Entrevistas

Gilmar Mendes: Ato de Bolsonaro nada muda e mentores do golpismo também serão punidos

A CartaCapital, o decano do STF também analisa o impacto de investigações sobre militares e o caminho para evitar arbitrariedades como na Lava Jato

O ministro do STF, Gilmar Mendes, em entrevista a CartaCapital
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A manifestação liderada por Jair Bolsonaro (PL) em São Paulo no último domingo 25 não altera as investigações em curso sobre a tentativa de golpe em 2022. Além disso, a sugestão do ex-presidente de anistiar envolvidos nos ataques de 8 de Janeiro de 2023 não tem qualquer cabimento, e a responsabilização alcançará também os mentores do movimento. A avaliação é do ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal, em entrevista a CartaCapital.

Na Avenida Paulista, Bolsonaro defendeu “passar uma borracha no passado” e se referiu aos participantes da depredação das sedes dos Três Poderes como “pobres coitados”. Segundo ele, “já anistiamos no passado quem fez barbaridade no Brasil”.

“Somos nós e nossas circunstâncias. É interessante a defesa da anistia por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro, que tanto critica a anistia aos crimes políticos e de opinião que existiu após o período militar”, reage Gilmar. “O tema certamente será discutido no Congresso Nacional, mas não entendo que tenha cabimento.”

Gilmar Mendes foi empossado no STF em 20 de junho de 2002, indicado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Foi ministro do Tribunal Superior Eleitoral e presidente do Supremo entre 2008 e 2010. Além do trabalho como professor, foi procurador da República, adjunto da Subsecretaria-Geral da Presidência da República (1990 e 1991) e consultor-jurídico da Secretaria-Geral da Presidência da República (1991 e 1992).  Também trabalhou como subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil (1996 a 2000) e advogado-geral da União (2000 a 2002).

CartaCapital, o decano também se manifestou sobre os danos provocados às Forças Armadas por militares investigados pela Polícia Federal, a possibilidade de o Congresso Nacional impor mandatos a ministros da Corte e o caminho a ser percorrido pelo País a fim de evitar a repetição dos desmandos praticados por procuradores e juízes na Lava Jato.

Leia os destaques da entrevista:

CartaCapital: A manifestação em São Paulo tem algum impacto sobre as investigações em curso?

Gilmar Mendes: Não acredito que tenha qualquer impacto. Nós tivemos no passado várias manifestações feitas ou lideradas pelo ex-presidente Bolsonaro, à época no governo, aqueles famosos 7 de Setembro, e isso não afetou o curso das decisões do Supremo Tribunal Federal.

Agora, estamos diante do progresso das investigações e certamente os estrategistas pensaram, por razões as mais diversas, que fazia sentido uma manifestação popular. Mas isso não afeta o curso das investigações, que, nós vimos, são sérias, se louvam em dados existentes nos próprios computadores de pessoas que participaram daqueles momentos bastante tristes da nossa história.

CC: A investigação já demonstrou que houve uma conspiração para impedir a posse de Lula?

GM: Na verdade, eu não posso dar uma resposta afirmativa a essa pergunta, até porque certamente a Polícia Federal prossegue nas suas investigações e também a Procuradoria fará sua avaliação, eventualmente formulando uma denúncia perante o Supremo Tribunal Federal.

Mas os dados de fato são preocupantes, porque havia toda uma combinação de ações com aqueles atores políticos que, por exemplo, participaram daquela reunião de julho [de 2022]: o ministro da Defesa, o então candidato a vice-presidente Braga Netto e tantas outras figuras de naipe ministerial do governo, militares… Tudo isto revela que havia uma combinação para práticas não saudáveis no que concerne à democracia.

CC: Bolsonaro tenta tirar Alexandre de Moraes da relatoria da investigação sobre a tentativa de golpe. Há motivo para isso?

GM: Nada disto. O ministro Alexandre de Moraes foi vítima ao longo desse período de inúmeros vitupérios, de acusações as mais inomináveis feitas inclusive no palanque até pelo ex-presidente da República. Mas isso não o impede de proceder as investigações e devo dizer, inclusive, que ele vem fazendo o trabalho com muita argúcia, com muita perspicácia, com muita pertinência. Não faz nenhum sentido.

Até porque se nós aceitássemos esse tipo de situação, seria muito fácil tirar qualquer relator de um processo. Bastaria ofendê-lo, bastaria fazer ataques e ofensas. Veja que é uma tática comezinha que não pode prosperar.

CC: Bolsonaro defende anistia a presos pelo 8 de Janeiro. Como analisar esse pedido?

GM: Nós somos nós e nossas circunstâncias. É interessante a defesa da anistia por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro, que tanto critica a anistia aos crimes políticos e de opinião que existiu após o período militar.

Portanto, agora ele entende que a anistia seria a técnica adequada da pacificação. O tema certamente será discutido no Congresso Nacional, mas não entendo que tenha cabimento.

Nós vimos a gravidade dos atos que foram praticados contra a democracia, comprometedores do Estado Democrático de Direito e, certamente, a persecução criminal está avançada em muitos casos. Em alguns casos, as denúncias já foram concluídas, inclusive com condenações. Não me parece que tenha qualquer cabimento esse debate agora.

CC: O STF avança na responsabilização dos executores do 8 de Janeiro. Também chegará aos autores intelectuais e a militares envolvidos?

GM: Eu não tenho nenhuma dúvida de que todos aqueles que participaram – e agora estamos a falar dos arquitetos, dos mentores – certamente serão responsabilizados. É bom para o Brasil que assim o seja. Acho extremamente positivo e a própria revelação do nível de participação de cada qual é relevante para que a gente saiba o grau de responsabilidade que cada um tem.

Eu já falei várias vezes sobre a atuação do então ministro da Defesa Paulo Sérgio a propósito das urnas eletrônicas. Nós vimos as suas declarações naquela reunião, em que ele diz que eles, os militares, tinham se aproximado da linha do inimigo. Usa uma expressão talvez da logística militar, algo semelhante a isso. E que eles estavam constrangendo o TSE.

Nós vimos durante muito tempo que ele constrangeu, de fato, o TSE. Todo dia arguia algum fato, entregava alguma carta ao ministro Fachin e à tarde o ministro Fachin respondia a essa carta. Criou-se até um tipo de troca de missivas interessante a propósito dessa situação.

Esse ciclo só se encerra com a assunção da presidência pelo ministro Alexandre de Moraes, que colocou limites à atuação dos militares nesse contexto das urnas eletrônicas. Ele [Paulo Sérgio] também não divulgou o relatório que poria fim a qualquer dúvida, porque os seus técnicos, os técnicos que fizeram a aferição sabiam que não havia nenhum elemento de fraude.

Veja, portanto, que houve um constrangimento proposital feito por um militar, mas não só por um militar, o dirigente máximo do Ministério da Defesa. Isso precisa ter consequências, isso é extremamente sério. E agora nós temos as falas do próprio ministro nessa reunião que precisam ser esclarecidas. De que se trata? Quem é o inimigo? O TSE era o inimigo? O Ministério da Defesa elegeu o TSE como inimigo por qual razão?

Nós vimos aquela atuação bisonha do ministro Paulo Sérgio no Congresso Nacional dizendo que era fácil fazer o teste, dizendo que bastava que alguém votasse na urna eletrônica e depois votasse em uma urna de papel, se dispusesse a ser voluntário.

É claro que isto já engendrava um processo de fraude. Aí, sim, algo fraudável. Quer dizer: a contraprova seria fraudável, porque quem votasse na urna eletrônica de uma forma poderia depois votar na tal urna de papel de outra. Evidente que ele não tinha noção sequer disso.

Ainda há fatos obscuros que também não estão esclarecidos. O tal “hacker de Araraquara” que teria assessorado a comissão do Ministério da Defesa incumbida de fazer a checagem das urnas eletrônicas. São todos fatos lamentáveis que precisam ser esclarecidos.

CC: Há muitos militares implicados nessas investigações. Quais os danos que essas pessoas provocaram às Forças Armadas como instituições?

GM: Causaram um imenso dano, sem dúvida nenhuma, porque todos nós temos o maior apreço pelas instituições Forças Armadas e temos vivido mais de 35 anos de normalidade institucional, desde a superação da ditadura, em 1985, com contributo inestimável das Forças Armadas.

Mas vivemos essa distorção, esse desvio no governo Bolsonaro, com consequências graves para todo o sistema. Eu tenho dito não deu certo a experiência que começa no governo Temer de novamente ter militar no comando do Ministério da Defesa. Deu errado, para ser mais claro, e nós vimos isto com esses episódios.

Certamente nós temos também que organizar aquilo que eu chamo “a fuga para frente”. Nós precisamos, de fato, delimitar as funções que os militares, sem perda da patente e sem ter que ir para a reserva, possam exercer. Nós vimos que no governo Bolsonaro tivemos uma proliferação de militares ocupando as mais diversas funções que nós consideramos da vida civil.

Inclusive, para constrangimento nosso, a atuação do general Pazuello à frente do Ministério da Saúde, que sem dúvida nenhuma agravou já um quadro grave, que era o quadro sanitário então vivido na pandemia.

CC: Lava Jato: o Brasil caminhou em direção a garantir que aquele modus operandi de procuradores e juízes não volte a acontecer?

GM: Acho que demos passos importantes. A própria criação do juiz de garantia, que faz com que o juiz que cuidará do inquérito não cuide do julgamento do caso, é uma medida extremamente relevante e nós precisamos avançar na implementação do juizado de garantia.

É fundamental que todos nós nos mantenhamos ativos para não termos abusos. Eu tenho dito sempre: o combate à corrupção ou o combate ao crime como um todo não pode envolver cometimento de crimes. E nós vimos que até agora isto tudo não foi devidamente inventariado. Estamos a aguardar um relatório do corregedor-geral do CNJ, ministro Salomão, que fez uma inspeção na 13ª Vara de Curitiba e também no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, mas os dados que têm sido divulgados revelam, por exemplo, que o dinheiro depositado à conta desta 13ª Vara transitava para lá e para cá. Fala-se em um movimento de 10 bilhões de reais. Veja que falhamos todos quando não temos um controle sobre isto.

Surgiram propostas as mais esdrúxulas que chegaram a ser concretizadas, como a criação daquela fundação do Ministério Público denominada por vocês de Fundação Dallagnol. Recebendo recursos da Petrobras devolvidos, eles criariam uma fundação que faria política, quase um fundo eleitoral em nome do combate à corrupção. 2,5 bilhões…

Aqui em Brasília também se encetou outra iniciativa, com base naquela Operação Greenfield, em que também se destinariam 2,5 bilhões para o combate à corrupção, envolvendo então a Transparência Internacional e a FGV, então representada pelo professor Joaquim Falcão. E depois a própria FGV, a presidência, repudia esse acordo.

Mas veja, portanto, que nós no Brasil produzimos também uma singularidade: de que supostos combatentes da corrupção cuidavam de ganhar dinheiro, de fazer dinheiro e de administrar fundos, o que é extremamente preocupante.

Nesse campo, inclusive, também a cooperação internacional – e aí vêm americanos, suíços – se dá de maneira esdrúxula. Já houve decisões no sentido de anular as provas que foram carreadas aos autos a partir de transporte que não respeitava a chamada custódia das provas.

O ministro Lewandowski, em um despacho célebre, gravou isso e chamou a atenção para isso. E há o fornecimento dessas informações por agentes americanos ou pessoas que faziam essa atuação da chamada “revolving door”: saíam das posições de agentes públicos nos seus países e vinham oferecer trabalho – isso aparece na Vaza Jato – aos supostos corruptores no Brasil. Acontece até com alguém destacado da Procuradoria suíça. Tudo isso mostra que se criou a vero um Estado paralelo nesse contexto. Isso é extremamente grave e precisa ser de fato revolvido, visitado.

Acho que o Judiciário teria que fazer aquilo que vocês defendem para o passado: uma Comissão da Verdade para essas questões. É preciso que nós saibamos o que de fato ocorreu para que isso não mais se repita.

CC: Os acordos de leniência das empresas na Lava Jato carregam os mesmos vícios das delações premiadas?

GM: É preciso que examinemos isso com todo o cuidado e com toda a profundidade. A rigor, como se sabe, a lei não previu competência para o Ministério Público fazer a leniência. Isso é uma criação. Entendendo que podiam fazer a delação, também extraíram do sistema essa competência, o que já suscita dúvidas. E depois toda a discussão sobre os critérios que adotaram. E às vezes nós temos muitas perplexidades nesses acordos que foram feitos com o Ministério Público da União e também com a CGU e com a AGU.

É preciso entender tudo isso em um contexto mais apurado. Acho que é importante que isso seja questionado, porque de fato isso teve consequências para a nossa economia como um todo. E, ao fim e ao cabo, o que se viu? Um projeto que se revelou um projeto político.

Se dúvidas houvesse, o chefe da chamada força-tarefa da Lava Jato em Curitiba se elege depois deputado federal, hoje deputado federal cassado. O chefe da 13ª Vara Federal em Curitiba se torna ministro de Bolsonaro e combina a ida para o governo ainda entre o primeiro e o segundo turnos, segundo dados existentes. Depois se torna senador pelo Paraná.

Tudo isso mostra que, a rigor, era um projeto político. E as falas sobre o uso desses fundos diziam respeito à ideia de subsidiar as ações: “vamos eleger uma bancada de pelo menos 70 parlamentares”. Veja que o maior partido com representação do Congresso Nacional tem 100 parlamentares, portanto, era algo bastante pretensioso.

Levaram à derrocada todo o sistema político brasileiro, por isso se explica também a eleição de Bolsonaro, que logrou apresentar-se como alguém que não pertencia a nenhuma corrente partidária organizada, ninguém que fosse ou pertencesse ao establishment. Então, é preciso entender isto nesse maior detalhe, nessa maior configuração.

CC: O que dizer sobre a proposta de estabelecer mandatos para ministros do STF?

GM: Eu avalio que um debate sobre Cortes constitucionais precisa ser extremamente aprofundado, a ideia do mandato, a ideia do modelo de indicação. Só para ter uma visão: nós começamos a discutir a reforma do Judiciário que terminou em 2004, a emenda 45, em 92. Depois tivemos na revisão condicional um grande debate em 93 e prosseguimos ao longo desses anos.

É extremamente complexo, até porque mudanças desse jaez que, por acaso, enfraqueçam o Supremo Tribunal Federal, partidarizem ou politizem mais as indicações, podem ser debilitantes da própria cláusula pétrea da independência entre os Poderes. É preciso discutir com cautela essa temática.

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