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Da Globo ao Congresso: a relação entre o BBB, o PL das Fake News e a regulação da mídia

O programa não é o gatilho direto para a aprovação do projeto, mas ilustra de forma única os desafios mais prementes da comunicação digital

Participantes do BBB24 reunidos na sala. Foto: Reprodução/Globoplay
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O Big Brother Brasil 24 consegue, com pouco mais de 20 participantes confinados, refletir as nuances de um Brasil de mais de 200 milhões de habitantes. Nos primeiros dias de confinamento, episódios carregados de comentários machistas, misóginos, homofóbicos e racistas trouxeram a tona a persistência de preconceitos ainda arraigados no imaginário do país. Paralelamente, jovens e vulneráveis participantes, que cresceram imersos na cultura das redes sociais, contribuíram para o amplo debate de importantes discussões sobre saúde mental.

Depois de 24 temporadas, o BBB segue sendo um espelho de nossos desafios sociais mais prementes – inclusive quando se trata de regulação da mídia e do combate à desinformação.

O burburinho que o programa provoca evidencia o impacto poderoso da mídia na maneira como enxergamos a realidade coletiva, sublinhando a urgência de discutir e colocar em prática regulações eficazes, como a proposta no PL das Fake News. Com o ano legislativo prestes a começar na próxima segunda-feira, dia 5, espera-se que a batalha contra a desinformação ganhe destaque nas agendas políticas.

Ao longo dos episódios do BBB, comunidades de fãs – os chamados fandoms – se comportam de forma muitas vezes preocupante, disseminando discursos de ódio amplificados pela natureza competitiva do programa. Os espectadores não se limitam a observar passivamente; eles se engajam ativamente nas narrativas, escolhendo seus favoritos e vilões, e frequentemente levam suas paixões para as redes sociais. Nas comunidades de fãs, o apoio a um participante muitas vezes se transforma em ataques coordenados contra outros, cruzando a linha tênue entre a defesa apaixonada e o assédio online.

A preocupação se intensifica quando observamos a facilidade com que informações falsas e discursos de ódio são amplificados nas redes sociais, muitas vezes sem o devido escrutínio ou repercussão legal. Essa dinâmica levanta questões importantes sobre a responsabilidade das plataformas de mídia social e a necessidade de mecanismos mais eficazes para combater a desinformação e o discurso de ódio, sublinhando a urgência de iniciativas regulatórias para criar um ambiente online mais seguro.

No BBB 2023, um episódio envolvendo Fred Nicácio ilustra como o programa pode se tornar um vetor para a exposição e amplificação de preconceitos. Ridicularizado por Key Alves e Gustavo Cowboy – dois participantes que se encaixam nos padrões de beleza convencionais por seus atributos físicos frequentemente exaltados pela mídia – Nicácio, negro e adepto de religião de matriz africana, foi submetido a uma série de zombarias e insultos que transcendem a mera provocação, tocando em questões profundas de racismo e intolerância religiosa. A situação se agrava quando consideramos a reação do fandom do ex-casal, que, em vez de condenar as ações de seus ídolos, optou por justificar, maximizar e até mesmo aplaudir o preconceito manifestado contra Nicácio. Conduta que revela a perigosa capacidade de grupos organizados em ambientes digitais de normalizar discursos de ódio.

O caso de Paula Von Sperling no BBB 19 é outro exemplo de como as dinâmicas dentro de um reality show podem refletir e intensificar problemas sociais. As declarações de Sperling, expressando medo de um colega de confinamento unicamente por sua adesão a uma religião de matriz africana, além de outras afirmações controversas, revelaram não apenas seus preconceitos pessoais, mas também como essas visões podem ser toleradas e até apoiadas por uma parcela significativa do público. Ela foi a vencedora da edição. Seu fandom não apenas desculpou suas falas, mas também as normalizou, criando um ambiente em que o preconceito se torna aceitável sob o manto do entretenimento. A vitória de Sperling evidencia a influência que os fãs organizados podem exercer, chegando a ponto de atacar e destruir a reputação de qualquer um que se opusesse a ela na internet.

Já o fenômeno envolvendo Juliette Freire destaca outra característica complexa das dinâmicas de fandom: a possibilidade de perderem o controle até mesmo para a pessoa que idolatram. Juliette, que se tornou uma mega-celebridade graças à sua resiliência frente às adversidades na edição em que participou, viu seu grupo de fãs, os “cactos”, transformar-se em uma força poderosa nas redes sociais. Embora muitas vezes movidos por admiração e lealdade, os “cactos” demonstraram uma tendência a reagir de forma extremamente punitiva contra qualquer um que percebiam como opositor ou crítico de Juliette, contrariando a própria idolatrada.

A postura historicamente complacente da Globo diante do cenário de antagonismo fomentado entre os fandoms nas redes sociais, especialmente evidente durante as noites de eliminação no Big Brother Brasil, levanta questões importantes sobre a ética na produção de conteúdo televisivo. As exortações de Tiago Leifert e, posteriormente, Tadeu Schmidt, enfatizando recordes de votação e encorajando a participação massiva dos telespectadores, revelam uma estratégia que, embora lucrativa, alimentava um ciclo vicioso de ódio e competição exacerbada entre os fãs. Frases como “Vote quantas vezes quiser” e “textão não decide paredão” não apenas instigavam os fãs, mas também sublinhavam a indiferença da emissora quanto às consequências sociais desse engajamento extremado.

Esse modelo de negócio, centrado na premiação da quantidade em detrimento da qualidade do engajamento, gerou lucros significativos para a emissora ao longo dos anos. No entanto, as vitórias controversas de participantes como Paula Sperling em 2019 e Amanda Meirelles em 2023, impulsionadas mais pela força de seus fandoms na internet do que pela preferência do público televisivo tradicional, evidenciam uma desconexão crescente entre a dinâmica online e a audiência da TV. O programa começou a perder audiência para o mercado publicitário.

A decisão da Globo em 2024 de alterar a logística de votação para um sistema ponderado, que tenta equilibrar os votos dos fandoms com os votos únicos do público geral, reflete um reconhecimento tardio dos efeitos nocivos dessa dinâmica anterior. Essa mudança busca não apenas recuperar a audiência perdida, como também restaurar um senso de representatividade nas decisões do programa, mitigando o poder desproporcional dos grupos organizados na internet. A nova abordagem é uma tentativa de realinhar o programa com a preferência da audiência televisiva e uma resposta às críticas sobre a responsabilidade social da emissora na moderação dos efeitos potencialmente danosos de suas produções.

Mesmo com tentativas de controlar a influência dos fandoms, o BBB 24 lança luz sobre uma questão mais arraigada: a facilidade com que o discurso de ódio se espalha nas redes sociais, protegido pela ausência de uma regulamentação efetiva das gigantes da tecnologia. A facilidade em encontrar comentários que justificam racismo, misoginia e outras formas de preconceito em nome da defesa de ídolos revela uma cultura online tóxica, onde a impunidade parece ser a regra, não a exceção. Essa sensação de impunidade tem raízes na anonimidade que a internet proporciona e na ineficácia das políticas de moderação de conteúdo das plataformas digitais. Muitos usuários se sentem encorajados a expressar opiniões extremas ou a participar de ataques coordenados, acreditando que a falta de consequências reais no ambiente virtual os protege. Além disso, os algoritmos que regem o que vemos e compartilhamos frequentemente priorizam conteúdos que geram engajamento, independentemente de sua natureza tóxica, criando um ciclo vicioso de reforço e disseminação de discursos nocivos.
O cenário aponta a urgente necessidade de uma regulamentação mais rigorosa e abrangente das plataformas de mídia social, que vá além da mera autorregulação e envolva medidas legislativas que responsabilizem as empresas pela disseminação de conteúdos prejudiciais.

O “Big Brother Brasil” em si não é o gatilho direto para a aprovação da Lei das Fake News, mas atua como um microcosmo ilustrativo das dinâmicas mais abrangentes e inquietantes do nosso universo digital. Serve como um espelho das tensões, preconceitos e desinformações que infestam o espaço público na era da internet. E essa reflexão impõe um imperativo severo aos legisladores, às plataformas de mídia e à sociedade como um todo: a responsabilidade compartilhada de construir um ambiente digital que preze pela verdade, incentive o respeito mútuo e repudie a toxicidade.

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