Justiça

Os problemas e fragilidades do relatório favorável à ‘PEC das Drogas’

A proposta do senador Efraim Filho, aprovada na CCJ, defende que seja criminalizado o porte e a posse de qualquer quantidade de drogas

Senador Efraim Filho (União-PB). Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
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O relator da chamada PEC das Drogas na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no Senado, Efraim Filho (União Brasil), apresentou, nesta quarta-feira, dia 13, um parecer favorável à Proposta de Emenda à Constituição que criminaliza a posse e o porte de todas as drogas no Brasil. A proposta foi aprovada por 23 votos a 4 na comissão.

A PEC, apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), busca incluir um novo parágrafo ao artigo 5º da Constituição Federal. Esse parágrafo determina que a posse e o porte de entorpecentes e substâncias similares serão considerados crime, “independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Caso aprovada, a nova regra poderá integrar o rol das “cláusulas pétreas”, ou seja, aquelas que não podem ser abolidas ou restritas, mesmo por outra PEC.

A PEC também propõe uma “distinção entre o traficante e o usuário, aplicáveis a esse último penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência”. Atualmente, a lei brasileira não estabelece um requisito objetivo para a distinção entre usuário e traficante, deixando a decisão a cargo do juiz responsável pelo caso.

Como consequência, a Justiça tem firmado jurisprudências variadas sobre o assunto, muitas vezes turvadas pelo racismo estrutural e pela desigualdade social.

Não faltam exemplos em que juízes, ao analisarem os réus, aplicaram critérios diferentes, resultando na prisão de jovens negros e moradores de áreas periféricas, enquanto indivíduos brancos e de maior poder aquisitivo foram considerados usuários e não sofreram punições.

Em junho de 2022, aproximadamente 30% da população carcerária brasileira era de acusados ou condenados por tráfico de drogas.

Estudos indicam que muitos desses indivíduos, ao contrário do argumento utilizado pelos legisladores, foram presos com quantidades mínimas de drogas.

Os argumentos do relatório

O relator da PEC, senador Efraim Filho, defende que seja criminalizado o porte e a posse de qualquer quantidade de drogas em decorrência do “caráter nocivo” dos entorpecentes.

Sem apresentar dados ou pesquisas consistentes, o senador alegou que os países que legalizaram o uso das drogas assistem um aumento significativo do número de adolescentes usuários.

A alegação do relator, no entanto, parece confundir a legalização com a descriminalização.

Conforme explica Luís Fernando Tófoli, professor de psiquiatria da Unicamp e pesquisador especializado em política de drogas e psicodélicos, a legalização significa tornar legal toda a cadeia produtiva, o que inclui o que hoje se chama de tráfico. Já a descriminalização, significa tão somente retirar o usuário da esfera criminal.

Embora haja discussões sobre se a descriminalização, eventualmente, terá os mesmos efeitos da legalização, nenhuma das duas medidas parece ter tido impactos significativos sobre número de usuários de drogas nos países onde foram implementadas.

“A maioria das pesquisas sobre o impacto da legalização da maconha – a única droga ilícita que foi legalizada até agora – no uso entre adolescentes em países ou estados que adotaram essa medida indicam que o uso entre adolescentes permaneceu estável ou até diminuiu após a legalização”, explica o professor.

Apesar de algumas pesquisas minoritárias indicarem um aumento no número de usuários após a descriminalização, principalmente nos Estados Unidos, o crescimento do consumo está mais relacionado à tendência social de normalização do consumo da maconha do que ao status de legalização.

O senador ainda apontou, novamente sem se acostar em dados, que o aumento do consumo da maconha gera, “inevitavelmente” aumento do uso de outras substâncias. A relação causal entre o uso de maconha e outras drogas ilícitas, contudo, é controversa e não tem comprovação científica, explica Tófoli.

“Esse argumento frequentemente deixa de levar em consideração que as primeiras drogas experimentadas pelas pessoas que progressivamente passam a usar substâncias ilícitas perigosas são as legalizadas: álcool e tabaco, e isso não parece indicar que pessoas que usem tal argumento, como o relator, tenham qualquer interesse em criminalizar o porte de cigarros ou cerveja”, questionou o professor.

A experiência holandesa, por exemplo, depõe contra a tese da maconha seja a “porta de entrada” do uso de drogas.

Com a liberação, venda ficou a cargo de estabelecimentos fiscalizados, afastando o consumidor dos traficantes – grandes incentivadores do consumo de outras drogas, cujo comércio é mais rentável.

Com o resultado, o número de jovens usuários de maconha na Holanda se manteve num mesmo patamar, enquanto o uso de drogas mais pesadas diminuiu.

Segundo dados dos pesquisadores americanos Robert MacCoun e Peter Reuter, autores do livro Drug War Heresies, a Holanda hoje é um dos 10 países europeus com menor número de usuários de heroína. Nos anos 70, o país estava no topo da lista.

Além de não haver evidências de que a descriminalização aumente o número de consumidores, ou seja utilizada como uma “porta de entrada” para o consumo de drogas, o argumento de que ao deixar de punir o usuário se estaria favorecendo o tráfico também carece de fundamento.

“Pelo contrário, a descriminalização pode redirecionar recursos para o combate efetivo ao tráfico e distribuição ilegal, ao mesmo tempo em que diminui a demanda por drogas ilícitas através da promoção de políticas de saúde pública e tratamento de dependências”, explica o professor.

No caso da maconha, a possibilidade de autocultivo pode, inclusive, reduzir necessidade de contato com o tráfico, já que estamos falando de uma droga cultivável.

Atualmente, cerca de 30 países já descriminalizaram o porte de uma ou mais drogas para o uso pessoal no mundo, sem que a medida tenha aumentado exponencialmente o consumo dessas substâncias.

Nas Américas, segundo dados do Monitor de Políticas de Drogas do Instituto Igarapé, dos 36 países do continente apenas 8 têm o uso de todas as drogas descriminalizado: Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Peru, Uruguai e Venezuela. Outros sete países na região descriminalizam somente o uso da maconha.

Aumento da criminalidade?

Outro argumento apresentado pelo relator é que a descriminalização das drogas pode impulsionar outras atividades criminosas, como homicídios e outros tipos de delitos. Pesquisadores enfatizam que a relação entre drogas e criminalidade, contudo, não deve ser tratada superficialmente.

“Não há qualquer evidência consistente que apoie a ideia de que a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal leve ao aumento de homicídios e crimes patrimoniais. Algumas experiências internacionais, como a de Portugal, sugerem uma redução na violência relacionada ao tráfico e mortes por overdose após a descriminalização”, sugere o professor.

Embora exista uma conexão entre o tráfico de drogas e a criminalidade, nem sempre é direta a relação entre o comportamento compulsivo e prejudicial dos usuários e o crime.

Além disso, as políticas de combate às drogas, frequentemente fundamentadas na punição e na repressão, podem agravar o problema, gerando um ciclo de criminalidade e encarceramento.

Esse é o cenário vivido pelo Brasil há décadas, que prende muito, mas prende mal.

“O foco em políticas de saúde pública e redução de danos pode, de fato, contribuir para a diminuição de crimes associados ao tráfico de drogas”, afirma Tófoli.

Países que descriminalizaram totalmente ou parcialmente as drogas, trouxeram à discussão para outra esfera da saúde pública.

Em Portugal, por exemplo, onde o porte de qualquer substância é descriminalizado, um grande projeto de prevenção e recuperação dos dependentes foi colocado em prática pelo Estado, em paralelo ao desencarceramento em passa de usuários.

O governo português trocou as punições pela política da redução de danos ao permitir a compra e posse de suprimentos para dez dias.

Apesar de o consumo global de drogas não ter diminuído, o de heroína e cocaína, duas das mais problemáticas, passou de afetar 1% da população portuguesa para 0,3%, em 2019, segundo dados da Agência Piaget para o Desenvolvimento (Apdes).

As contaminações por HIV entre os consumidores caíram pela metade e a população carcerária por crimes relacionados às drogas caiu de 75% a 45%.

“Em países que adotaram essa abordagem, como Portugal, não há evidências claras de um aumento na procura de drogas devido à facilidade de acesso. Pelo contrário, a descriminalização pode facilitar o acesso a serviços de saúde e tratamento para usuários, sem aumentar a procura por drogas ilícitas”, relata Tófoli.

A discussão sobre a descriminalização das drogas e os efeitos dos entorpecentes na sociedade são temas legítimos. No entanto, a guerra às drogas muitas vezes leva a que as preocupações com a saúde pública, que deveriam ser o principal objetivo do controle de drogas, fiquem em segundo plano. Iniciativas como a descriminalização dos usuários não devem ser consideradas sinônimo de autorização ou incentivo ao consumo de drogas.

Discussão no STF

A PEC do Senado confronta o posicionamento até então majoritário do Supremo Tribunal Federal em relação à descriminalização do porte de maconha.

Apesar de a Corte ainda não ter concluído o julgamento, os ministros devem aprovar a possibilidade de fixar um critério que diferencie o usuário de traficante quanto ao porte.

Até o momento, a maioria dos ministros concluiu que esse critério é necessário, já que sem uma definição a lei pode ser aplicada às pessoas de forma desigual e injusta.

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