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Carlos Bolsonaro é a peça central de uma engrenagem de mentiras que o TSE vai investigar na reta final da eleição

Guia. Dois dias depois de passar mal, Carluxo orientava o pai no debate da Band. O vereador tomou as rédeas da campanha - Imagem: Nelson Almeida/AFP
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Carlos Bolsonaro, o Carluxo, passou mal e foi levado à emergência do Hospital das Forças Armadas, em Brasília, na sexta-feira 14. Dois dias depois, surgia ao lado do pai no debate da Band, em São Paulo. Durante o programa, orientou Jair Bolsonaro sobre o que falar e como manter a distância correta das câmeras. Pela proximidade entre ambos, por sua influência sobre o ex-capitão e pelo que está em curso na campanha, não há dúvida, Carluxo é o marqueteiro da reeleição. “As ideias são macabras, são sombrias, e assustam qualquer brasileiro de bem”, afirmou a respeito de Lula no fim do debate, em rara declaração pública.

Demonizar o petista e tentar fazer da eleição uma “luta do Bem contra o Mal” é a estratégia central de Bolsonaro e sua máquina de propaganda e mentiras nas redes sociais. Uma operação que busca associar Lula e o PT à bandidagem e ao PCC, que teve capítulo especial na véspera do primeiro turno, por meio da distribuição maciça de “notícias” sobre Marcola, chefe da facção, e que pode vir a se repetir no segundo turno, com a ressurreição de Adélio Bispo, autor da facada em Bolsonaro há quatro anos. Uma operação que transbordou do submundo das redes sociais para a mídia convencional, graças ao apoio, entre outros, da rádio Jovem Pan, alvo de investigação aberta pelo Tribunal Superior Eleitoral.

De olho. Gonçalves, corregedor do TSE, avança sobre a máquina de mentiras – Imagem: LR Moreira/TSE

Para o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, o fato mais grave da eleição é justamente a difusão de fake news pela mídia tradicional. Foi o que comentou com integrantes da campanha petista na segunda-feira 17, segundo uma testemunha. Dois dias depois, perante executivos das chamadas plataformas (Twitter, YouTube etc.), cobrou o cumprimento mais acelerado das ordens do tribunal para a exclusão de mentiras: “De quanto vocês precisam? 15 minutos?” As notícias falsas, disse, cresceram muito no segundo turno, situação que obriga a Corte a ser mais dura. Na quinta-feira 20, dia da conclusão desta reportagem, o TSE votaria uma resolução para usar seu poder de polícia e obrigar, sem que ninguém peça, as plataformas a tirar do ar fake news carimbadas como tais pela Corte anteriormente.

E quanto a Carluxo, o TSE irá tirá-lo de circulação das redes? O vereador está no centro da guerra jurídica travada entre as campanhas do pai e de Lula. Na terça-feira 18, o corregedor-geral do tribunal, Benedito Gonçalves, deu a Carlos três dias para apresentar defesa prévia em processo movido por advogados do petista contra o que descrevem como “ecossistema de desinformação”, montado e financiado para favorecer Bolsonaro e que funcionaria de forma “orquestrada” e com “alcance exponencial” nas redes sociais. O vereador é apontado como “figura central” da engrenagem, em razão dos 2,7 milhões de seguidores no Twitter, a “ágora” do ecossistema. Entre as 47 pessoas físicas listadas na engrenagem, só Bolsonaro tem mais fiéis na rede social, 9,4 milhões.

O TSE determinou ao YouTube que pare de pagar quatro canais bolsonaristas propagadores de fake news

Gonçalves abriu a investigação contra os 47 suspeitos para apurar se há abuso de poder político e econômico e uso indevido das redes sociais. Deu a todos, lista que inclui o clã presidencial, jornalistas e parlamentares, cinco dias para se defenderem. A Carlos, deu menos. Com base nas defesas prévias, o juiz decidirá se concede uma liminar solicitada pelo PT para excluir os perfis de toda essa turma nas redes sociais. É o sonho lulista: despoluir as redes na última semana da campanha, diante da constatação de que o TSE tem enxugado gelo ao mandar tirar do ar mentiras específicas. Detalhe: esse processo, quando terminar em algum momento do futuro, pode levar à cassação do beneficiado por abuso de poder e uso indevido da mídia. No fim do ano passado, o TSE julgou que as redes sociais são equivalentes à mídia convencional e, portanto, seu uso fora das regras pode levar à cassação de políticos.

Em relação a algumas pessoas jurídicas do “ecossistema”, Gonçalves aceitou certos pedidos da equipe de Lula. Determinou ao YouTube que pare de pagar quatro canais que ganham dinheiro com fake news de interesse do presidente. As empresas atingidas são Foco do Brasil, Folha Política, DR News e Brasil Paralelo. São empreendimentos que cresceram durante o mandato de Bolsonaro. As duas primeiras têm cerca de 2,5 milhões de seguidores cada uma e faturam, individualmente, perto de 67 mil dólares por mês (quase 350 mil reais) com conteúdo no YouTube. O dono da Foco do Brasil, Anderson Rossi, tem acesso facilitado aos palácios do governo. Os da Folha Política, Ernani Fernandes Barbosa Neto e Thais Raposo do Amaral Pinto Chaves, receberam, entre 2017 e 2018, recursos de um deputado, Fernando Francischini, cassado pelo TSE em 2021 por ter espalhado mentiras sobre as urnas na campanha de 2018.

A Brasil Paralelo pertence a um trio gaúcho: Filipe Schossler Valerim, Henrique Leopoldo Damasceno Viana e Lucas Ferrugem de Souza. Trata-se de uma produtora de conteúdo que tem serviço de streaming, algo do gênero da Netflix. É outro caso de crescimento vertiginoso no atual governo. Sua receita anual dobrou, anda pela casa dos 60 milhões de reais. A empresa lançaria na segunda-feira 24, início da última semana da eleição, o documentário Quem Mandou Matar Jair Bolsonaro, no qual apresentaria três teorias (conspiratórias) sobre a facada de Adélio Bispo. O corregedor do TSE proibiu a exibição do documentário antes do fim do segundo turno e definiu multa de 500 mil reais por dia, em caso de exibição indevida.

Seria coincidência o documentário ir ao ar na reta final da campanha? Cheira, na verdade, a um repeteco de algo visto na véspera do primeiro turno. Em 1° de outubro, o site lavajatista O Antagonista “noticiou”, com base em papelada da Polícia Federal, que Marcola, chefe do PCC, teria declarado voto em Lula, em conversa gravada. A gravação faria parte de uma batida policial de agosto para desvendar um suposto plano de fuga de líderes da facção. Moraes mandou tirar do ar a “notícia”, por se tratar de mentira: condenado não vota. No caso de Adélio e da facada, o delegado da PF que assumiu o caso no início do ano, Martín Bottaro Purper, quer interrogar o esfaqueador, conforme noticiou a Folha de S.Paulo na terça-feira 18. O momento não poderia ser mais conveniente para o clã presidencial.

O PT luta no tribunal pelo direito de exibir a declaração de Bolsonaro sobre “pintou um clima” com adolescentes venezuelanas

Em 7 de julho, a Brasil Paralelo liberou gratuitamente no YouTube outro documentário, Quem Mandou Matar Celso Daniel, baseado na tese fantasiosa de que o PT estava unido ao PCC no crime. A veiculação deu-se dias depois de o bolsonarismo ressuscitar uma delação premiada de 2017 do publicitário Marcos Valério, aquele do “mensalão”, recheada de alegações antigas e sem provas a respeito de PT, PCC e o assassinato. A pedido dos petistas, o TSE não só vetou a exibição do filme, como também proibiu o bolsonarismo de associar Lula e o partido ao homicídio. Na ação de agora contra o “ecossistema” midiático do bolsonarismo, o comitê lulista diz que o tema “crime e violência” é “a aposta central dos investigados para desequilibrar o processo eleitoral em favor de Jair Bolsonaro”. Mais: o “fio condutor” dessa aposta é a vinculação de Lula e o PT ao PCC e à morte de Daniel.

A vinculação é uma das razões de o TSE ter aberto uma investigação contra a Jovem Pan. A emissora é concessão pública e tem de seguir regras legais e constitucionais. A Lei das Eleições, de 1997, impõe que, em época de campanha, rádios e tevês tratem candidatos de forma igual. Do contrário, é abuso de poder e uso indevido do veículo, situações que podem levar à cassação do candidato beneficiado, conforme outra lei, de 1990. O tribunal examinará se os comentaristas e jornalistas da emissora, ao esculhambarem Lula e louvarem Bolsonaro dia sim, outro também, prestaram-se a abuso e ao uso indevido da concessão. Na mira estão o dono da emissora, Antonio Augusto de Carvalho Filho, o Tutinha, e outra empresa dele, a Digital Seven. O inquérito havia sido pedido pela campanha de Lula. Na ação, os advogados ressaltam que a Jovem Pan recebe favores do governo. Em 2018, último ano de Michel Temer, a rede recebeu 840 mil reais da verba federal de publicidade. Com Bolsonaro, o total saltou para 2 milhões, em média, por ano. A emissora, diz a ação, “se engajou no ecossistema bolsonarista e passou a ser uma das principais fontes de fake news nas eleições de 2022” e “o braço mais estridente do bolsonarismo”.

Reação. Moraes quer mais poderes para barrar a desinformação na campanha – Imagem: Marcelo Camargo/ABR

Os lulistas queriam uma liminar que obrigasse o conglomerado midiático a tratar Lula e Bolsonaro da mesma forma. O corregedor do TSE recusou o pedido, mas acatou a investigação. “Comentaristas da Jovem Pan, em programas de grande audiência, têm reverberado discursos do candidato à reeleição, Jair Messias Bolsonaro, inclusive no que diz respeito aos ataques a adversários e ao processo eleitoral, sem significativo contraponto”, escreveu Gonçalves. Na quarta-feira 19, o plenário do TSE, por 4 a 3, mandou a emissora tirar de todas as suas plataformas (rádio, tevê, web) qualquer propaganda que diga “Lula mais votado nos presídios” e “Lula defende o crime”. Os jornalistas da casa não podem mais falar a respeito, do contrário terão de pagar multa diária de 25 mil reais. O ex-presidente ganhou ainda direito de resposta. A propósito, no segundo turno da campanha, a apresentadora do programa de Bolsonaro no horário eleitoral gratuito é uma jornalista da Jovem Pan, Carla Cecato.

Na mesma quarta-feira 19, dois ministros do TSE, Maria Cláudia Bucchianeri e Paulo de Tarso Sanseverino, concederam 184 direitos de resposta a Lula contra Bolsonaro. Significa que, nos próximos dias, o petista poderá usar na tevê e no rádio parte do tempo que caberia ao ex-capitão. Ele rebaterá propagandas que diziam ser “ladrão”, “corrupto” e “o mais votado em presídios”. Por outro lado, Sanseverino deu direito de resposta ao presidente para ele se defender da alegação de canibalismo (em um vídeo que circulou nas redes sociais, Bolsonaro conta que no passado quase teria comido um indígena cozido).

O tribunal eleitoral também deu nos últimos dias uma vitória a Bolsonaro em um caso delicado, mas havia chance de uma reviravolta após a conclusão desta reportagem. Em 14 de outubro, o capitão dissera ao canal Paparazzo Rubro-Negro, no YouTube, o seguinte, sobre um passeio na periferia de Brasília: “Parei a moto numa esquina, tirei o capacete, olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas, arrumadinhas no sábado, numa comunidade, parecidas. Pintou um clima, voltei: ‘Posso entrar na sua casa?’ Entrei, tinha umas 15, 20 meninas, sábado de manhã, se arrumando, todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas, 14, 15 anos se arrumando para quê? Para ganhar a vida”. Um dia depois, a chefe do PT, Gleisi Hoffmann, tuitara: “Bolsonaro confessa que pintou clima com meninas de 14, 15 anos. Que entrou na casa das garotas… O que mais vamos saber desse homem?! Depravado, criminoso”.

Mesmas armas. Janones defende uma ofensiva contra as mentiras bolsonaristas – Imagem: Redes sociais

Nas redes sociais, o candidato à reeleição foi chamado de “pedófilo”. A campanha recorreu ao TSE para que o falatório parasse sob o argumento de que a declaração teria sido tirada de contexto. Moraes, de plantão no domingo 16, deu-lhe liminar favorável. O PT recorreu. Pede o direito de reproduzir o vídeo na íntegra, sem cortes, para mostrar a “lascívia sexual” do chefe da nação. O episódio contado pelo presidente aconteceu mesmo, em 10 de abril de 2021. Em duas outras ocasiões antes do dia 14, ele o havia descrito publicamente. Em 16 de maio e em 12 de setembro. Nas duas vezes, insinuou que as meninas eram prostitutas, embora sem usar a expressão “pintou um clima”. O que se passou em abril de 2021 não foi, porém, nada daquilo. As moças eram alunas de um curso de beleza, não prostitutas. Informação constatada em um vídeo gravado ao vivo, na época, pelo próprio presidente.

Bolsonaro sentiu o baque da frase “pintou um clima”. Apareceu em uma live de madrugada na web para se explicar, depois gravou um vídeo ao lado da esposa, Michelle, para pedir desculpas caso suas palavras tenham sido “mal-entendidas ou provocaram algum constrangimento às nossas irmãs venezuelanas”. Em reunião via internet de Lula com seus militantes, na terça-feira 18, o senador Randolfe Rodrigues, da Rede, um dos coordenadores da campanha lulista, disse que o tema deveria ser mantido em exposição, pois “foi diagnosticado como um ponto falho” do oponente. Na mesma reunião, o deputado mineiro André Janones, do Avante, deu dicas à plateia sobre como usar as redes sociais na guerra em curso. Um dos slogans de sua campanha à reeleição tinha sido “pra combater o bolsonarismo de igual pra igual, Janones federal”.

Na terça-feira 18, o PP, partido do presidente da Câmara, Arthur Lira, pediu a cassação de Janones no Conselho de Ética por quebra de decoro. No pedido, o PP destaca: “Resta claro que a expressão ‘pintou um clima’ se refere única e exclusivamente à impressão que Bolsonaro teve de que as meninas venezuelanas estariam se prostituindo”. Mas a gente sabe, PP, que foi isso que ele quis dizer e disse.  •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mentor aloprado “

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