Diálogos da Fé

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Ditadura nunca mais

O Brasil precisa ainda ser passado a limpo em sua terrível história da ditadura. Para que haja justiça – e paz – hoje, amanhã e depois

A passeata dos 100 mil, no Rio de Janeiro, foi o início da trajetória de muitos militantes – Imagem: Correio da Manhã/Arquivo Nacional
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Em seu corajoso-espetacular-desconcertante-esperançoso livro Variações sobre a vida e a morte, o escritor Rubem Alves faz a seguinte dedicatória:

“Às vítimas que
se ofereceram em sacrifício,
por amor e esperança,
de cujas vozes nos lembramos…
Ao Paulo,
ao Maurício,
ao Ivan,
a muitos outros…”

Ele escreveu isso em 1981.

Fico imaginando se daqui a uns 40 anos, quando todas as pessoas da minha idade e acima estivermos todas mortas, alguém irá saber o contexto dessa dedicatória e quem são esses nomes, sem sobrenomes, mencionados. Em todo seu livro Rubem Alves não trata da Ditadura de 64, mas é sobre ela que fala a abertura do livro. “Vítimas que se ofereceram em sacrifício, por amor e esperança”, são jovens que levantaram suas vozes e transformaram suas ações em luta pela liberdade e justiça, contra os horrores da Ditadura. Por isso mesmo foram mortos.

Paulo Wright, filho de missionários estadunidenses, foi membro da Igreja Presbiteriana e deputado estadual por Santa Catarina. Perseguido pela Ditadura, teve seu mandato cassado. Viveu na clandestinidade até ser preso em 1973, no DOI-CODI de SP, sendo torturado e morto. Sua família nunca teve acesso a seu corpo, que é dado como desaparecido até hoje.

O segundo nome é Maurício Grabois. Natural da Bahia, judeu, foi deputado na Constituinte de 1946 e resistiu ao Golpe Militar. Defensor da luta armada para derrubar o regime, foi morto na Guerrilha do Araguaia, em 1974. Sua família nunca pode enterrar seu corpo, que também segue desaparecido, 50 anos após seu assassinato.

Ivan Mota Dias, mineiro, presbiteriano, estudante da UFF, único irmão do pastor Zwinglio Mota Dias, foi preso pela Ditadura em 1971, sendo morto dias depois. Sua mãe apelou até para a esposa do presidente-ditador Emílio Garrastazu Médici, pedindo informações do filho, mas não conseguiu ser atendida. Ivan é outro desaparecido, pois sua família jamais recebeu sequer seu corpo para um enterro digno.

E Rubem Alves termina a dedicatória: “A muitos outros…”. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, são, pelo menos, 443 mortos e desaparecidos pela ditadura, entre outros, alguns mais conhecidos, como Margarida Alves, trabalhadora rural e sindicalista da Paraíba, assassinada em 1983, nos estertores da Ditadura. Sua morte inspirou o movimento da Marcha das Margaridas, hoje nacionalmente conhecido. Também Vladimir Herzog, Rubens Paiva, Aurora Maria Furtado, “muitos outros” e outras.

Há diversos livros sobre a ditadura: documentais, testemunhais, memorialísticos, historiográficos, jornalísticos, além de filmes, sites e outros registros que guardam a memória desse período trágico e triste de nossa história. Nele, forças do Estado, legal-injusto e ilegal-criminoso mataram e desapareceram com outros brasileiros. Um grande exemplo documental é o livro Brasil Nunca Mais, iniciativa do arcebispo católico D. Paulo Evaristo Arns e do pastor presbiteriano Jaime S. Wright, com apoio do Conselho Mundial de Igrejas, que reproduz os processos da própria “Justiça Militar” contra quem defendeu a democracia e a liberdade, resistindo à Ditadura. São relatos aterrorizantes, capazes de revoltar até mentes e corações mais petrificados.

Na parte final do infindável Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Márquez põe um diálogo entre dois personagens, que coloca em dúvida a própria narrativa que ele acaba de fazer da saga da família Buendía. A gente toma um susto, pois como duvidar de uma história, razão de ser do próprio livro, e que se passou na cronologia da obra há apenas um século?!

Assim é a história, se não for recontada e rememorada, pode ser esquecida e apagada, sobretudo quando parece ser mesmo inverossímil. Como é o caso da literatura fantástica do romance colombiano ou absurdamente desumana e muitas vezes terrorista como foi a ditadura militar brasileira.

Da desconfiança e descrença surge a negação e mesmo o deboche às vítimas e suas famílias, como tem ocorrido no Brasil. É constrangedor e revoltante, desumano. Mas muita gente segue a luta pela memória, pela verdade e pela justiça, usando caminhos diversos para uma pedagogia política ao país. Para que jamais aconteça, embora, as estruturas de morte encasteladas nas instituições do estado brasileiro, sobretudo em suas polícias e forças militares, sem falar nas milícias e outros grupos criminosos, reforçam a conhecida frase de que o passado não está morto, nem passado é ainda. O Brasil precisa ainda ser passado a limpo em sua terrível história da ditadura. Para que haja justiça – e paz – hoje, amanhã e depois.

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