Observatório da Economia Contemporânea

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Deterioração e inflexão do mercado de trabalho brasileiro

Observa-se a ampliação das ocupações de má qualidade, em larga medida devido à aceleração recente do crescimento do PIB, cuja descontinuidade provocará uma tragédia, num mercado de trabalho precarizado

Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS). Foto: Marcello Casal jr/Agência Brasil
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As referências a uma espécie de lado brilhante do mercado de trabalho brasileiro têm sido recorrentes. O Banco Central do Brasil, nas suas atas do Copom e nas falas de seus diretores, não tem poupado alusões ao que denominam de dinamismo do nosso mercado de trabalho, utilizando esse diagnóstico, com bastante frequência, para caracterizar a baixa ociosidade na economia brasileira.

Que o BC se utilize dessa racionalização é compreensível, afinal necessita de argumentos para justificar as taxas de juros esdrúxulas que pratica. O que é menos justificável é que economistas ditos progressistas, sem uma análise mais aprofundada, façam coro a essas simplificações que visam, sobretudo, sancionar a opção por políticas ultraortodoxas. Em desacordo com essas visões, a análise dos dados mostra uma situação bastante preocupante, com evidências de deterioração estrutural e inflexão do desempenho conjuntural do emprego e estagnação da renda da nossa população.

O aspecto mais evidente destacado no debate recente é o da queda do desemprego. E de fato, desde o pico de 15% da pandemia, ou do patamar médio de 2016/2019, de 12,5%, há uma redução substantiva dessa taxa para os níveis atuais, em torno de 8%. Antes mesmo de discutir as razões da queda do desemprego, cabe anotar que esta é menos intensa do que aparenta, ou pelo menos, não traduz exclusivamente um dinamismo particular do mercado de trabalho, mas movimentos pouco analisados e compreendidos de redução da taxa de participação da população em idade ativa na força de trabalho. Essa taxa de participação é, atualmente, cerca de dois pontos percentuais menor do que no período 2016/2019. Vale dizer, a taxa de desemprego se reduz não só por conta do aumento da ocupação, mas também por uma redução da força de trabalho.

Um exemplo recente ilustra o impacto dessa mudança. Tomando-se a taxa de participação de um ano atrás, que é um ponto percentual maior do que a atual e recalculando a força de trabalho, chega-se a uma taxa de desemprego de 9,1% e não de 7,8%. Usando-se os números da taxa de participação média de 2016/2019, o desemprego atual seria de 10,3%. O importante a destacar aqui é que há milhões de pessoas que saem da força de trabalho – 2,2 milhões no último ano – melhorando o indicador de desemprego, mas por razões não associadas ao dinamismo do mercado de trabalho, mas provavelmente por falta dele.

A avaliação da trajetória do mercado de trabalho, visto pela ótica das ocupações, no último ano e trimestre é bastante peculiar. Há uma aceleração no ritmo de criação de novas ocupações – 0,6% contra 1,3% – mas isso ocorre com uma significativa deterioração da qualidade dessas ocupações e estagnação dos rendimentos. Destaque-se no caso a crescente importância da ocupação informal ante a formal. Assim é que a comparação do segundo trimestre de 2023 com seu homólogo de 2022 indica um crescimento do perfil de ocupações virtuoso, com apensa 14% delas atribuídas ao segmento informal. Mas esse número é rápida e intensamente revertido em 2023, principalmente no segundo trimestre, no qual a ocupação informal representa 56% do total de ocupações criadas no período. Cabe anotar que esse é um padrão observado desde o início de 2023, revertendo a queda da informalidade que se observava desde o final de 2021 e que sai de um pico de 41,7% ao final desse último ano para 38,8% um ano depois, voltando a crescer desde então.

Uma análise da evolução recente da ocupação, comparando-se o dado do último trimestre com o imediatamente anterior e com o homólogo de 2022, é bastante reveladora da ampliação da informalidade. (Quadro). Nos empregados, os com carteira, cuja taxa de crescimento da ocupação havia sido 3,5% em bases anuais, reduzem-na para 1,1%. Já os sem carteira passam de 0,3% para 2,1%.

Chama muito a atenção o que ocorre com o trabalho doméstico, que acelera o crescimento de 0,7% para 2,8%. Esse incremento é ainda maior nos domésticos sem carteira, que vai de 1% para 4,2%. Há outros indicadores da crescente informalidade, como a aceleração do crescimento dos empregadores e conta-própria sem CNPJ, ou do trabalhador familiar sem remuneração. O aumento da precarização não passa ao largo nem mesmo do emprego do setor público, que aliás vem sendo um dos segmentos dinâmicos na criação de ocupações.

Como veremos com mais detalhe na análise do emprego formal adiante, o perfil setorial do emprego é crucial para explicar essa precarização. Tanto no último ano, quanto no trimestre, a liderança setorial é do segmento de serviços – com uma contribuição significativa da agropecuária em 2023 – mas com uma composição que favorece crescentemente os serviços informais, inclusive os domésticos. Enquanto isso, et pour cause, as remunerações, que haviam crescido 4,6% em bases anuais, mostram estagnação no trimestre. A massa salarial, por sua vez, despenca de um crescimento de 5,5% anual para 2,4%, devendo esse desempenho exclusivamente ao aumento da ocupação.

A ampliação da informalidade e da precarização pode ser atestada pelos dados do emprego formal produzidos pelo Caged. Chama muito a atenção a forte desaceleração na ampliação desses empregos. No período de janeiro a agosto de 2022, foram criados cerca de 1.990.000 postos de trabalho e, no mesmo período de 2023, aproximadamente 1.388.000, ou seja, 30% menos. O que mais se destaca, contudo, é a deterioração desse emprego formal.

Na divisão entre empregos típicos e atípicos, esses últimos, compreendendo trabalhadores aprendizes, intermitentes, temporários, contratados por CAEPF e com carga horária até 30 horas, portanto mais precários, ganham muito destaque em 2023. A participação dos atípicos no estoque de empregos formais tem crescido moderada, mas continuamente, desde 2018, como efeito da reforma trabalhista. Neste ano, esses vínculos representavam um pouco menos de 10% do total, atingindo 12,5% em meados de 2023. Todavia, o mais significativo é o fato de que se tomarmos o ano de 2023 isoladamente, até agosto, o número de empregos atípicos criados representou 21% do total. A precarização aparece inclusive nos níveis de remuneração desses postos de trabalho, em média, 12% menores.

O emprego formal tem ainda outras características que vale destacar. Sua concentração em serviços, por exemplo, representando cerca de 55% dos empregos criados em 2023, até agosto. Essa dimensão setorial se combina ademais com as baixas produtividade e remuneração e elevada rotatividade para ilustrar sua crescente degradação. Assim, por exemplo, neste ano, 72% dos postos de trabalho criados tinham remuneração de até 1,5 salário-mínimo e 88% até 2 salários-mínimos. E esse é um perfil que vem se deteriorando desde antes da pandemia. Esse conjunto de atributos do mercado de trabalho formal no Brasil faz com que o salário médio real de admissão esteja estagnado desde 2019.

À luz desses dados não há evidências que sugiram dinamismo no mercado de trabalho brasileiro, queiram os economistas ortodoxos do Banco Central ou os heterodoxos panglossianos. A rigor, o que temos assistido é a uma deterioração severa do mercado de trabalho, consequência da desregulação promovida pela reforma trabalhista, combinada com as inovações do trabalho por aplicativo, associadas à preservação da chaga do trabalho doméstico. E tudo isso num contexto de baixo e intermitente crescimento do PIB dos últimos cincos anos, que se segue à profunda recessão de 2015/2016.

Nesse quadro, o dinamismo do mercado de trabalho representado pelo emprego formal com proteção social e elevação continuada de rendimentos é parte menor do bolo. O que de fato se observa, de modo predominante, é a ampliação das ocupações de má qualidade. E isto, em larga medida, devido à aceleração recente do crescimento do PIB, cuja descontinuidade provocará uma tragédia, num mercado de trabalho precarizado.

Assim, lograr de fato melhor desempenho do emprego e renda é uma tarefa árdua que tem alguns pressupostos, como por exemplo a preservação de taxas razoáveis de crescimento, a mudança da sua composição setorial e, por fim, mas não por último, um esforço de re-regulação das relações de trabalho no País.

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