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Brasil vs. Brazil

O segundo turno entre Lula e Bolsonaro consolida a polarização social no País

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Lula fez 77 anos nesta quinta-feira 27 e, se eleito presidente, deseja só mais quatro anos no poder, nada de reeleição, conforme havia escrito no Twitter dois dias antes. Nas pesquisas, é o favorito, com vantagem sobre o adversário similar àquela do resultado do primeiro turno, de 4 a 5 pontos porcentuais. É o líder de uma das metades de um País que, não importa o ganhador, sairá rachado das urnas. O nordestino que ainda criança deixou Pernambuco com a mãe e os irmãos rumo a São ­Paulo é a cara do Brasil da diversidade, colorido, popular. Entre negros e pardos, mulheres, católicos, trabalhadores que ganham até dois salários mínimos e estudaram até o ensino fundamental, tem folga acentuada nas pesquisas.

Jair Bolsonaro, de 67 anos, é o líder da outra metade, reacionária. Entre brancos, homens, evangélicos e eleitores com renda de dois a cinco salários mínimos, lidera nas pesquisas. O capitão nasceu em Glicério e foi criado em Campinas e Eldorado, três cidades do interior paulista. Seus trisavós haviam trocado uma pequena cidade da Itália, Anguillara Veneto, por São Paulo em 1888, ano do fim do último regime escravagista do mundo. A imigração promovida pelas elites brasileiras naquele tempo buscava “branquear” a nação, livrar-se dos negros que elas próprias haviam sequestrado e importado. Imigrantes que, não raro, reproduziam o preconceito contra os negros.

“A polarização social chegou ao Brasil. Votar em Lula e em Bolsonaro é, de certa maneira, ato de identidade de grupo: pobre e rico, preto e branco, Norte e Sul”, diz o cientista político Felipe Nunes, da UFMG e da consultoria política Quaest. “Os norte-americanos demoraram 50 anos para que essa divisão acontecesse, no Brasil ela se consolidou em 15 anos.”

A derrama de dinheiro público, na tentativa de comprar votos, e o assédio eleitoral de empresários desafiam as instituições

Apesar da dianteira de Lula nas pesquisas, Bolsonaro tem chances por causa da abstenção, dos indecisos (de 3% a 5% nas pesquisas) e dos eleitores do petista que admitiam mudar de ideia (7%, num levantamento da Quaest para o Banco Genial). A abstenção é maior entre os pobres, os mais propensos a votar em Lula. Contra ela, o comitê lulista conseguiu decisões judiciais que facilitam o transporte público gratuito no dia da eleição. O último programa do petista no horário eleitoral, na sexta-feira 28, seria dedicado a estimular o cidadão a ir votar. Era o dia do debate na Rede Globo, último grande fato político antes da votação, e ambos os candidatos capricharam na preparação. O embate, segundo analistas, definiria a posição dos indecisos.

De qualquer forma, na eleição mais suja desde o fim da ditadura, Lula é favorito graças ao Nordeste, lar de 42 milhões de eleitores, 27% do total. Sua vantagem na região sobre Bolsonaro foi de 13 milhões de sufrágios no primeiro turno, 66% a 27%. No Brasil todo, de 6 milhões. Na média de três pesquisas da última semana da campanha ­

(Genial/Quaest, Ipec e Ipespe), o ex-presidente ganhava no Nordeste por 67% a 26%. Uma de suas prioridades em outubro foi tentar alargar a preferência nordestina (Bolsonaro buscou reduzir a goleada). Viajou a quatro das nove capitais da região, que também tem grandes metrópoles, não é só sertaneja. Entre as dez maiores cidades brasileiras, três estão lá: Salvador (4a), Fortaleza (5a) e Recife (9a). “Nos governos do PT, a região passou por transformações que são visíveis para qualquer um que viva aqui”, lembra o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., professor de universidades públicas no Nordeste.

O “Capitólio” de Jefferson acabou no Irajá, com o falso padre e o policial amigo – Imagem: Redes sociais

Carolina Patrícia dos Santos, de 45 anos, mora no Recife e trabalha em uma ONG que atende crianças e jovens carentes. Em 2005, no governo Lula, perdeu o emprego de serviços gerais e sobreviveu quatro anos com o benefício do Bolsa Família. Votará no ex-presidente. “O desemprego hoje é muito grande, vejo as pessoas pedindo comida na ONG, nas ruas. Já estamos lascados, se o Bolsonaro for reeleito vai ser pior ainda.” Não é, porém, uma realidade nacional. O presidente teve larga dianteira no primeiro turno, e repetirá a dose, em áreas agrícolas, como o interior paulista, o Centro-Oeste e o Sul. No seu governo, o PIB do agronegócio ficou 30% maior do que no quadriênio anterior, informa a consultoria LCA, graças ao preço das commodities e ao dólar a 5 reais. A produtora cultural Maiene Horbylon, de 33 anos, é de Ipameri, cidade goiana de 27 mil habitantes que vive de algodão e soja. Vota em Lula, mas o pai médico e a mãe arquiteta vão de Bolsonaro. O dinheiro corre no seu município no embalo das exportações rurais, o que beneficia indiretamente a família. “A percepção deles de vida é que está tudo melhorando. Não existe morador de rua na cidade.”

Transformar o País em uma fazendona não basta para gerar desenvolvimento e melhorar a vida da população. A produção rural representa só 8% do PIB (o agronegócio todo, 25%). Dos 99 milhões de empregos existentes em setembro, agricultura, pecuária e pesca respondiam por apenas 8,7 milhões, informa o IBGE. Vagas que pagavam, em média, 1,8 mil reais, menos que a indústria (2,6 mil), o comércio (2,2 mil) e a construção civil (2,1 mil). O salário médio dos trabalhadores em geral era de 2.737 reais, menos que no mês anterior à posse de Bolsonaro (2.804 reais). É quase o mesmo valor de dez anos atrás (2.673 reais), o que significa que compra bem menos, por causa da alta dos preços, sobretudo da comida. De janeiro a setembro deste ano, a inflação dos alimentos é recorde no Plano Real, 9,5%. No ano passado inteiro, tinha sido de 8%. Em 2020, de 14%. Em 2019, de 6%.

A derrama de dinheiro público, na tentativa de comprar votos, e o assédio eleitoral de empresários desafiam as instituições

O desemprego em setembro era de 8,7%, o menor desde 2015, mas as vagas abertas pagam mal. Uma das explicações é a reforma trabalhista de Michel Temer, que precarizou o emprego. Outra é o fim dos ganhos reais do salário mínimo no atual governo. Bolsonaro será o primeiro presidente pós-Plano ­Real a deixar um piso com menos poder de compra do que encontrara. Antes dele, uma cesta básica em São Paulo custava 53% do piso. Em setembro, saía por 66%, conforme o Dieese. Na última semana do horário eleitoral gratuito de rádio e tevê, o presidente prometeu que, reeleito, dará aumento real ao piso. Jura? O orçamento de 2023 proposto pelo governo ao Congresso em agosto não tem ganho real. Paulo Guedes, o ministro da Economia, tem planos de achatar ainda mais o mínimo em um novo governo.

A última semana de horário eleitoral foi dominada por temas econômicos, sinal de que Bolsonaro sucumbiu ao debate desejado pelo oponente, assim como Lula havia se rendido na semana anterior à guerra santa rival. O povão sofre mais com o peso do custo de vida, pois lhe falta folga financeira. Entre aqueles que têm renda domiciliar de até dois salários mínimos, Lula batia Bolsonaro por 57% a 34% na média dos levantamentos Genial/Quaest, Ipec e ­Ipespe. No segmento de renda de dois a cinco mínimos, o presidente vencia por 53% a 46% na média das três. Eis por que os candidatos prometeram elevar a isenção do Imposto de Renda para 5 mil (Lula) e 6 mil reais (Bolsonaro).

Em desvantagem no quesito “economia”, Bolsonaro uniu-se ao Congresso do orçamento secreto e, diante da omissão da Justiça mais cara do mundo, usou escandalosamente a máquina pública em busca de votos ao longo de toda a campanha. Barateou a gasolina, subiu o Auxílio Brasil, anunciou um bônus para taxistas e caminhoneiros para pagar em dezembro, concedeu anistia de dívidas na Caixa Econômica Federal, abriu um crédito especial do banco para mulheres empreendedoras e pequenas empresas.

Os patrões também jogaram pesado em seu favor. Até a conclusão desta reportagem, na quinta-feira 27, Bolsonaro havia recebido 86 milhões em doações de privadas, o grosso saído das contas de empresários. Do fundo eleitoral dado aos partidos, o presidente havia coletado apenas 19 milhões. A candidatura de Lula foi bancada praticamente sozinha pelo fundo eleitoral do PT: 122 milhões, dos 126 milhões arrecadados. E houve assédio eleitoral nas empresas. O Ministério Público do Trabalho registra recorde de denúncias, mais de 1,6 mil nas últimas semanas. No primeiro turno, foram 45. Na campanha passada, 212. Um ruralista baiano, Adelar Eloi Lutz, selou acordo e pagará multa de 150 mil reais por ter pedido a suas trabalhadoras que entrassem na cabine de votação com o celular no sutiã, para elas registrarem o voto no presidente. A investigação das denúncias continuará depois da eleição. Quem for punido, não poderá tomar crédito público. No Senado, Alexandre Silveira, do PSD, conseguiu assinaturas para uma CPI.

Moraes barrou a enésima tentativa, desta vez do ministro Faria, de melar a eleição – Imagem: LR Moreira/TSE e Alan Santos/PR

O estado campeão de denúncias de assédio foi justamente aquele de Silveira, Minas Gerais. O terceiro maior berço de votantes (16 milhões) foi um dos grandes palcos da batalha do segundo turno. Lula e Bolsonaro viajaram a várias cidades mineiras. O petista tinha vencido no primeiro turno por diferença de 600 mil votos, 48% a 43%, mesmos porcentuais do resultado nacional. O capitão tentou encorpar a distância para o adversário no Sudeste, abrigo de 66 milhões de eleitores, 42% do total, e que lhe dera vantagem de 2,4 milhões de votos, 47% a 42%. Uma virada em Minas era crucial no seu plano. Uma pesquisa

Genial/Quaest da quinta-feira 27 mostrava, porém, 45% a 40% para o petista e 8% de indecisos. Cinco dias antes, uma juíza eleitoral, Raquel de Paula Rocha Soares, havia ordenado a apreensão de um material mentiroso contra Lula descoberto num comitê de Bolsonaro em Belo Horizonte. Os panfletos associavam o petista a práticas imorais com crianças e bichos, entre outras.

Ao longo da campanha, o Tribunal Superior Eleitoral fez o que pôde contra as fake news. Era essa a principal missão da Corte neste ano, conforme afirmou Alexandre de Moraes ao assumir o comando dos trabalhos, em agosto. A pedido dos candidatos, o TSE mandou tirar do ar, nas redes sociais e na tevê, uma penca de lorotas. Seu corregedor, Benedito Gonçalves, conseguiu, em alguma medida, domesticar Carlos Bolsonaro, miliciano-digital-chefe e marqueteiro de fato do pai. Primeiro, dera-lhe um prazo curto para se defender, antes de decidir se o excluiria das redes sociais na última semana da eleição, como queria o PT. Na segunda-feira 24, botou-o sob monitoramento do tribunal e avisou: um passo em falso e ele sairia do ar. Outro monitorado foi o deputado André Janones, lulista influente nas redes. Bolsonaro havia requerido o sumiço do parlamentar das plataformas em razão de fake news.

O TSE barrou a farsa das inserções de propaganda eleitoral inventada pelos bolsonaristas

Na reta final da campanha, Moraes foi duro diante de uma tentativa bolsonarista de tumultuar as coisas. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, fez uma denúncia fantasiosa de que que rádios do Nordeste e de Minas veicularam horas e horas a mais de propaganda eleitoral de Lula do que de Bolsonaro. Moraes pediu provas “sérias” em 24 horas, do contrário abriria inquérito contra os acusadores, por crime eleitoral. O que Faria enviou-lhe não era nada convincente, e Moraes cumpriu o aviso. Na sua decisão, citou a tentativa de “tumultuar” a eleição. Mais: juntou o caso àquele inquérito do Supremo Tribunal Federal que investiga as milícias digitais bolsonaristas.

Após a decisão de Moraes, Bolsonaro convocou ministros e aliados e, em seguida, deu uma entrevista um tanto quanto isolado e em tom de derrota: “As inserções de rádio fizeram a diferença ou poderiam ter feito”. É o roteiro de ­Donald Trump ao ser vencido por Joe ­Biden: inventar uma fraude e não reconhecer que perdeu. Lá, foram os votos pelo correio. Aqui, a propaganda de rádio e, claro, as urnas eletrônicas. Passado o primeiro turno, os militares não divulgaram o relatório que preparavam a respeito. Foi para não atrapalhar a trama golpista do capitão? Para enfraquecer o golpismo, o TSE organizou a maior missão de observadores internacionais da história das nossas eleições. Lula e o PT costuraram uma espécie de acordo com chefes de Estado, que vão parabenizar o petista tão logo a ­Corte termine de contar os votos e ­Lula de fato vença. Argentina, Alemanha, ­Espanha, França, México e Portugal são ­alguns dos que devem se manifestar.

Guedes continua a ser grande cabo eleitoral de Lula – Imagem: Evaristo Sá/AFP

Moraes também havia sido duro, mas na condição de juiz do Supremo, com o ex-deputado Roberto Jefferson, bolsonarista que recebeu com fuzil e granadas a equipe da Polícia Federal que havia ido prendê-lo por ordem do STF, no domingo 23. Uma resistência que, tudo indica, pretendia servir de estopim para algum tipo de convulsão social. Os bolsonaristas são mais engajados e militantes do que os lulistas, a julgar pelo que se vê nas pesquisas. São convencidos de que é verdade tudo o que o presidente diz sobre o rival encarnar o “mal”. “Votei no Bolsonaro e vou votar de novo por causa da corrupção do governo Lula e porque sou contra o aborto, a ideologia de gênero e o controle da mídia, que é uma agenda do PT”, diz o médico José Olegário da Cruz Neto, de 34 anos, nascido no Ceará e morador de Brasília. “Meu sentimento será de frustração se o Lula ganhar, o País terá um grande retrocesso.”

O dia seguinte não será só de festa para quem ganhar. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Brasil vs. Brazil”

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