Gustavo Freire Barbosa
[email protected]Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.
O resgate de 207 trabalhadores em condições análogas à de escravos reacendeu um debate sobre a responsabilização das empresas no envolvimento direto ou indireto dos crimes
O Código Civil de 1916, inspirado nos tempos em que a propriedade privada e o contrato não eram sujeitos a relativizações, durou 14 anos após a promulgação da Constituição de 88, resistindo aos limites impostos à sacralidade pelo liberalismo clássico.
A partir da nova Carta magna, o Código Civil se viu submetido a um ordenamento no qual as relações privadas deveriam ser interpretadas a partir do interesse público. O privatismo estaria, agora, preso às determinações constitucionais, onde os interesses da coletividade são mais relevantes.
Dessa forma, perderam valor postulados como o de que “o contrato faz lei entre as partes” e de que o uso da propriedade é irrestrito, subordinado apenas à vontade privada. Ao menos em tese.
Embora os manuais afirmem que houve a constitucionalização do direito civil após 1988, a realidade mostra outra coisa. A legislação privada, afinal, permaneceu 14 anos em vigor, contrariando os limites impostos pela nova ordem constitucional. Apenas em 2002 o Código Civil foi atualizado, consolidando em seu texto previsões como as da função social do contrato e da propriedade, alinhando-se, enfim, à Constituição.
A sobrevivência do Código de 1916 por tanto tempo, mesmo com uma constituição que lhe impunha limites, é um sinal de que há certa essência no direito que o subordina, originalmente, à reprodução das relações capitalistas. É como se fosse esta a sua razão de existir. Vejamos o caso das vinícolas de Bento Gonçalves (RS) e da prestadora de serviços que submeteram mais de 200 pessoas a trabalho análogo à escravidão.
Nossa Constituição, em seu artigo 243, prevê que as propriedades rurais e urbanas em que forem identificadas a exploração de trabalho escravo sejam expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções. Ainda, seu parágrafo único traz que todo e qualquer valor econômico apreendido em decorrência da exploração de trabalho escravo será confiscado e destinado a um fundo especial com destinação específica.
No capítulo que trata da política agrícola e fundiária e da reforma agrária, consta que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (art.184). A função social da propriedade (art. 5º, XXIII), por sua vez, é respeitada quando a propriedade atende às disposições que regulam as relações de trabalho (art. 186, III) e quando sua exploração favoreça o bem-estar dos trabalhadores (art. IV).
Não há dúvidas de que as terras das vinícolas escravocratas devem ser expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de moradia, sem indenização, além de confiscados todos os ganhos decorrentes da exploração do trabalho escravo. Mas já há quem se compadeça com a Casa Grande: enquanto uma entidade representativa das vinícolas atribuiu ao Bolsa Família a responsabilidade pelos trabalhadores escravizados, um vereador de Caxias do Sul (RS) alegou que “baianos”, maioria dos mais de duzentos resgatados, são indolentes que só querem ficar “tocando tambor na praia”.
A tardia renovação do Código Civil escancara o pecado original do direito denunciado pelo jurista soviético Evguiéni Pachukanis ainda em 1924: considerando que a forma-jurídica deriva da forma-mercadoria, é a esta que presta os tributos de sua existência.
Convém ressaltar, todavia, que não se trata de uma relação linear, sem contradições. É exatamente explorando estas contradições, através da luta política concreta, que avanços e conquistas se projetam no campo legal.
Se a propriedade privada resistir a mais essa abominação e não for expropriada e confiscada, teremos mais uma prova da finalidade real do direito e, sobretudo, do pecado original apontado por Pachukanis há quase cem anos.
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