Economia

‘Quer cooptar?’: iFood envia roteiros de vídeos e ‘brindes’ para entregadores influencers

Depois de ter máquina oculta de propaganda revelada, agora empresa investe no que chama de comunidade de influenciadores

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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*Gabriela Moncau

As caixas vermelhas, com o logo do iFood, chegaram pelo correio. Assim que as abriram, cada um dos entregadores influencers se deparou com uma placa de acrílico personalizada com o seu nome.

Uma carta dizia: “Seja bem vindo ao nosso programa de influenciadores. Chega mais! Esse programa é um convite para você ficar por dentro de tudo o que está rolando no aplicativo do iFood para entregadores. Além de novidades e dicas para facilitar o seu dia a dia, ficaremos muito felizes em ter você com a gente nessa experiência”.

Dentro da caixa, uma série de produtos. Um microfone com apoio de mesa. Um ring light com tripé. Itens para enfeitar o cenário dos vídeos: um abajur do iFood, um minicapacete e uma moto de brinquedo. Além de um moletom vermelho, com o logo da empresa na frente e o nome personalizado do youtuber atrás. Esse foi só um dos kits.

Desde janeiro, o iFood investe no que chama de “comunidade de influenciadores”. Selecionou 11 youtubers, para quem envia roteiros de vídeos. Eles não são obrigados a seguir, mas se o fizerem, têm seus vídeos divulgados nas redes sociais e plataformas da gigante do delivery.

“A iniciativa não contempla qualquer contrapartida financeira”, informou o iFood em nota. Além de materiais de trabalho personalizados e “brindes” como caixas?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> de chocolate na Páscoa, os influenciadores receberam uma bolsa de estudos integral na Faculdade das Américas.

Também tiveram uma viagem paga para São Paulo, incluindo hospedagem e alimentação, para participar de um?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> encontro nos dias 3 e 4 de junho, em uma parceria entre o iFood e o Instituto Kondzilla. Na ocasião, atividades sobre como “monetizar conteúdos criados para redes sociais” foram intercalados com dinâmicas, entregas de smartphones, jaquetas, bags e minibonecos personalizados dos participantes do evento.

Influenciador mostra, em vídeo, os produtos enviados pela empresa para ele
Foto: Reprodução/Youtube

Os influenciadores escolhidos pela empresa para compor essa “comunidade” têm os canais Fabão Motovlog, Um Iniciante de Moto, Dinho Motoboy, Breno Freitas Motovlog, Motoka Roseno, Motoboy Essencial, Guerreiros sobre Rodas, Marcelo Castelli, Motoca Raiz BH, Espaço do Motoka e Ralf MT.

No primeiro semestre de 2023, a plataforma lhes enviou quatro roteiros. Os temas foram o score – um novo algoritmo de pontuação do iFood que penaliza com menos pedidos os entregadores que não atingem a nota máxima -, taxa de espera, maio amarelo e educação.

Somados, os influencers têm 304.260 pessoas seguindo suas contas no Youtube. Eles vivem nas cidades de Maceió (AL), João Pessoa (PB), Fortaleza (CE), Teresina (PI), Belém (PA), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG). São os mesmos que, no início de julho, lançaram uma campanha pelo fim das entregas múltiplas – que é quando, em uma mesma corrida, o trabalhador entrega dois ou mais pedidos.

“Quer cooptar?”

O carioca Ralf MT diz que a proposta da empresa chegou a ele via WhatsApp em dezembro de 2022. “Eu aceitei por quê? Porque não fico atrasado no que está para vir, não tenho que esperar as pessoas colocarem”, relata.

“A plataforma tem muita dificuldade de chegar aos entregadores, entende? E os canais têm facilidade para chegar aos entregadores. Então, eles estão tentando – e conseguindo – fazer com que canais bons, que sempre foram de criticar, caiam na lábia deles e no roteiro deles, com a intenção de ser indicado”, avalia Ralf.

“Qual o bom de ser indicado, que não dá para negar? Se meu canal for indicado no app do iFood, vai ser direcionado a motoboys, ajudando no meu trabalho. Mas eu não estou interessado nisso. Então eu faço sempre o roteiro da minha visão”, diz o youtuber do Rio de Janeiro.

“Tanto é que o do score, quando eu fiz o vídeo, viralizou. Deu mais de 30 mil visualizações rápido, e eu postei que ali era para acabar com a autonomia da galera, que já não existia. Eles ficaram putos comigo, não sei nem como continuaram me mandando roteiro. Me ligaram. Eu não falei que ia seguir o roteiro. Eu falei: me manda o roteiro, se eu achar interessante eu sigo. Se não achar, não sigo. E não achei, não segui”, diz Ralf.

“Por que o iFood chama esses caras? Quer cooptar os caras? Qual a ideia desse projeto? Por que me chamaram, se eu sou de questionar? Será que é para tentar mudar minha ideia?”, questiona.

“Estrategista”. É assim que Dinho Motoboy, influenciador que vive em São Paulo, caracteriza a maior companhia do ramo de entrega do país. “Para mim, não passa de o iFood querer nos manipular para que nós manipulemos nossos seguidores”, resume.

Ao ser questionado sobre o motivo de ter aceito o convite, Dinho diz que “para poder levar as pautas do dia a dia” que vê na rua os entregadores falando, em grupos, no seu perfil do Instagram. “Então a galera tem me falado bastante coisa em relação a valores de corrida, tempo de espera no restaurante”, exemplifica. “A intenção do iFood também é de nos ouvir, pelo que eu entendi”, opina.

“Eu só sigo roteiro quando eu faço uma análise do roteiro e vejo que é algo bom para os entregadores ou relevante, aí eu sigo o roteiro direitinho, falo da proposta. Mas se eu vejo que algo não é bom, eu faço meu questionamento a eles”, aponta Dinho, ao mesmo tempo em que afirma que “até agora não apareceu nenhum tipo de roteiro que pudesse comprometer”.

Romero Barroso, de Belo Horizonte, diz que por conta das dúvidas que teve quando começou a fazer entregas, resolveu comprar um capacete com uma câmera e mostrar o dia a dia de um entregador na capital mineira. Hoje o canal tem 18 mil seguidores no Instagram e 14,5 mil no Youtube.

“O iFood me procurou há um tempo atrás, falou ‘a gente está acompanhando o seu canal, bacana demais, a gente queria passar para vocês algumas notícias para vocês divulgarem antecipadamente para os seus inscritos’. Aí criou uma oportunidade de gerar conteúdo para nós, de vez em quando eles iam mandar uns brindes, mas assim, nada de contrato”, relata Romero.

“Normalmente a gente comenta o que a gente acha sobre aquilo que eles estão falando. Mas tem coisas que a gente não opina não, eu pelo menos, tipo isso aqui não vou nem comentar não. Pediu para fazer, beleza, vou fazer”, diz Romero. “Eu me considero um influenciador do iFood. Faço bastante vídeo para eles e tal. Entendeu? Mas sem vínculo nenhum, sem pagamento, essas coisas”, ressalta.

Marketing de influência

Convencer um consumidor, trabalhador ou eleitor sem que ele tenha consciência disso. Espalhar uma ideia no debate público sem assinatura. É isso o que busca o chamado marketing 4.0, como foi nomeado pelo economista estadunidense Philip Kotler. A estratégia, quase lugar comum quando pensamos nas fake news e nos perfis robôs que marcaram as últimas eleições no Brasil, vem sendo usada cada vez mais por empresas.

A máquina oculta de propaganda do iFood para desmobilizar movimentos de entregadores, revelada pela Agência Pública em abril de 2022, é um exemplo explícito. Na ocasião, as agências Benjamim e a Social QI, contratadas pelo app de delivery, interagiam com entregadores por meio de perfis falsos e até de funcionários disfarçados em manifestações, para enfraquecer ou desvirtuar as reivindicações da categoria.

Por conta desta revelação, um inquérito foi aberto e culminou, no último 7 de julho, na assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pelo iFood com o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Trabalho (MPT).

A empresa se comprometeu a investir R$ 6 milhões em pesquisas e projetos sobre as “relações de trabalho com entregadores, mercado publicitário, marketing digital e a responsabilidade social dos controladores de plataformas”. O app de delivery também deve promover, com a Benjamin e a Social QI, uma campanha sobre direito à informação na internet. As multas, caso não respeitem as cláusulas, são de até R$ 500 mil. Apesar do TAC, as empresas dizem não reconhecer ilicitudes no caso.

Outra tática publicitária que mantém a dubiedade sobre quem está emitindo a mensagem e a fronteira porosa entre propaganda e informação, é o chamado marketing de influência. Consiste em fazer com que a ideia da empresa não seja transmitida diretamente por ela, mas por indivíduos que exerçam influência no público que ela quer atingir. Neste caso, não seus clientes, mas seus trabalhadores.

Ao Brasil de Fato, o iFood informou que a “comunidade de influenciadores” visa “ampliar o alcance da comunicação institucional do iFood e manter atualizados os mais de 200 mil entregadores ativos na plataforma”. Disse que o intuito é que os influenciadores “contribuam com a disseminação de informações oficiais e mais atualizadas da empresa, sejam elas mudanças, melhorias operacionais e principais novidades para entregadores”.

Ressaltando que os influenciadores digitais “têm total liberdade para escolher se utilizam ou não os conteúdos disponibilizados pelo iFood”, a empresa afirma que “todos os materiais disponibilizados pela empresa possuem a identificação e a marca do iFood”.

Para a plataforma, isso significa que se trata “de estratégia de comunicação institucional com o objetivo de garantir que informações relevantes para os entregadores alcancem o maior número de pessoas possível, e não de campanhas de publicidade ou marketing”.

A reportagem analisou vídeos dos influenciadores escolhidos pelo iFood. Não há nada que indique quais são baseados em roteiros enviados pela empresa. O uso de roupas e adereços com o logo da marca tampouco indica se o emissor da mensagem fala ou não em nome da empresa, já que a estética produz uma identificação com os trabalhadores do iFood, que no seu cotidiano também usam roupas, bags e bonés com o logo.

Em nota a respeito do TAC assinado pela plataforma, o MPF destaca que “a formação de opiniões deve pressupor a circulação de informações qualificadas, sem tentativas de manipulação dos fatos, e que mensagens dissimuladas ou anônimas prejudicam o debate público e afetam a livre expressão do pensamento”.

O procurador da República Yuri Corrêa da Luz ressaltou que “para que tenham seu direito à informação respeitado, os cidadãos precisam saber se é uma empresa que está postando determinado conteúdo na internet, em qual contexto e para qual finalidade”.

Nebuloso

Autora do livro Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos motoristas da Uber, resultado de seu mestrado, Ana Carolina Paes Leme avalia que as empresas de app usam um sofisticado aparato de comunicação para escapar de enquadramentos jurídicos.

“Eu analisei as propagandas para ver como eles convenciam as pessoas de que ‘x’ não é ‘x’, mas sim ‘y’. Eles convenceram as pessoas de que empregado não é empregado, é microempresário parceiro. Que não é avaliação, é estrelinha. Que não é meta, é promoção. Que não é um salário, é taxa”, expõe Leme, que é também servidora do Tribunal Regional do Trabalho e doutorando da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

“O nebuloso é nebuloso não porque seja de fato, mas porque a empresa quer esconder. Quando a empresa estabelece uma pontuação e pune, isso é uma penalidade dentro de um contrato de trabalho que significa uma subordinação. Não tem outra palavra”, salienta Ana Carolina.

“Então a empresa tenta chamar de score, mas na verdade ela está tentando esconder um poder disciplinar e punitivo que é próprio de um empregador. Ela faz tudo isso porque deseja manter a narrativa de trabalho autônomo”, avalia.

“O que realmente existe é exploração, porque tem uma empresa que usa a propriedade da pessoa, um carro, uma moto, uma bicicleta, os instrumentos de trabalho são custeados pela própria pessoa”, descreve Ana Carolina. “A empresa determina o preço, manda onde a pessoa vai trabalhar, pune e, além de tudo isso, ainda diz que é um trabalhador autônomo”, aponta.

“É uma fachada travestida de muita publicidade, propaganda para convencer as pessoas de que isso é uma empresa tecnológica verde, disruptiva, mas não é algo novo”, diz a pesquisadora.

A respeito da “comunidade de influenciadores do iFood”, a servidora do Tribunal Regional do Trabalho avalia que a empresa “está transferindo o ônus do negócio dela”: “Está transferindo o treinamento de uma organização de trabalho que, segundo ela, é tão complexa que requer a produção de vídeos e roteiros. Portanto, ela deveria contratar esses influenciadores como funcionários, não há dúvidas sobre isso”.

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