Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

‘Enquanto a mata chora’: é tempo de Quaresma

Que tipo de Páscoa celebraremos? É possível afirmar que estamos em saída da condição de escravidão, libertando conosco toda e qualquer pessoa subalternizada por imposição de estruturas de poder perversas?

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Quaresma, época importante para cristãos e cristãs espalhados ao redor do mundo. Tempo litúrgico que convoca a uma preparação espiritual para a Páscoa, que por sua vez é a grande celebração da ressurreição do Cristo. Isto posto, esta reflexão vem na cadência dos batuques que ecoaram pelo Sambódromo, energizando o enredo da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro e levando para a avenida as questões do garimpo nas terras Yanomami e a rica cosmopercepção que permeia a espiritualidade e as práticas da vida cotidiana deste povo.

Em primeiro lugar, é notório que a Cristandade, no contexto da estrutura eclesiástica historicamente hegemônica, desenvolveu uma forma de espiritualidade alheia e até demonizadora dos festejos da cultura popular, não se dando conta do quão proféticos estes podem ser. Muito embora a fé cristã tenha uma evidente capacidade de enraizar-se em distintos solos culturais e florescer com notável diversidade, urge resgatar esta possibilidade de vivência de fé que se manifesta na festa e se apropria da folia como mediadora de possíveis ressurreições cotidianas.

Digo isso pois trazer o samba e os Yanomami para essa reflexão significa que não há como um discípulo de Jesus não atentar para uma das pautas mais imperativas da atualidade, ou seja, a realidade de urgência climática. Agravada pelos efeitos nefastos de um capitalismo predatório que não se sustenta mais, os desastres causados pelo “povo da mercadoria” (expressão utilizada por Davi Kopenawa, liderança indígena Yanomami, para se referir aos não indígenas), têm ocorrido com mais constância a cada dia que passa, à medida que o neoliberalismo devora sem piedade o corpo da terra e os corpos das pessoas.

“Não queremos sua ordem, nem o seu progresso” – afirma com veemência o samba-enredo “Hutukara”, como forma de denúncia aos desmandos constantes que têm vitimizado comunidades indígenas inteiras, não apenas os Yanomami, nesse território que se denominou Brasil após a ocupação europeia quinhentista.

Nas relações aqui traçadas entre Quaresma, teologia e cultura popular, pretendem-se denunciar que no calendário cristão há um período em que a mudança de mentalidade é bem-vinda e se faz necessária para que as transformações mais profundas aconteçam. Infelizmente, esse momento está desconectado dos clamores do planeta.

A provocação está posta: a maneira de produzir saberes e vivências acerca de Deus, espiritualidade, meio ambiente e comunidade de fé, que herdamos do norte global e seguimos reproduzindo acriticamente, precisa ser reflorestada nos afetos, nas epistemologias e nas práticas. Voltar os olhos para o significado potente da Quaresma em um país que sofreu, e ainda hoje colhe, os maléficos frutos de um Cristianismo pautado na teologia colonial é denunciar que essa estrutura por séculos esteve mais focada em controlar corpos e mentes do que em conduzir para a vida, incentivando a autonomia e a liberdade.

Muitos são os questionamentos que gritam por respostas e, com base no exuberante e perturbador desfile da Sapucaí, faz-se pertinente considerar alguns dados sobre conflitos não apenas contra o agro, o garimpo ilegal e a grilagem, mas também no panorama religioso.

O relatório “Intolerância religiosa, racismo religioso e casas de rezas queimadas em comunidades Kaiowá e Guarani”, produzido e disponibilizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil em 2022, trata dos brutais casos de crimes contra as casas de rezas, assim como torturas, agressões, tentativas de homicídio e ameaças contra rezadores e feminicídio contra as rezadoras. Nele consta a informação de que essa ofensiva tem vindo de membros de igrejas pentecostais.

Os dados são alarmantes: mesmo sendo restrito ao estado do Mato Grosso do Sul, não é de menor importância que estes façam referência ao povo Kaiowá e Guarani, segunda maior população indígena do país.

Diante destas e de outras indagações, que tipo de Páscoa celebraremos? É possível afirmar que estamos em saída da condição de escravidão, libertando conosco toda e qualquer pessoa subalternizada por imposição de estruturas de poder perversas? Os Yanomami envenenados e com sua terra-mãe dilapidada e os Guarani com suas casas de reza incendiadas têm sido alvo da nossa atenção? E as comunidades tradicionais de quilombolas, ribeirinhos e outros que para cá foram trazidos da África no sequestro atlântico? Ocupam nossas reflexões quaresmais?

Pensar um cristianismo brasileiro à parte desses incômodos é tapar os olhos e cauterizar o coração para as necessidades urgentes da nossa gente, do povo que brinca Carnaval, mas também que faz suas preces de maneira reverente e dedicada. Muitas são as vozes proféticas que têm chamado nossa atenção para os atravessamentos entre fé e clima, religião e biomas, humanidade e vida na Casa Comum; partindo do papa Francisco, passando pela Irmã Dorothy Stang, Ailton Krenak e indo até Bruno Pereira e Dom Phillips.

“Falar de amor enquanto a mata chora / É luta sem flecha, da boca pra fora” – retomo o samba-enredo com sua verdade inconveniente para afirmar que precisamos mobilizar as nossas comunidades de fé em ações afirmativas antes que desabe o céu definitivamente.

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