Observatório do Banco Central

Formado por economistas da UFRJ, analisa a economia suas relações fundamentais com a moeda e o sistema financeiro

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Lei anti-ganância de Ciro é fórmula simplista para um fenômeno complexo

Sem negar a necessidade de avaliarmos os altos juros no Brasil, a inexistência de renda anula qualquer efeito de redução de juros

O candidato do PDT à Presidência, Ciro Gomes. Foto: Flickr PDT Nacional
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Não há dúvida de que o Brasil pratica, historicamente, juros escorchantes. Os bancos, operadoras de cartão, financeiras etc. auferem lucros que, sob muitos aspectos, são abusivos. O Tesouro Nacional também remunera os detentores da dívida pública de forma excessiva, gerando ganhos de renda desproporcionais – notadamente tendo-se em vista que não existe risco de crédito em dívida denominada em moeda doméstica, como no Brasil.

Recentemente um dos candidatos à Presidência da República vem propondo uma solução mágica e, portanto, simplista para um problema extremamente complexo. O chamado problema das taxas de juros no Brasil vem sendo estudado há anos por renomados acadêmicos e permanece um debate em aberto. Há múltiplas causas e, portanto, medidas a serem tomadas em várias frentes. No entanto, nenhum dos estudiosos sobre o tema propõe reeditar o que ficou conhecido como Lei da Usura (1933).

Pelo contrário, como bem mostra André Lara Resende, nos anos 1960, o Brasil sofria da “ficção da moeda estável”. Havia uma incompatibilidade entre a Lei da Usura – que fixava os juros em 12% a.a. – e a Cláusula Ouro, que proibia a indexação de contratos (inclusive financeiros). Esse arranjo institucional era incompatível com a realidade brasileira, marcada por elevadas taxas de inflação (na casa de dois dígitos) desde os anos 1950

A “ficção da moeda estável” causou danos enormes. Por exemplo, está na origem do esgotamento da capacidade de financiamento da economia brasileira. A escassez de crédito privado somava-se à incapacidade de financiamento (voluntário) por parte do Tesouro Nacional. Neste sentido, havia um quadro institucional desfavorável ao desenvolvimento econômico. Não se pretende debater a interpretação de Lara Resende, mas ela ilustra o risco de se reeditar a Lei da Usura.

A chamada lei antiganância proposta por Ciro Gomes durante uma entrevista é citada superficialmente em seu programa de governo. Ela nos remete a uma experiência que já se mostrou fracassada sob vários aspectos. Claro que a economia brasileira passou por profundas transformações desde então. A inflação contemporânea tem outras causas e é menos intensa do que a verificada nos anos 1960. No entanto, não faz sentido reeditar uma fórmula mágica que já é altamente danosa.

Há formas muito mais eficazes de combater o problema dos juros no Brasil. Por exemplo, o Banco Central do Brasil (BCB) tem, acertadamente, estimulado a competição no setor. Em 2016, foi lançada a agenda BC+, com os seguintes propósitos: estimular a cidadania financeira e a eficiência do sistema; modernizar a legislação; e baratear o crédito.

Em 2019, o BCB avançou com a agenda BC+, que criou o PIX e adotou o sistema financeiro aberto (“open finance” ou “open banking”). Esse esforço é meritório e deve ser aprofundado. Ao estimular a competição no sistema financeiro, abre-se espaço para uma redução na margem de lucro das instituições. Acredita-se que especialmente os grandes 5 bancos que dominam o mercado brasileiro terão suas margens de lucro reduzidas.

Esse esforço é muito importante visto que o mercado bancário brasileiro é um dos mais concentrados do mundo. Por exemplo, em 2017, segundo dados do BCB, a participação de mercado dos 5 maiores bancos brasileiros era de quase 80%; enquanto a média mundial (grupo selecionado de desenvolvidos) é de 60%. Isso confere enorme poder de mercado para esse privilegiado grupo de bancos que, consequentemente, tendem a cobrar valores abusivos em seus empréstimos e tarifas.

A chamada “Lei Anti-ganância” anunciada por Ciro em nada contribui para contornar esse problema. Pelo contrário, ela é inspirada em uma iniciativa britânica (a participação de mercado dos 5 maiores bancos no Reino Unido é de 54%) capitaneada pelo Financial Conduct Authority (FCA). Entretanto, a iniciativa britânica tem como alvo um tipo de investimento específico: os empréstimos de curto prazo. 

Desconsiderar as especificidades do Brasil e apenas transpor uma legislação aplicada em um país desenvolvido é um erro recorrente, que já foi denunciado por notórios pensadores como Alberto Torres e Celso Furtado. É uma solução mágica, que tende a gerar mais prejuízo do que benefício. Essa lógica vem sendo aplicada pelo atual governo brasileiro (principalmente pela equipe econômica) e os resultados perversos são claros. 

A lei britânica tem como alvo empréstimos do tipo “curto prazo e custo alto” e busca reduzir a inadimplência neste segmento. No Reino Unido esse crédito possui um perfil de cliente bem específico. De acordo com o FCA, os empréstimos contemplados pela lei são majoritariamente utilizados por homens, com mais de 35 anos e que possuem empregos de tempo integral e rendimentos fixos. Além disso, esse crédito é utilizado para cobrir despesas cotidianas (como contas e despesas com moradia).  

Trata-se de uma realidade muito distante da observada no Brasil, em que a maior parte da inadimplência vem de gastos com cartão de crédito, realizados por mulheres entre 26 e 40 anos, com uma dívida média de R$1.200. Esse perfil reflete um problema estrutural de falta de emprego e renda. Sem negar a necessidade de avaliarmos os altos juros no Brasil, a inexistência de renda anula qualquer efeito de redução de juros. 

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