Entrevistas

As decisões do TST e o GT de Lula podem mesmo frear a ‘uberização’ da economia brasileira?

Em entrevista a CartaCapital, o procurador do trabalho Renan Kalil trata das consequências de discussões que envolvem o reconhecimento do vínculo de trabalho entre os aplicativos e entregadores

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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A falta de garantia dos direitos básicos aos entregadores e motoristas de aplicativo, que dá às plataformas o privilégio de se isentarem da relação empregado-empregador, são ingredientes, que no futuro podem acarretar a desestruturação do mercado de trabalho no Brasil. Essa é a análise do procurador e doutor em direito do trabalho, Renan Kalil

Se legalizarmos as atividades atuais dessas plataformas digitais, questiona, o que impediria outras empresas de simplesmente fecharem e migrarem para um modelo de plataforma? Elas poderiam demitir seus funcionários e, em vez de empregá-los, trazê-los de volta como ‘parceiros autônomos’. Isso poderia abrir um precedente perigoso, permitindo que empresas contornem as leis trabalhistas, alegando serem agora apenas ‘plataformas’, diz o procurador.

“‘Vou pagar menos porque eles não são mais meus empregados, eles são meus parceiros, trabalhadores autônomos”, complementa. “Não tenho a menor dúvida que os trabalhadores serão os principais prejudicados em relação a isso.”

Nesse sentido, algumas decisões recentes do Tribunal Superior do Trabalho, oferecem um lampejo de esperança. Recentemente, por exemplo, reconheceu o vínculo de trabalho, condenou a Uber a pagar 1 bilhão de reais em danos morais e assinar a carteira de todos os seus motoristas — a empresa recorreu.

Na entrevista a seguir, Kalil avalia as repercussões das recentes decisões judiciais e explica como a ‘uberização’ está reconfigurando o mercado de trabalho e o que isso significa para o futuro.

Confira.

CartaCapital: Quais são as recentes decisões do TST e quais os impactos delas?

Renan Kalil: As decisões do TST que reconheceram um vínculo identificaram os elementos da relação de emprego, que a empresa exerce um poder de direção, que ela exerce um poder de organização no momento de determinar como o negócio vai se desenvolver, ela dá ordens para controlar os trabalhadores para que o objetivo da atividade que ela desenvolve, que vai ser o transporte de pessoas ou de mercadorias, ocorra conforme ela deseja.

Essas decisões são de casos individuais, contudo, influenciam o debate público porque a forma de organização dessas empresas impactam todo mundo que trabalha, que faz entrega ou dirige por meio das plataformas digitais. 

Então tem um impacto no debate, tanto jurídico, como no político também, com o GT que o Ministério do Trabalho criou para debater esse tema. 

CC: Esses elementos que o TST reconheceu em casos individuais não poderiam repercutir para o panorama geral?

RK: Sem dúvida me parece que há uma influência, porque ainda que essas essas situações elas tratam de casas individuais, elas olham para o modelo global de organização do negócio dessas plataformas e outros juízes lidando com diferentes casos em face dessas mesmas empresas, é possível que eles identificam essas decisões do TST, para também julgar nesse sentido, e me parece que a gente está diante de uma situação é nova que é: a gente já tem casos reclamações trabalhistas que vêm sendo ajuizadas desde o momento em que essas empresas passam a existir no Brasil. 

O que me parece ser central é que se julgue de acordo com o que está acontecendo na prática, que é o que a gente chama no Direito do Trabalho de princípio da primazia da realidade: não importa o que o papel diz, o que importa é o que está acontecendo na rua.

CC: Pode explicar melhor?

RK: Inicialmente, o TST vinha decidindo não identificar uma relação de emprego. Hoje, a gente vê uma mudança de cenário na corte. Hoje em dia, sete das oito turmas do TST, já julgaram casos que se relacionam com plataformas digitais, quatro turmas com decisões que identificam o vínculo de emprego e três que não identificam.

Não dá para a gente dizer que existe uma tendência consolidada e única no tribunal, mas a gente está nesse momento com mais turmas reconhecendo o vínculo e que antes não reconhecia. 

Outro elemento interessante é como a universidade. A academia vai influenciar em um debate concreto, a gente vê nos votos dos ministros vários desses estudos e um outro aspecto que me parece ser fundamental nessa situação é o avanço da organização coletiva dos trabalhadores. 

CC: Existe algum ponto consensual entre as plataformas quanto aos direitos dos trabalhadores?

RK:  Uma das questões centrais para os trabalhadores – está no breque dos apps, numa série de manifestações que os trabalhadores vão fazendo ao longo dos anos, e é um dos pontos centrais do GT do Ministério do Trabalho – é um valor mínimo assegurado por hora trabalhada, que é o salário mínimo.

Outro ponto que também afeta bastante os entregadores em específico é a empresa ter responsabilidades em relação à saúde e a segurança deles. A gente está em São Paulo, que é uma cidade que tem uma quantidade enorme é de acidentes de motociclistas diariamente e num cenário em que a gente tem uma centenas de milhares de trabalhadores atuando por meio de plataformas digitais para fazer entrega, é inevitável que esses trabalhadores sofram com esse cenário de um trânsito muito difícil. 

A empresa assumir responsabilidade em relação a isso é fundamental, inclusive para que o trabalhador consiga sair de casa e voltar inteiro no final do dia. 

CC: Como você analisa o argumento das empresas contra o reconhecimento de vínculo empregatício? 

RK: Essas empresas tentam se apresentar para a sociedade como se fossem uma coisa completamente nova. É verdade que tem alguma novidade no trabalho que elas fazem, a gente não vai negar isso, mas existe um avanço no uso da tecnologia para elas organizarem a atividade econômica delas e é o que as torna diferentes. A grande questão é: por que elas devem, por esse motivo, serem tratadas de uma forma diferente? 

Se você decide abrir é uma empresa, de qualquer setor tradicional, uma padaria vamos dizer, você vai ter que cumprir todas as regras existentes no País em relação aos impostos que você vai pagar, às licenças que você vai ter que ter para começar o seu negócio, aos direitos que você vai pagar para os seus trabalhadores.

Ótimo, ela tem uma tecnologia que permite ela se colocar como um ator diferenciado no mercado, ela vai conseguir ter mais lucros por conta disso, ela vai conseguir se diferenciar de todos os outros competidores. Não é à toa que o mercado de táxi no Brasil mudou substancialmente a partir do momento em que a Uber entra no País.

Agora, a gente deve oferecer para essa empresa benefícios que as outras empresas não possuem? Não me parece ser razoável.

CC: As críticas à formalização também encontram eco entre alguns trabalhadores dos apps, não?

RK: Eu não nego também que existem pontos que podem ser aprimorados na legislação trabalhista. Mas o que a gente tem consolidado na CLT tem que ser um ponto de partida para a gente pensar na proteção que a gente vai oferecer pro trabalhador.

Os trabalhadores têm outras demandas que me parecem seriam importantes de serem reguladas, em relação a transparência dos algoritmos, a como é feito esse gerenciamento da atividade deles, me parece razoável que a gente preveja regras de transparência, porém esse debate deveria ter como ponto de partida isso que a gente já reconhece aos trabalhadores e não como se fosse um ponto de chegada que a gente não consegue alcançar. O que que vai acontecer se a gente adotar essa racionalidade é uma desestruturação total do mercado de trabalho.

Se a gente legalizar que essas plataformas digitais fazem hoje, o que vai impedir com que todas as outras empresas fechem as estruturas físicas delas, crie uma plataforma digital e mandem todos os seus empregados embora? Não tenho a menor dúvida que os trabalhadores serão os principais prejudicados em relação a isso. A gente está também diante de um momento que ele não é só definidor para motoristas e para entregadores, mas para todos os trabalhadores do Brasil. 

CC: Entregadores e trabalhadores por aplicativo também esboçam preocupação com possíveis quedas no valor das corridas/entregas ou até mesmo questionados por terem dois trabalhos com CLT. Esses fatores podem, de fato, prejudicá-los?

RK:  Primeiro, a exclusividade em relação ao empregador não é um requisito na relação de emprego no Brasil. A gente tem diversas categorias que são conhecidas socialmente, inclusive por terem mais de um vínculo de emprego. 

Em relação a ganhos, me parece que a análise que muitos trabalhadores fazem hoje em dia é que eles deixam de levar em consideração a quantidade de custos que eles têm é para fazer esse trabalho, que hoje são todos pagos pelos próprios trabalhadores.

Em relação a valores que esses trabalhadores vão receber, veja que mesmo hoje em dia, os próprios trabalhadores estão lutando dentro do GT do Ministério do Trabalho para conseguir valores mínimos que se equiparem ao salário mínimo. As empresas vem apresentando uma certa resistência em relação a isso.

CC: Em relação ao Grupo de Trabalho, qual o saldo das ações até aqui e perspectivas para futuras normas?

RK:  O GT é um espaço importante porque valoriza o diálogoMas a iniciativa que o governo tinha no começo era de que uma proposta fosse encaminhada para o Congresso Nacional, algo consensual entre governo, trabalhadores e empresas, e não me parece que é o que vai acontecer.

Nesse sentido, o governo vem sinalizando que ele vai arbitrar a situação e enviar é uma proposta, a partir da compreensão que ele teve dos debates que aconteceram no GT, falando em algumas linhas centrais de remuneração mínima, transparência, Previdência Social, saúde e segurança do trabalho como os principais eixos.

Eu realmente espero que essa proposta não preveja nada menos do que a gente tem consagrado no Brasil hoje em termos de direito para os trabalhadores.

Qualquer proposta que não garanta aos trabalhadores, pelo menos, os direitos que estão previstos no artigo sétimo da Constituição Federal, vai ser um passo atrás, com todas as consequências da desestruturação no mercado de trabalho. 

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