Observatório do Banco Central

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O desafio ético-político do governo para a reconstrução do campo da saúde mental no Brasil

Em sua posse na Saúde, Nísia Trindade fez um compromisso de retomada dos princípios da Reforma Psiquiátrica

A ministra da Saúde, Nísia Trindade. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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O discurso de posse da ministra da Saúde, Nísia Trindade, reconheceu a relevância dos princípios da Reforma Psiquiátrica na política de saúde mental a ser reconstruída em nosso País. Escutando atentamente o seu discurso, nos chamou atenção a citação à figura de Miguel Pereira, que afirmava ser o Brasil um imenso hospital. Após apontar um diagnóstico da saúde no Brasil de destruição, desmonte e sofrimento, Nísia retomou a fala do médico Miguel Pereira, demonstrando a urgência em encarar esse diagnóstico de tanta gravidade e trabalhar para sua superação. A ministra defendeu, também, a necessidade de criar um departamento de saúde mental para o real enfrentamento do uso abusivo de álcool e outras drogas.

Para nós, que pesquisamos no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ o impacto do uso abusivo de álcool e outras drogas no funcionamento subjetivo e, em especial, nos quadros de psicose, o discurso de Nísia foi a abertura de uma clareira em meio aos destroços, deixados pelo governo anterior, com as medidas de reforma estrutural da saúde mental e da política sobre drogas. Essas medidas desmantelaram o arcabouço das políticas para o setor, assentadas nos princípios da reforma psiquiátrica, em nome de uma política racista, manicomial e punitivista para a abordagem dos problemas de saúde mental (incluindo o uso de álcool e outras drogas).

Neste sentido, Nísia fez, mais do que uma promessa, um compromisso ético-político de retomada dos princípios da Reforma Psiquiátrica, da garantia de aplicação desses princípios à política de atenção psicossocial e da inclusão da política de álcool e outras drogas no campo da saúde mental. Esse compromisso se efetivou, nos últimos dias, com a nomeação da professora Sônia Barros para o Departamento de Saúde Mental e Enfrentamento do Uso Abusivo de Álcool e Outras Drogas– uma profunda conhecedora do campo e a primeira profissional negra a receber o Prêmio Nise da Silveira.

Para entendermos a grave situação encontrada pelo atual Ministério da Saúde, consideremos algumas ações do governo Bolsonaro neste campo.

Em 2019, o governo sancionou a Lei n°13.840, alterando a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, para tratar do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, definir as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e tratar do financiamento das políticas sobre drogas. Com a nova lei em vigor, decretou-se o fim da lógica de redução de danos, priorizando a abstinência dos usuários, estimulando os tratamentos em comunidades terapêuticas e autorizando a internação compulsória.

Em 2020, o governo anunciou a revisão da Rede de Atenção Psicossocial e uma nova proposta de modelo assistencial em saúde mental, tendo como base o documento Diretrizes para um Modelo de Atenção integral em Saúde Mental no Brasil – 2020. O documento criticava os princípios da Reforma Psiquiátrica por desvalorizar o saber psiquiátrico com a consolidação da atenção psicossocial como único modelo para a saúde mental.

Em 2022, o governo publicou o decreto n0 11.098/2022, que extinguiu a Coordenação de Saúde Mental, destinando à Secretaria de Atenção Primária à Saúde a competência de coordenação dos processos de implementação, fortalecimento e avaliação da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e da Rede de Atenção Psicossocial. A Atenção Primária passou, assim, a exercer uma função que ela não poderia exercer, dado que é um dos níveis de atenção da Rede de Atenção Psicossocial da Saúde. Nesse mesmo ano, o Ministério da Justiça e Segurança Pública instituiu o Plano Nacional de Políticas sobre Drogas (PLANAD), integrando a Política Nacional sobre Drogas em cinco eixos: (1) prevenção; (2) tratamento, cuidado e reinserção social; (3) redução da oferta; (4) pesquisa e avaliação; (5) governança, gestão e integração. Coube ao Ministério da Justiça o protagonismo no PLANAD, ao equacionar uso de drogas e combate ao tráfico e reduzir a complexidade do tratamento a um problema espiritual solucionável pela internação em comunidades terapêuticas.

Essas ações evidenciaram o Processo de Contrarreforma da Saúde Mental no Brasil – um conjunto de contrarreformas ancorado no princípio autoritário do encarceramento e instituído por meio de reformas estruturais que divorciaram as políticas de saúde mental e de álcool e outras drogas e aprofundaram o racismo estrutural. De fato, esse processo serviu de alavanca para o retorno da lógica manicomial – que encarna, na história brasileira, nossa herança escravista – ao centro da política de saúde mental. No âmbito do divórcio com a política de álcool e outras drogas, o mesmo se repete: crime e internação.

Diante do quadro que a gestão Lula encontrou neste campo, nos arriscamos a afirmar que se uma mudança profunda e estrutural no governo não ocorresse, o País realizaria a fórmula de Miguel Pereira no nível mais dramático. Assim, a contrarreforma psiquiátrica faria do Brasil um grande hospital psiquiátrico, um grande manicômio, suprimindo, de vez, a ruptura epistemológica proporcionada pela Reforma Psiquiátrica com relação a um passado escravista, de encarceramento e punição.

A primeira ação do governo atual nesse campo foi expedir o decreto n011.358/2023, que revogou o decreto n0 11.098/2022, o qual extinguia a Coordenação de Saúde Mental. Nos últimos dias, a ministra Nísia criou o Departamento de Saúde Mental e Enfrentamento do Uso Abusivo de Álcool e Outras Drogas e nomeou a professora Sônia Barros para assumir a pasta. Foi um ato ético-político de bloqueio do processo autoritário da contrarreforma: criação do que foi destruído e integração da política de álcool e outras drogas à política de saúde mental, assentada nas políticas de cuidado e de respeito humanista integral ao sofrimento psíquico e à vulnerabilidade social e no combate efetivo da lógica manicomial e do método do encarceramento – ambos elementos do racismo estrutural, que ainda atravessa a nossa sociedade.

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