Observatório da Economia Contemporânea

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Os limites da aceleração

Num contexto de reversão do ciclo de preços de commodities e de elevação dos juros domésticos, o investimento público seria decisivo para estabilizar a formação bruta de capital fixo

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Foto: Evaristo Sá/AFP
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Várias matérias recentes na imprensa, em boletins de bancos alguns think tanks, e o Boletim Focus do Banco Central, anteveem uma aceleração do crescimento para 2022 e estagnação para 2023. Essas análises e previsões, em parte amparadas nos dados mais recentes do PIB divulgados pelo IBGE constatam que o crescimento no primeiro semestre do ano foi surpreendentemente mais forte do que o esperado, mas obtido com estímulos governamentais temporários, que serão mantidos no segundo semestre de 2022, mas sendo pouco provável preservá-los em 2023, ao menos sob as regras fiscais vigentes, devendo, portanto, o crescimento arrefecer.

A constatação sobre a inesperada aceleração da primeira metade de 2022 é um fato, já a possibilidade de aceleração na segunda metade do ano e a desaceleração em 2023, são conjecturas sujeitas a muitas controvérsias – sobretudo essa última, que dependerá da política econômica de um novo governo. Assim, dado o impacto que terá a eventual aceleração do crescimento no segundo semestre sobre os resultados das eleições, cabe examinar a questão em detalhe.

Na atual conjuntura, fazer previsões para o comportamento de curto prazo da economia brasileira é uma tarefa de grande complexidade e sujeita a grande margem de erro, dado o elevado número de fatores conflitantes envolvidos. Desde logo, o contexto internacional marcado por turbulências geopolíticas, inflação elevada, aumentos generalizados dos juros nos países centrais e desaceleração do crescimento e do comércio. No âmbito doméstico, o ritmo de crescimento, cuja trajetória ainda está condicionada pela normalização pós-pandemia, sofre a influência de políticas econômicas contraditórias, ou seja, estímulos fiscais e parafiscais contrastando com a forte elevação da taxa de juros básica.

Efeitos serão mais nas expectativas ou no imaginário da população do que na vida cotidiana, na medida da percepção de uma velocidade maior do aumento de preços

Os dados do PIB trimestral divulgados pelo IBGE mostram uma estabilização do ritmo de crescimento “na ponta”, no patamar de 1,1%, que vinha acelerando desde o terceiro trimestre de 2021. Em termos anuais isto significou uma expansão de 2,6% do PIB, mas que pode ganhar mais força se o ritmo trimestral se mantiver. Quais as chances de isto ocorrer à luz da recente trajetória da economia e do manejo da política econômica? A análise desenvolvida nesse artigo indica que o ritmo obtido no primeiro semestre, não é sustentável.

A não preservação do ritmo de crescimento pode ser atribuída aos fatores que lhe deram sustentação. Um dos mais relevantes foi a normalização da oferta de serviços presenciais pós pandemia – cujo crescimento (3,5%) liderou o PIB do segundo trimestre – e que ocorreu com relativa independência ante a demanda corrente, retomando patamares prévios. O efeito multiplicador dessa retomada, por meio do consumo, foi importante fator acelerador. Do ponto de vista da demanda, cabe destacar a contribuição do saldo comercial ainda turbinado pelo ciclo de preços das commodities. No investimento, a contribuição se deveu à evolução positiva, da construção civil, como reflexo da ampliação conjuntural de obras públicas O ritmo geral do semestre teve uma importante alavanca, o que certamente explica a surpresa do período: a política fiscal. No primeiro semestre, o governo implementou medidas de gastos e renúncias fiscais da ordem de 1% do PIB, jogando para cima o patamar de crescimento.

As análises correntes têm insistido muito na trajetória dos Serviços como carro chefe da recuperação, atribuindo-lhe um caráter quase autônomo em relação às condições de demanda vigentes. Em parte, isso é verdadeiro por conta da recuperação pós-pandemia, mas uma análise mais detalhada mostra outros aspectos importantes, o principal deles é que, com a recuperação dos patamares pré-pandemia, o setor vai depender, a curto prazo para seu crescimento, cada vez mais, da demanda corrente. A produção de serviços está hoje num patamar 7% acima daquele de Fevereiro de 2020. Todos os segmentos seguem esse padrão, e já começaram a desacelerar, exceto os serviços prestados às famílias que se encontram num patamar menor (-6%) do que o pré-pandemia. O próprio crescimento do setor como um todo se deve em parte ao fato de que seus preços relativos caem substancialmente, – o IPCA de serviços é cerca de metade do IPCA total – o que tende a se reverter com o seu próprio crescimento.

Tudo indica que no curto prazo, no qual prevalecerão os fatores associados à demanda, o crescimento e eventual aceleração dos serviços dependerão daqueles prestados às famílias. Mas, o poder de retroalimentação deste processo é limitado. Isto porque o crescimento desse subsetor depende essencialmente da massa salarial, que ele próprio ajuda a criar com um perfil de emprego de baixa remuneração e qualificação. A esse propósito os dados da última PNAD Contínua mostram que, no trimestre mai/jul de 2022, o crescimento da ocupação estagnou tanto na agropecuária quanto na indústria – e no setor serviços ocorreu de forma concentrada em apenas dois segmentos; no de comércio e reparações e no de educação e saúde, ou seja, no segmento de serviços prestados às famílias.

A massa salarial começou a se recuperar de forma expressiva este ano, embalada pelo aumento da ocupação, sobretudo no setor serviço, que gerou cerca de 85% das ocupações, no último trimestre, concentradas nos segmentos indicados acima. O aumento da massa salarial de 5% no trimestre mai/jul de 2022 em relação ao trimestre imediatamente anterior é expressivo, mas não necessariamente se sustentará e tampouco se refletirá, nessa intensidade, no consumo de bens e serviços. No mês de junho de 2022, tanto o varejo restrito quanto o ampliado apresentaram contração expressiva, -1,4% e -2,3% respectivamente. O primeiro fator de mitigação vem do elevado endividamento das famílias que suga parte do aumento de poder de compra dos trabalhadores. O encarecimento substantivo do crédito limita a ampliação do consumo de bens de maior valor unitário, como está evidente nos dados de Vendas, nos quais Veículos caem (-4,1%) e Material de construção, também (-1,1%), na comparação entre junho e maio de 2022. 

Outros fatores limitantes decorrem do próprio quadro mais amplo do mercado de trabalho onde destaca-se o aumento precário da ocupação (segundo o IBGE, 40% dos ocupados estão na informalidade), as taxas de desocupação e subutilização, ainda na faixa de 9% e 20% da força de trabalho respectivamente e remunerações deprimidas, ainda inferiores em 3% às do mesmo período do ano anterior. E nesse caso cabe ressaltar que parte do crescimento dessas remunerações nada tem a ver com a melhora do mercado de trabalho, mas com a deflação, pontual.  Em resumo, o mais provável aqui é que prevaleça o padrão do segundo trimestre, qual seja, um crescimento concentrado nos itens mais essenciais irá conviver com estagnação ou declínio nos serviços e bens de maior valor unitário. Em resumo, perde-se o dinamismo autônomo do crescimento dos serviços e ganham mais destaque os efeitos divergentes da política fiscal e da monetária.

O saldo da balança comercial foi um importante fator de sustentação do crescimento em 2021, e no primeiro quadrimestre de 2022, mas vem rapidamente perdendo esse seu papel. Em 2022, a partir de maio, o saldo inicia seu declínio, a despeito de ainda estar no campo positivo. Vários fatores explicam esta trajetória, em particular a evolução dos preços de exportações e importações impactadas pela reversão do ciclo de preços de commodities e pela guerra da Ucrânia. Assim é que no segundo trimestre desse ano, as importações passam a crescer o dobro das exportações. A desaceleração global e mesmo a perspectiva de recessão devem piorar esse quadro. Ou seja, não se deve contar com o efeito dinamizador do saldo sobre o crescimento.

O desempenho do investimento é recorrentemente apontado como uma variável dinâmica do crescimento brasileiro recente. Os dados mostram que em 2021, houve um bom desempenho do investimento, em parte decorrente de mero efeito estatístico das alterações legislativas referentes às plataformas de petróleo, de mudança de preços relativos – ambos sem implicação para a ampliação efetiva do investimento – e em parte, do aumento de capacidade produtiva no segmento produtor de commodities. Desde meados de 2021 o investimento desacelera tendencialmente e acentuou seu comportamento errático. Ou seja, do crescimento de 4,8% no segundo trimestre, associado a fatores específicos, como a construção civil, uma onda de recuperação do investimento não é previsível em 2022 e apenas a construção civil residencial e de alta renda deverá se manter no campo positivo, mas declinante. 

Num contexto de reversão do ciclo de preços de commodities, e de elevação dos juros domésticos – que impactam diretamente a construção – como atribuir algum dinamismo ao investimento? Neste cenário de maior incerteza, o investimento público seria decisivo para estabilizar a formação bruta de capital fixo, no entanto sua elevação, em âmbito federal, é travada pelo teto de gastos. Os investimentos no orçamento de 2022, fora emendas parlamentares que tendem a se dispersar em projetos de baixo impacto, correspondem a apenas 0,2% do PIB. Além disso, em relação às empresas estatais, a atual política da Petrobras implica baixa retenção de lucros para realização de investimentos, privilegiando a distribuição de dividendos.

Convém assinalar que os investimentos públicos dos estados cresceram, em termos reais, a uma taxa média superior a 150% no primeiro semestre de 2022 em relação ao mesmo período de 2021 e exerceram efeito positivo sobre a demanda agregada tendo sido os responsáveis pelo crescimento observado no trimestre. Todavia, este crescimento foi baseado em fatores conjunturais que impactaram positivamente o caixa (aumento das receitas, alta dos preços das commodities, proibição de reajuste a servidores públicos até 2021 e transferências federais da pandemia) e não devem se repetir, esperando-se redução do crescimento do investimento no segundo semestre de 2022 (especialmente pela desaceleração da inflação e o impacto do projeto do ICMS de bens essenciais).  

Resta por último examinar em maior detalhe o gasto público. Desde dezembro de 2021 o governo federal tomou uma série de medidas – algumas via PEC – que impactarão o saldo primário do setor público consolidado de 2022 em cerca de R$ 166 bilhões ou 1,7% do PIB. Essas despesas deverão levar a um déficit ao final do ano de 0,6% do PIB para o governo central. Como assinalado, boa parte dos gastos decorrentes da flexibilização do teto já ocorreu ao longo do primeiro semestre, sendo a responsável pela aceleração do crescimento no período. 

A partir do terceiro trimestre terão impacto as medidas de ampliação das transferências relativas às “bondades eleitorais” e a redução de alíquotas de tributos federais e estaduais sobre combustíveis, telecomunicações e energia. No ICMS, o governo federal logrou aprovar projeto de lei impondo aos governos estaduais a alíquota ao máximo de 18% para bens essenciais, o que deve implicar uma queda da arrecadação da ordem de R$ 20 bilhões ou 0,2% do PIB em 2022. No âmbito federal aprovou-se a isenção de impostos sobre os combustíveis (CIDE e PIS_COFINS) no valor de R$ 15,5 bilhões ou 0,16% do PIB e a ampliação de benefícios sociais, especialmente do Auxílio Brasil, para R$ 600, somando cerca de R$ 41 bilhões ou 0,42% do PIB. Essas medidas têm impactos diferenciados no crescimento. A renúncia fiscal, que soma cerca de 0,36% do PIB, tem efeitos imediatos e deve se transmitir integralmente, com multiplicador unitário, ao crescimento do PIB do trimestre. As transferências, a despeito do multiplicador mais elevado de cerca de uma vez e meia o gasto inicial, tem seus impactos diluídos ao longo do tempo. Ou seja, seu efeito acelerador sobre o crescimento do PIB – de 0,6%, tomará algum tempo para se concretizar.

Cabe anotar que esse acréscimo de 0,96% sobre o PIB só seria líquido se os demais componentes se mantivessem na velocidade do primeiro semestre, o que como vimos é pouco provável, além de demandar algum tempo para se manifestar em sua plenitude. Em resumo, a política fiscal expansionista, somada às liberações do FGTS e a antecipação do décimo terceiro do INSS, que têm um impacto “once and for all” já assegurou um crescimento do PIB no primeiro semestre de 2022 maior do que seria esperado e deverá continuar a fazê-lo, em menor intensidade nos últimos meses do ano. Certamente a sua focalização renderá dividendos eleitorais, mas é muito pouco provável que possa acelerar o crescimento para um patamar muito acima dos 2,5% ao ano. 

Na mesma direção vai a queda pontual da inflação, ou seja, a deflação dos meses de julho e agosto conseguida principalmente com a desoneração de energia e telecomunicações – em particular os combustíveis – alçados a condição de bens essenciais e, portanto, sujeitos a uma alíquota máxima de ICMS de 17% ou 18%. Para além da discussão da correção ou do caráter eleitoreiro das medidas, interessa, sobretudo, os seus efeitos de curto prazo. De fato, além da deflação pontual, num quadro de inflação dominada pelos choques de oferta, as medidas deverão também induzir uma redução do patamar de inflação, que provavelmente girará em torno de 7% em 2022. Todavia, os seus efeitos serão mais nas expectativas ou no imaginário da população do que na vida cotidiana, na medida da percepção de uma velocidade maior do aumento de preços. Para que esses efeitos se materializem no bem-estar da população será necessário que os salários e remunerações comecem a aumentar mais do que o custo de vida, o que também não está no horizonte imediato.

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