Entrevistas

Argentina vai às urnas: como Milei, Bullrich e Massa chegam ao 1º turno, segundo especialista

A maioria das pesquisas indica a tendência de segundo turno; ultradireitista e ministro da Economia despontam como favoritos

Javier Milei, Patricia Bullrich e Sergio Massa. Fotos: Alejandro Pagni/AFP, Juan Mabromata/AFP e Luis Robayo/AFP
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Chegou o dia. Os argentinos vão às urnas neste domingo 22 para o primeiro turno da eleição presidencial que definirá o sucessor do peronista Alberto Fernández.

Os três principais postulantes à Casa Rosada são:

  • Javier Milei, do partido La Libertad Avanza, representante da ultradireita;
  • Sergio Massa, do Unión por la Patria, ministro da Economia e candidato do peronismo; e
  • Patricia Bullrich, do Juntos por el Cambio, aliada do ex-presidente Mauricio Macri.

Em agosto, Milei foi o mais votado nas primárias, com 29,9%. Juntos por el Cambio somou 28% (Bullrich derrotou Horacio Larreta), enquanto Unión por la Patria conquistou 27,3% (Massa superou Juan Grabois).

Nas últimas semanas, a maioria das pesquisas indicou a tendência de haver um segundo turno entre Milei e Massa, a ser disputado em novembro. Para vencer na primeira rodada, um candidato precisa de 45% dos votos, ou 40%, com uma vantagem de 10 pontos sobre o segundo colocado.

Como ministro da Economia, Massa tem de lutar contra uma inflação anualizada de quase 140%, a perda do valor da moeda e o aumento da pobreza, a atingir 40% da população. Ele atribui a crise à dívida com o Fundo Monetário Internacional contraída pelo governo do neoliberal Maurico Macri em 2018, além da pandemia da Covid-19 e de uma seca histórica.

Para projetar o primeiro turno, CartaCapital entrevistou Mercedes Koch, mestre em Estudos Internacionais pela Universidade Torcuato di Tella, de Buenos Aires.

Leia os destaques da entrevista:

CartaCapital: Como Milei, Massa e Bullrich chegam a esta eleição?

Mercedes Koch: Em primeiro lugar, devemos destacar a grande surpresa que tivemos em 13 de agosto, quando começou a contagem dos votos nas primárias e Milei estava vencendo. Foi difícil para nós, como cientistas políticos, prever esse desfecho, porque uma projeção a partir do desempenho nas províncias indicava que o resultado nacional de Milei seria muito fraco.

Em muitas províncias, Milei não apresentou candidatos próprios a governador. Em outras, seus candidatos tiveram um desempenho bastante frágil, como em Tucumán, Córdoba e Salta. Porém, em Salta, Javier Milei, como candidato presidencial, recebeu quase 50% dos votos.

Já Sergio Massa fez uma campanha mais alinhada com o previsto, na qual se dedicou mais a gerir do que a estar de fato em campanha. A verdadeira campanha para ele começou depois de 13 de agosto.

Patricia Bullrich, depois de ter dedicado muita energia para competir e se diferenciar do seu adversário interno nas primárias (Horacio Larreta), consolidou-se como a grande vencedora de seu campo, embora com graves problemas de articulação interna.

Javier Milei e Sergio Massa, candidatos à Presidência da Argentina. Foto: Tomas Cuesta/Pool/AFP

CC: Apesar da crise econômica, Massa se mostra competitivo. Qual é o seu principal trunfo?

MK: Parece incrível que, com uma inflação anual de 138% e um crescimento da pobreza e da desigualdade, vejamos que o candidato governista (que também é o ministro da Economia) é competitivo. Mas a política argentina é complexa e contraditória.

Massa tem como seu principal trunfo ser aquele funcionário que surgiu como salva-vidas em um contexto delicado (após a renúncia do então ministro da Economia, Martín Guzmán, e a curta passagem de Silvina Batakis na pasta), momento em que começou a se destacar a sua participação na coalizão eleitoral.

Até então, como presidente da Câmara dos Deputados, não havia se destacado. Agora, pode-se dizer que os seus principais trunfos são a capacidade de gerir crises e, sobretudo, a vasta experiência de trabalho que dá à sua campanha um selo de qualidade.

CC: Qual é o tom da campanha de Massa?

MK: Em um contexto no qual as demandas sociais são mais complexas e a agenda interna do peronismo busca ganhar espaço em novas agendas, Massa e seus aliados parecem dar um fôlego à coalizão. Em primeiro lugar, algo que devo admitir que me surpreendeu é que ele não se voltou à direita em sua campanha e decidiu disputar algumas bandeiras dos outros dois candidatos.

Por exemplo, na segunda-feira após as primárias, o governo decidiu desvalorizar o dólar oficial, um fato surpreendente porque ocorreu antes da abertura dos mercados e porque não houve notícias prévias a respeito.

Diante disso, o ministro-candidato reiterou diversas vezes que o próprio FMI obrigou o governo a tomar essa decisão, argumentando que teria se esforçado para fazer uma desvalorização de apenas 22%, quando o Fundo pediu 100%. Não só isso. O FMI aprovou dias depois um novo desembolso de 7,5 bilhões de dólares – e a hipótese defendida por vários analistas de que o Fundo seria o grande árbitro da eleição se mostrou equivocada.

Por outro lado, é preciso dizer que Massa procurou eleger o conjunto dos trabalhadores da economia formal como o principal sujeito social. O encerramento da campanha em uma fábrica recuperada, com o slogan “Capital e Trabalho”, resume muito bem seu desejo de ser o representante político dos setores assalariados formais e dos empresários da economia nacional.

Homem de confiança dos dirigentes da CGT [a principal central sindical] e de vários empresários, Massa tenta convencê-los de que é o candidato que garante um modelo de desenvolvimento que os inclue e que protege os interesses nacionais.

Sergio Massa é regido, como diz sua campanha, por quem levanta a bandeira da Argentina. É uma tentativa de enfrentar diretamente a campanha de Javier Milei, que, na área econômica, não só propõe uma abertura às importações, mas uma política monetária ligada à convertibilidade ao dólar.

Massa tem uma posição muito sólida na política externa, na qual encontra muito apoio em parceiros da região e sobretudo o apoio da Presidência de Lula, que colaborou na campanha com sua expertise técnica.

CC: Depois de seu resultado impressionante nas primárias, qual foi o mote da campanha da Milei?

MK: O campo de Milei soube aproveitar muito bem o resultado após as primárias. Enquanto o governismo se questionava e se mantia em silêncio nos primeiros dias, o foco da mídia esteve nos representantes de La Libertad Avanza.

Milei soube se articular muito bem nas entrevistas que concedeu, de acordo com cada entrevistador. Enquanto na mídia nacional ele e Victoria Villarruel [sua vice] tentaram transmitir a imagem de que seu eventual governo não pretende avançar contra tudo, em outros meios de comunicação – internacionais, por exemplo -, Milei procurou se estabelecer como mais um ator da ultradireita.

Deve-se ressaltar que nos últimos dias houve algumas polêmicas a respeito de declarações de candidatos e dirigentes de La Libertad Avanza que não agradaram a maioria da sociedade. Lila Lemoine, candidata a deputada pela província de Buenos Aires, disse que vai elaborar um projeto de lei que permite aos pais renunciar à paternidade. Além disso, o próprio Milei externou opiniões contra o Papa Francisco e a Igreja Católica.

Dado que grande parte dos lares na Argentina é monoparental e com uma significativa população católica, essas declarações devem ter gerado rejeição em uma grande parte da sociedade.

Da mesma forma, Victoria Villaruel procurou promover discussões sobre a última ditadura cívico-militar argentina, algo que não é um debate urgente para aqueles que pretendem votar em La Libertad Avanza.

Propaganda de Javier Milei em Buenos Aires, em 20 de outubro de 2023. Foto: Luis Robayo/AFP

CC: Em geral, a campanha apresentou mais diferenças ou semelhanças entre Milei e Bullrich?

MK: Eu diria que mostrou diferenças. Patricia Bullrich teve uma campanha difícil contra Milei, já que, por um lado, ela teve de buscar e convencer o eleitor dele, mas por outro teve de se diferenciar diante de posições semelhantes em certos temas, como segurança e defesa.

Ela tentou confrontá-lo definindo-o como exagerado e excêntrico. Aspira claramente a um voto mais consciente e tem uma base eleitoral de faixa etária elevada, a quem apela sob o argumento de ter experiência de gestão e destacando alguns possíveis futuros dirigentes de seu eventual governo, como o economista Carlos Melconian.

No entanto, ela está em uma posição muito difícil para convencer o eleitorado jovem (principal eleitor de Milei), uma vez que para eles a experiência em gestão política não é uma vantagem, mas motivo de rejeição. Da mesma forma, não pode exaltar sua passagem pelo governo do Cambiemos (de Mauricio Macri), durante o qual ela foi ministra da Segurança e se destacou por falar muito sobre o enfrentamento ao tráfico de drogas (sem soluções reais), enquanto as manifestações sociais eram duramente reprimidas.

Também é difícil encantar o eleitorado com suas propostas econômicas, considerando que no governo de Macri houve forte desvalorização e recessão, algo de que os jovens eleitores se lembram muito bem.

CC: E ela ainda foi alvo de Milei…

MK: Do lado de Milei, jogaram sujo contra ela, chegando ao ponto de destacar que ela foi uma montonera (o que é verdade) que instalou bombas em jardins de infância. Trata-se de uma notícia falsa que tem sido bastante difundida, aproveitando-se do passado de Patrícia também como guerrilheira.

CC: Independentemente do resultado deste domingo, a ultradireita parece ter conquistado um espaço relevante no debate público?

MK: Claramente surgiu um terceiro campo político, que se caracteriza por questionar vários dos consensos argentinos. Mas, embora Milei dispute no campo da ultradireita, penso que houve uma mudança na estratégia eleitoral.

Como mencionei, internacionalmente Milei procura se consolidar como uma referência de ultradireita para conquistar aliados estrangeiros. Mas acredito que há diferenças na comparação com a campanha legislativa de 2021 – ele abandonou a bandeira contra o aborto legal, bem como a grande agressividade que existia contra as feministas e a diversidade de gênero.

Agora, se manifesta com seu projeto de reforma econômica, cujo principal objetivo seria “libertar a sociedade argentina da opressão dos políticos” em questões fiscais e monetárias, e é a partir desse discurso que Milei cresce.

CC: Há uma guinada de ultradireita na juventude?

MK: Aqueles que estudam os jovens eleitores na sociologia, por exemplo, veem que não há uma guinada conservadora notável entre os jovens. Eles estão mais inclinados a rejeitar a opção política oferecida, mas creio que o principal problema está na própria opção. É diferente da década anterior, quando o kirchnerismo era a escolha predominante e o espaço de militância dos jovens, que haviam encontrado representação do Estado para disputar contra os poderosos (naquela época, as corporações de mídia, multinacionais etc.)

Agora, a rebeldia juvenil é contra os políticos, aqueles que não conseguiram mudar tudo como foi prometido. Há de se ter em conta que a faixa etária dos 18 aos 24 anos viveu a adolescência e entrou na idade adulta sofrendo os efeitos da inflação, das sucessivas desvalorizações, da deterioração do poder de compra e das consequências da pandemia. Penso que é neste último momento que se conseguiu cristalizar a figura de Milei, e o seu apoio renovado vem das mudanças que ocorrem na sociedade, como o crescimento da economia informal e da lógica individualista.

Cabe ressaltar que o voto em Milei nesta eleição pode ser considerado circunstancial devido à deterioração econômica, se observarmos estudos como o realizado neste ano pelo grupo Pulsar UBA sobre as crenças sociais argentinas. Ali, destaca-se que diante da possibilidade de corte social do Estado, 51% dos eleitores de La Libertad Avanza entrevistados se consideram contra o ajuste e desejam apenas um ajuste na política.

CC: O que esperar da campanha até um provável segundo turno? Massa contaria com uma participação efetiva da vice-presidenta Cristina Kirchner?

MK: Acredito que se houver um cenário com Sergio Massa e Javier Milei no segundo turno, Milei continuará em linha com a campanha até aqui, sinalizando aos atores sociais e econômicos os seus projetos de reforma do Estado e de mudança fiscal e de política monetária, enquanto Massa se moverá com maior “tranquilidade”, porque buscará polarizar em um contraste “Democracia x Autoritarismo”. Neste caso, há diversos exemplos internacionais, como Brasil, Espanha e Colômbia.

Cristina deu muito espaço para o protagonismo de Massa. Imagino que ela continuará nesta linha, já que é considerada um grande trunfo quando se trata de fornecer à campanha orientação política e, sobretudo, econômica.

Vale lembrar que as suas declarações de felicitação ao ministro pelas novas medidas econômicas e por atribuir responsabilidades ao FMI pela desvalorização foram fundamentais a fim de enviar uma mensagem à própria militância.

Mas, disputando em uma polarização do tipo “Democracia x Autoritarismo” ou “Estabilidade x Mudança”, Massa poderá continuar a exercer a sua liderança dando mais sinais sobre possíveis integrantes de seu governo ​​e projetos, para convencer a sociedade argentina de que um salto para o vazio seria letal para o país.

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