Renan Kalil

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Procurador do Trabalho, doutor em Direito pela USP e professor da graduação em Direito no Insper

Opinião

Direitos previstos na CLT devem ser o patamar mínimo da regulação das plataformas digitais

A omissão consciente e deliberada de direitos trabalhistas vai dar origem a uma subcidadania, em que os principais prejudicados serão homens negros.

Paralisação dos entregadores de aplicativo em São Paulo em 2020. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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Recentemente, o governo federal deu fortes sinais de que pretende promover debates para apresentar uma proposta para regular o trabalho via plataformas digitais no Brasil.

Após encontros com as centrais sindicais e lideranças de trabalhadores, foi anunciado que, no mês de fevereiro, será criado um grupo de trabalho, composto por representantes do governo, trabalhadores e empresas, para o envio de uma proposta ao Congresso. A iniciativa é bem-vinda.

Atualmente, as empresas proprietárias de plataformas digitais não reconhecem quaisquer direitos aos trabalhadores. Isso ocorre em um cenário de submissão a distintas formas de controle, uma relação direta entre dependência e precariedade (quanto mais dependentes da empresa, maior a precariedade das condições de trabalho), déficit de trabalho decente e acentuada desigualdade entre trabalhadores e empresas.

Como assegurar que a cidadania dos trabalhadores via plataformas digitais seja respeitada? Como fazer com que sejam tratados como pessoas e não como mercadoria?

Esses questionamentos são centrais. Se a igualdade é um dos elementos fundantes de nossa sociedade, por que consentimos que os trabalhadores via plataformas digitais sejam tratados como coisas? Por que aceitamos que eles cumpram jornadas extenuantes? Por que concordamos que eles não tenham qualquer apoio quando sofrem acidentes e ficam impossibilitados de trabalhar? Por que não nos incomodamos com o fato deles poderem ser bloqueados a qualquer momento, sem justificativa por parte da empresa?

Por que admitimos que eles não tenham direitos?

É preciso também olhar quem são esses trabalhadores. Um levantamento do IPEA em 2022 sobre a composição do mercado de trabalho no contexto das plataformas digitais apurou que 53% dos motoristas, 73% dos mototaxistas e 55% dos entregadores são homens negros. Para efeitos de comparação, levando em conta dados do IBGE, os homens negros compõem 31,3% da força de trabalho no Brasil. Ou seja, eles são sobrerepresentados nesses setores econômicos. E são eles quem, majoritariamente, têm a sua condição de pessoa negada.

Esse quadro é fundamental para debatermos a regulação do trabalho via plataformas digitais. Algumas das propostas que estão circulando, como a criação de uma categoria intermediária com menos direitos que os previstos na CLT ou o reconhecimento apenas de direitos previdenciários – com uma omissão consciente e deliberada quanto aos direitos trabalhistas – vai dar origem a uma subcidadania em que os principais prejudicados serão homens negros.

Além disso, dará um péssimo sinal para a sociedade: bastará que uma empresa passe a explorar determinada atividade econômica por meio de plataforma digital para ter um salvo conduto para reduzir os valores pagos aos trabalhadores.

O histórico da regulação do trabalho no Brasil não é isento da criação de regras que discriminam os negros. A CLT, outorgada em 1943, excluiu expressamente do âmbito da sua aplicação trabalhadores rurais e domésticos, cuja composição era expressivamente negra naquela época.

Para se ter uma ideia, 77,4% dos não brancos trabalhavam no setor primário em 1940, em face de 65,9% dos brancos. A primeira lei prevendo direitos para os trabalhadores rurais veio apenas em 1963. Para os trabalhadores domésticos, em 1972. O ponto é: vamos repetir a história com os trabalhadores via plataformas digitais?

A elaboração de uma proposta para regular o trabalho via plataformas deve, necessariamente, ter em vista a realidade desses trabalhadores e a dinâmica dessas relações de trabalhom estabelecendo regras que efetivem a igualdade e afastem e discriminação. Os direitos previstos na CLT devem ser o patamar mínimo em torno do qual vamos iniciar o debate.

A partir daí, é possível conceber propostas para aprimorar a proteção desses trabalhadores, como a portabilidade de avaliações entre plataformas, a transparência dos sistemas de avaliação e do funcionamento do algoritmo, dentre outros. É somente dessa forma que os trabalhadores via plataformas digitais serão tratados como pessoas e cidadãos e não como mercadoria.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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