos, na Palestina e na diáspora? Cabe agora pensar nos novos processos e reconfigurações de forças na região e os desdobramentos destas ações.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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