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Brics+ ou G11: em busca de uma nova ordem internacional

É prematuro afirmar que uma ordem mais cooperativa e igualitária prevalecerá, mas as bases para voos mais altos parecem postas

Lula na foto oficial dos Brics, na África do Sul. Da esquerda para a direita: Lula (Brasil); Xi Jinping (China); Cyril Ramaphosa (África do Sul); Narendra Modi (Índia); e o representante de Putin, Sergei Lavrov (Rússia). Foto: GIANLUIGI GUERCIA / POOL / AFP
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Não são poucas as análises sobre os sofrimentos causados pela ordem econômico-social imposta à maioria das populações do planeta. A panela de pressão parece começar a extravasar o vapor contido por anos de profundo submetimento, por endividamento, impotência ou outras razões, às determinações do centro. Os contornos tentativos de um novo arranjo estão sendo desenhados. A proposta é voltarmos alguns anos na história, com as primeiras empresas multinacionais e ações para controle do sistema monetário internacional, para então chegarmos aos nossos dias, com as cadeias globais de valor e ampla hegemonia do dólar.

Stephen Hymer (1978) construiu sua tese de doutorado no MIT em torno das empresas multinacionais que, naquele fim de anos 1960 e início de 1970, já mostravam amplamente duas contradições. Por um lado, repartiam produtos e fatores pelas nações, por outro, reduziam a concorrência e concentravam poder político e financeiro. Aos governos das metrópoles era possível participar da divisão dos excedentes gerados pelas multinacionais. Aos governos periféricos, que as alojavam, era reservada uma limitada capacidade de tributá-las, por sua capacidade de deslocar recursos produtivos para outro país. Outras limitações, ou perdas de soberania, se espalhavam pelos instrumentos de política governamental, pelas políticas monetária, cambial, salarial etc.

Hymer defendia que, ao contrário de promover independência nacional e igualdade aos países subdesenvolvidos, o regime de empresas multinacionais tendia, de fato, a impedir que esses objetivos fossem alcançados. Ele projetou, no início do anos 1970, que a estrutura de desenvolvimento desigual não permaneceria por muito tempo, mas lembrou que o poder do centro, incluindo o militar, era grande. Para uma mudança completa de rumos, ele aconselhava tomar como ponto de partida as necessidade dos dois terços excluídos da população e deixar de buscar atender a demanda do um terço de maior renda.


Globalização e seus descontentes

Um pequeno salto para os anos 1980 e 1990 nos leva à atuação do FMI. Chamado a ajudar, nos piores momentos da vida econômica dos países, não havia discussão, políticas econômicas alternativas não eram consideradas. As políticas de ajuste estrutural, que via de regra não chegavam a resultados satisfatórios, levavam à fome e a levantes em muitos países. Nos raros casos em que se conquistava algum crescimento por algum tempo, os benefícios eram, desproporcionalmente, dirigidos à elite. Assim relata Stiglitz (2002), no prefácio de Globalization and its discontents.

Ele conta que sua principal motivação para escrever o livro foi que, ao fazer parte do quadro dirigente do Banco Mundial, assistiu de muito perto aos efeitos devastadores que a globalização, tal como foi implantada, tinha sobre os países em desenvolvimento e suas populações mais pobres. Stiglitz afirmava acreditar nos benefícios da remoção de barreiras para o comércio e da integração das economias, contudo por caminhos radicalmente diferentes dos que foram trilhados.


Consenso de Washington

A sistematização do receituário do centro para a guinada neoliberal da América Latina foi consumada em uma reunião em Washington, em 1989. Entre os participantes estavam funcionários do governo norte-americano e das instituições multilaterais FMI, Banco Mundial e BID. O conjunto dos “mandamentos” resultante do encontro ficou conhecido como Consenso de Washington. Pregavam abertura comercial e dos fluxos de capitais, privatização, liberalização do mercado, proteção aos direitos de propriedade intelectual, abertura para receber investimentos estrangeiros diretos, austeridade fiscal e liberalização financeira.

Tais medidas eram recomendadas pelas elites econômicas nacionais, autoridades norte-americanas e das instituições multilaterais, e condicionavam empréstimos e renegociações, essenciais a um subcontinente pesadamente endividado, à sua adoção. O embaixador Paulo Nogueira Batista (2009) lamentava a transformação da América Latina em um laboratório de “teorias e doutrinas temerárias” inspiradas, mas não testadas nos países desenvolvidos.


Neoliberalismo, desigualdade crescente

Estudo recente de Thomas Piketty (2019) apresenta um gráfico do percentual da renda total de Estados Unidos, Europa e Japão capturado pelo grupo formado pelos 10% mais ricos de cada um dos três. A desigualdade, medida por essa concentração de renda, atingira seu pico na crise de 1929. Nos anos seguintes, especialmente no pós-guerra, esse indicador caiu consistentemente até o início dos anos 1970, quando há uma reversão, um crescimento da desigualdade, que identificamos como o início da fase neoliberal do capitalismo. Os percentuais de 2020 refletem que os 10% mais ricos dos Estados Unidos apropriam-se de perto de 48% (acima do pico anterior na Grande Depressão), no Japão o percentual é próximo de 42% e na Europa, a que menos subiu nesses anos, próximo de 36%.

Um segundo gráfico, desta vez com dados do mundo como um todo e no período neoliberal de 1980 a 2018, mostra que o grupo dos 50% mais pobres apropriou-se de 12% do acréscimo da renda mundial, enquanto o grupo formado pelo 1% mais rico abocanhou 27% do aumento da renda total desses dezoito anos.

O testemunho de Stiglitz e os dados expostos por Piketty são evidências contundentes de que a direção prometida pelos defensores do neoliberalismo para o estreitamento das desigualdades, entre as nações e dentro delas, não só foi seguida, mas o processo que estava em curso no pós-guerra foi revertido.


Arbitragem do trabalho

Os trabalhos de Suwandi, Jonna e Foster (2019) e de Reis e Guedes (2022) nos expõem refutações empíricas importantes ao entendimento dos economistas neoclássicos de que todos os países e suas populações se beneficiariam do aprofundamento da mundialização.

Os primeiros calcularam a razão entre o salário total por hora e o produto por hora trabalhada. O resultado, chamado de custo unitário do trabalho, representa o custo do trabalho para produzir uma unidade de produto, ou seja, uma medida da produtividade do trabalho. Selecionaram os dados da World Input-Output Database, um projeto financiado pela União Europeia, de 8 países: Alemanha, EUA, Japão, Reino Unido, China, Índia, Indonésia e México. Seus cálculos identificaram que o custo unitário do trabalho na China, por exemplo, representa 46% do seu equivalente nos EUA. A indústria mexicana por seu turno tem custo unitário equivalente a 43% do custo norte-americano. Ou seja, os custos unitários do trabalho de ambos é menor do que a metade do custo nos Estados Unidos.

O outro estudo, de Reis e Guedes (2022), foca na indústria farmacêutica. Eles calcularam a razão entre o valor por quilo das exportações e das importações, de produtos farmacêuticos, dos países integrados à cadeia de valor desta indústria. Verificaram que o Brasil apresenta uma razão de 0,34, o que significa que as compras do País são três vezes mais caras do que suas vendas. A Holanda, por outro lado, que tem índice 1,70, o que indica que suas exportações rendem cerca de 40% mais do que suas importações.

As conclusões dos dois estudos convergem e expõem o fosso entre centro e periferia. Mesmo países periféricos profundamente integrados às cadeias globais estão bem distantes dos países centrais: auferem menores preços pelo que vendem, são deficitários nos direitos de propriedade intelectual e pagam salários mais baixos.


Privilégio “super-exorbitante” do dólar

Revoltado com a posição hegemônica do dólar, que conferia aos Estados Unidos a vantagem de financiar seu enorme endividamento a custos bastante mais baixos, Valéry Giscard d’Estaing, em 1964, então ministro das finanças de De Gaulle, qualificou tal posição de “privilégio exorbitante”. Ele não sabia que anos mais tarde, em 1973, uma medida unilateral do governo norte-americano ainda retiraria o lastro em ouro de moeda norte-americana. O privilégio exorbitante, com o fim da conversibilidade, progrediria para um “privilégio super-exorbitante” de poder emitir, irrestritamente, um papel moeda que os outros países não tinham capacidade de recusar como pagamento, disse Susan Strange (HELLEINER e KIRSHNER, 2009).

No final da mesma década, 1979, os Estados Unidos voltariam a tomar medidas que contrariaram os acordos monetários em vigor. Paul Volcker, presidente do Fed, subiu vigorosamente a taxa de juros das operações de um dia, Fed Funds, que saíram de cerca de 12% em outubro para 20% em março de 1980. O salto das taxas de juros levou empresas, bancos e países à insolvência, promoveu anos de recessão mundial e, proporcionou a retomada, pelos EUA, do controle dos sistema internacional. Tavares (1985) acrescenta que a política keynesiana ao contrário, que se seguiu com Reagan, – juros altos, aumento da renda dos mais ricos, déficits fiscais – submeteu os parceiros, desafiou os adversários militar e economicamente e, por fim, reafirmou a hegemonia para liderar uma nova ordem econômica mundial.

Dados de dezembro de 2022 do BIS mostram que o dólar está presente em 90%, US$ 6,6 trilhões, das transações diárias de moedas. A participação estimada do dólar em transações envolvendo outras moedas, mas que não são trocadas diretamente, representa 40% do giro nos mercados de câmbio. Do total de dívidas e empréstimos internacionais, em que nem o credor nem o devedor é residente dos EUA, cerca de 88% é expresso em dólares. Dos empréstimos bancários internacionais, a parcela indexada ao dólar representa 65%. Aproximadamente metade das transações comerciais internacionais são feitas em dólar, embora os EUA estejam apenas na décima posição no ranking de comércio internacional. Por fim, a participação do dólar nas reservas oficiais em moeda estrangeira atinge perto de 60%, percentual expressivo comparativamente ao euro que ocupa o segundo lugar com 20% do total, mas que vem caindo nos últimos 20 anos e está abaixo da média de 65% deste período.


Brics ou G11

As críticas à ordem vigente abordadas até aqui e os dados reveladores de persistente iniquidade parecem ter sido geradores da motivação principal para a constituição dos Brics, para o grande interesse de muitos países em aderir ao grupo e para a adesão, agora confirmada, de Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. É bastante prematuro afirmar que uma nova ordem mais cooperativa e igualitária de fato prevalecerá. As bases para voos mais altos parecem postas.


Referências

BATISTA, Paulo Nogueira. O Consenso de  Washington: A visão neoliberal dos problemas latino-americanos. In: BATISTA JÚNIOR, Paulo Nogueira (org.). Paulo Nogueira Batista: pensando o Brasil: ensaios e palestras. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. 336 p.

HELLEINER, Eric; KIRSHNER, Jonathan. The Future of the Dollar. Ithaca: Cornell University Press, 2009.

HYMER, S. Empresas multinacionais: a internacionalização do capital. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.

PIKETTY, Thomas. Capital e idéologie. Paris: Éditions du Seuil, 2019. 1198 p.

REIS, Cristina Fróes de Borja; GUEDES, José Paulo. Center–periphery Relationships of Pharmaceutical Value Chains: A Critical Analysis based on Goods and Knowledge Trade Flows. Nova York: Review of Political Economy, 34:1, 124-145, 2022.

STIGLITZ, Joseph E. Globalization and its discontents. Nova York: W. W. Norton, 2002. 282 p.

SUWANDI, Intan; JONNA, R. Jamil; FOSTER, John Bellamy. Global Commodity Chains and the New Imperialism. Nova York: Monthly Review, v. 70, n. 10, março 2019. Acesso em 26 de agosto de 2023.

TAVARES, Maria da Conceição. A retomada da hegemonia norte-americana. Brazilian Journal of Political Economy, [S. l.], v. 5, n. 2, 1985. Acesso em: 29 aug. 2023.

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