Política

O Brasil não vacina nem metade de sua população carcerária e taxa ‘estaciona’

População privada de liberdade é considerada em alto risco e tem prioridade no Programa Nacional de Imunizações

Créditos: EBC Detentos que são pais ou responsáveis por crianças menores de idade ou deficientes podem ter benefício da prisão domiciliar. Créditos: EBC
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Mais da metade da população privada de liberdade no Brasil, considerada pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) como prioritária na vacinação da Covid-19, ainda não recebeu nenhuma dose de imunizante. A situação contrasta com o aumento da oferta de vacinas no País nas últimas semanas.

Apenas 47,34% dos cerca de 754 mil presos foram vacinados, conforme indica o próprio Ministério da Saúde em seu painel oficial. Levando em conta apenas os já imunizados com duas doses ou dose única da Janssen, a situação é ainda mais alarmante: menos de 100 mil pessoas, ou pouco mais de 13%, completaram o ciclo de imunização.

Os dados também atestam uma uma redução significativa no ritmo de vacinação deste grupo, que já começou a ser imunizado com atraso. Antes de maio, o Brasil vacinava, em bons dias, poucas dezenas de presos. Nos demais, o número beirava zero.

Só em 18 de maio foi que o País registrou uma melhora nos índices, passando a vacinar sempre mais de mil detentos, com exceção aos fins de semana. Em junho, o número ultrapassou pela primeira vez as 5 mil doses diárias, chegando a 10 mil em alguns momentos. O recorde foi de 15 mil aplicações, no dia 30 daquele mês.

A melhora, no entanto, foi momentânea. De lá pra cá, a taxa de vacinação teve queda constante, voltando aos patamares de menos de 5 mil vacinados a partir da segunda quinzena de julho. Há dias em que os presos vacinados em todo o Brasil não passam de mil.

Os dados comprovam que a situação da população carcerária segue na contramão do que vive o País, com uma oferta maior de imunizantes e uma situação um pouco mais confortável em alguns estados, que já vacinam menores de 18 anos e projetam aplicar a terceira dose nos mais vulneráveis.

A baixa oferta de doses aos presos brasileiros não parece, portanto, uma questão de falta de vacinas, já que o Brasil mantém o ritmo de imunização da população geral no mesmo patamar durante este período. Dados do Ministério da Saúde mostram, por exemplo, que em 10 de agosto o Brasil atingiu o seu pico de doses aplicadas em um único dia, mais de 2,146 milhões. Naquele mesmo dia, apenas 1,5 mil presos foram vacinados.

Os dados corroboram com a tese de que a população carcerária brasileira é tratada com ainda mais descaso pelo atual governo federal, já denunciada por especialistas. Boa parte da população privada de liberdade, vale lembrar, também pertence a outros grupos prioritários, seja por idade, seja por ter algum tipo de comorbidade, o que indica que o Brasil tem descumprido duplamente o seu plano oficial de imunização.

O descaso dos governos

Um depoimento prestado à CPI da Covid corrobora esta tese. Em julho, a ex-coordenadora do PNI Francieli Fantinato afirmou à comissão que o coronel Élcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, atuou para que presos fossem retirados da lista de prioridades. Franco é um dos investigados pela comissão por articular um esquema de corrupção na compra de vacinas no Ministério da Saúde.

“Eu fui para uma reunião e me foi solicitado que retirasse a população privada de liberdade, e eu me neguei a retirar. Eu falei, ‘olha, se vocês quiserem tirar a população privada de liberdade, vocês vão tirar sem o aval do programa, vocês vão fazer uma cópia agora do plano, vão ficar com essa cópia e eu vou levar a minha cópia de volta’”, afirmou a ex-responsável pelo PNI.

A reunião relatada ocorreu em dezembro de 2020. Naquele mesmo mês, o governo federal chegou a encaminhar uma versão retirando a população privada de liberdade da lista prioritária ao Supremo Tribunal Federal. A tentativa, no entanto, foi desfeita dias depois pela pasta em nova versão que devolvia o status de prioridade aos presos.

Em fevereiro deste ano, uma resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária sobre o tema também foi publicada no Diário Oficial para reforçar a indicação de que os governos estaduais deveriam viabilizar a vacinação de pessoas privadas de liberdade. A orientação era de que as secretarias de Saúde seguissem o calendário de prioridades estabelecido pelo PNI, do governo federal, para que se evitasse “qualquer espécie de postergação de prazo ou fase”. Na ocasião, o conselho buscava se antecipar e evitar os atrasos e a dupla omissão registrados atualmente.

Como mostram os dados oficiais, a recomendação não foi seguida. Outro exemplo desta omissão ao cuidado com esta parcela da população ocorreu em São Paulo. Em julho deste ano a Defensoria Pública do estado entrou na Justiça para que o governo cumprisse com o calendário prioritário previsto para o grupo. O documento indicava que em vistorias realizadas pelo órgão constatou-se falta de condições de higiene adequadas e obstáculos para que os presos e agentes penitenciários cumprissem os protocolos de prevenção adequados.

No pedido, a defensoria também chamou a atenção para o fato de que o estado anunciava vacinação de populações mais jovens sem antes cumprir a imunização da população carcerária.

“A inclusão, no estado de São Paulo, das pessoas presas como prioritárias na vacinação é medida urgente, devendo ser observada a imunização das pessoas presas antes da população jovem e sem comorbidades que não está encarcerada”, dizia um trecho do documento.

Segundo informava a defensoria, naquele 13 de julho, somente 18.102 presos, de um total de 207 mil pessoas, haviam sido vacinadas no estado.

“Não se pode pretender que se espere a solução final do processo para que se garanta o direito à vida de toda população carcerária. A urgência é manifesta no presente momento em que as pessoas presas têm morrido quase que diariamente em decorrência da Covid-19”, dizia a Defensoria, que ainda pedia uma indenização coletiva no valor de 5 milhões de reais destinados ao Fundo Estadual de Defesa dos Interesses Difusos.

Na ocasião, o pedido foi acatado em caráter liminar e obrigou o estado a finalizar a imunização dos detentos em 15 dias, mas a decisão foi suspensa dias depois pelo presidente do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo (TJ-SP), Geraldo Francisco Pinheiro Franco.

Em nota publicada à época, o governo de São Paulo afirmou que a expectativa era de que a vacinação da população dos presídios paulistas avançasse em agosto. Naquele momento o estado informava ter vacinado 56 mil presos. A expectativa, no entanto, não se confirmou, conforme indica o painel do próprio Ministério da Saúde, que registra uma redução de ritmo no último mês.

A reportagem procurou o Ministério da Saúde para que o governo federal fornecesse explicações para o atraso em vacinar a população privada de liberdade, mas não recebeu retorno até o fechamento desta reportagem. CartaCapital também questionou a pasta sobre a queda no ritmo de imunização do grupo nos últimos 30 dias, também sem respostas.

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