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Davi sofre racismo no BBB: a “energia” que não bate no reality tem cor e é preta

A forma como alguns dos participantes do reality tratam Davi ilustra uma forma sofisticada de racismo estrutural

Davi Brito Santos, participante da 24ª edição do Big Brother Brasil. Foto: Reprodução/ Globo
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A trajetória de Davi Brito Santos de Oliveira no Big Brother Brasil é um espelho das complexidades sociais e raciais do país. Nascido em 2002, ele é parte de uma geração que viu um aumento significativo no registro de nomes bíblicos, reflexo do crescimento do número de evangélicos no Brasil nos anos 2000. Segundo o IBGE, só em 2023, mais de 17 mil meninos foram registrados com o nome “Davi”. São mais de 250 mil em todo o país. A história de Davi do BBB vai além de seu nome. Jovem negro de 21 anos, nordestino, baiano, trabalhando em condições precárias em um aplicativo de transporte. Sem direitos trabalhistas ou férias, personifica os desafios enfrentados por muitos brasileiros que sofrem com a insegurança da informalidade após quatro anos de um governo empenhado no empobrecimento dos direitos trabalhistas.

A forma como alguns dos participantes do BBB 24 tratam Davi ilustra uma forma sofisticada de racismo estrutural, um fenômeno sutil e perigoso. Os ataques sofridos por ele no programa não são marcados por agressões diretas ou menções explícitas à cor de sua pele. Manifestam-se através de uma série de padrões duplos e expectativas desiguais, onde as ações de uma pessoa negra são escrutinizadas e penalizadas de maneira mais severa do que as de uma pessoa branca. É um racismo que opera nas entrelinhas, na forma de microagressões e na aplicação de estereótipos negativos.

Neste cenário, as ações de Davi são constantemente monitoradas e julgadas com um rigor que não é aplicado aos participantes brancos. Se Davi se comporta de uma maneira que é considerada aceitável em outros, em seu caso é visto como problemático. Esse padrão duplo é sintoma de um racismo sistêmico mais amplo, que permeia a sociedade brasileira. A sofisticação é um lembrete de que a discriminação racial no Brasil não se limita a atos de violência física ou verbal explícita, mas se estende a uma gama muito mais ampla e sutil de comportamentos e atitudes que perpetuam a desigualdade e a exclusão.

As justificativas para a aversão direcionada a Davi são um exemplo de como o racismo se disfarça em subjetividades e generalizações nebulosas. Frases como “a energia dele não bate” ou “é uma parada instintiva, dá pra ver” são utilizadas para mascarar preconceitos raciais sob o véu da intuição ou da incompatibilidade de personalidades. Quando uma participante afirma que “ele tem todos os gatilhos”, ou “eu nunca gostei dele, eu sempre tive problema pessoal com ele”, revela-se uma tendência preocupante de atribuir negativamente a Davi características que, quando exibidas por participantes brancos, são ignoradas ou até mesmo valorizadas. Essas expressões são ferramentas de um racismo sutil que opera por meio da perpetuação de estereótipos e da manutenção de padrões duplos.

O que essas justificativas evidenciam é uma dinâmica de exclusão e marginalização não apenas presente no Big Brother Brasil, mas refletiva de uma sociedade que frequentemente recorre a subterfúgios para disfarçar preconceitos. O caso de Davi não é isolado, mas um sintoma de um problema maior: a dificuldade em reconhecer e combater formas de racismo que se ocultam atrás de justificativas aparentemente razoáveis. Este padrão de racismo “velado” é tão prejudicial quanto o racismo explícito, pois ele valida a continuidade de práticas discriminatórias, perpetuando um ciclo de exclusão e injustiça.

A percepção da violência e do comportamento agressivo no contexto racial revela uma profunda disparidade em como a sociedade interpreta e reage a essas ações baseadas na cor da pele. Quando um homem branco exibe comportamento violento ou agressivo, frequentemente isso é contextualizado, até mesmo justificado, como uma expressão de masculinidade, uma forma de afirmação ou defesa de seu espaço. Por outro lado, a mesma conduta em um homem negro é frequentemente rotulada como “animalesca”, uma associação carregada de preconceitos históricos e estereótipos desumanizantes. Sempre a tendência de desumanizar pessoas negras e interpretar suas ações através de uma lente de preconceitos raciais.

No Big Brother Brasil, observa-se esse fenômeno na forma como as ações de Davi são interpretadas e julgadas. Agressividade, assertividade ou mesmo defesa própria por parte de Davi podem ser percebidas de maneira exageradamente negativa, enquanto comportamentos similares por participantes brancos são vistos como normativos ou até admiráveis.

A dinâmica do poder e a interação racial se tornam evidentes na figura de Rodriguinho, outro homem negro no reality. Apesar de seu histórico de comentários misóginos e posturas questionáveis, Rodriguinho consegue se integrar ao grupo dominante, o que ressalta um aspecto fundamental na compreensão da discriminação racial: a adesão ao “Pacto da Branquitude”. Este termo, cunhado pela socióloga Cida Bento, refere-se ao acordo entre pessoas brancas de se autoprotegerem e manterem privilégios sistêmicos. Curiosamente, este pacto não é exclusivo de pessoas brancas; ele também pode ser abraçado por minorias, ao adotarem comportamentos e posturas alinhados à branquitude, buscam acessar privilégios restritos a este grupo.

Rodriguinho demonstra como as minorias podem, às vezes, se alinhar com estruturas de poder opressoras para ganhar aceitação ou privilégios. É a complexidade que existe na questão racial onde a sobrevivência e a ascensão social podem levar à adoção de posturas que reforçam o status quo. No entanto, essa adesão tem um custo elevado, perpetuando os mesmos sistemas de opressão que marginalizam a população negra em geral. Este fenômeno, observado dentro do microcosmo do Big Brother Brasil, é um reflexo de uma realidade mais ampla na sociedade brasileira, onde o racismo estrutural e o pacto da branquitude continuam a moldar as relações de poder e influenciar comportamentos e alianças.

A divisão entre os grupos “pipoca” e “camarote” no Big Brother Brasil explicitam as disparidades sociais e econômicas brasileiras. Davi, membro do grupo “pipoca”, composto por anônimos, enfrenta uma realidade diária marcada pela incerteza econômica e pela luta para fazer valer cada centavo ganho em um aplicativo de transporte. Em contraste, Rodriguinho, integrante do “camarote” e famoso por sua carreira no pagode nos anos 90, entra no programa com uma segurança financeira e um status que Davi não possui. Enquanto Rodriguinho pode se dar ao luxo de afirmar que não precisa do prêmio do BBB, já que está abrindo mão de ganhos significativos que poderia estar obtendo com shows, Davi lida com a realidade de um trabalhador precarizado, dependente de cada corrida para sua subsistência.

A disparidade é refletida na tolerância e aceitação que Rodriguinho recebe dentro da casa. Sua “energia” é tolerada, até mesmo valorizada, em parte devido ao seu status pré-existente de celebridade e estabilidade financeira. Por outro lado, Davi, sem o mesmo capital social e econômico, enfrenta um escrutínio muito maior por suas ações e palavras.

Quem tem energia é poste elétrico, não seres humanos cujas interações são tingidas pelas complexidades da sociedade e pela história. Essa energia que supostamente não se alinha tem cor: é preta. Ela é o reflexo de um racismo sistêmico que persiste em negar oportunidades, em distorcer percepções e em marginalizar com base na cor da pele. As experiências de Davi no Big Brother Brasil não são incidentes isolados; são manifestações de um problema social profundo e enraizado. Quando desculpamos o racismo como uma questão de “energia”, estamos não apenas ignorando, mas também perpetuando as barreiras invisíveis que continuam a segregar e a oprimir.

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