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Le Goff: o autor de uma outra Idade Média

O legado de Jacques Le Goff, um dos idealizadores da corrente da Nova História

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É quase impossível um bom conhecimento da história medieval sem passar por alguns dos muitos livros escritos por Jacques Le Goff, morto no dia 31 de março de 2014, aos 90 anos. Suas obras tornaram-se essenciais para se esboçar um quadro geral da época e obrigatórias no que se refere à história da cultura e do imaginário medievais.

Se a sua trajetória inicial de historiador esteve ligada diretamente ao grupo de historiadores franceses da revista Annales, Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel e, depois, à (mal definida) corrente historiográfica da Nova História, sua obra adquiriu feições próprias e lançou elementos peculiares de renovação historiográfica muito além dos propósitos iniciais daquela difusa constelação de historiadores.

Como o próprio Le Goff admitia, o maior legado da geração de historiadores pós-Braudel foi a ênfase na globalidade dos processos históricos, na qual os acontecimentos políticos continuam visíveis como referências sintomáticas de elementos da longa duração social.

O exemplo paradigmático dessa ênfase está em um dos seus primeiros livros, A Civilização do Ocidente Medieval, no qual já se introduz a ideia de uma outra Idade Média. Lembrando que tal período não foi um tempo de trevas ou uma longa transição estagnada, Le Goff propõe uma “longa” Idade Média, que não acaba no fim do século XV, mas avança para o século XVI.

Esta proposição respondia ao desafio de uma compreensão polêmica do universo medieval, característica da historiografia na década de 1970: de um lado, “a era das catedrais e da fé” dos tradicionalistas; de outro, os historiadores republicanos denunciavam o período do obscurantismo clerical e da violência feudal.

Le Goff propunha uma visão global da Idade Média, orientada para a densidade concreta, rotineira e lenta da vida cotidiana. O que ocorre aí é que a cultura medieval marcou toda essa grande aventura da história ocidental, deixando traços, os quais, de tão rotineiros, tornaram-se irreconhecíveis nos tempos atuais. O purgatório, por exemplo, foi uma criação da cultura medieval, por volta dos anos 1170, quando Le Goff percebeu a mudança no vocabulário do adjetivo purgadores para o substantivo purgatório.

A invenção de um lugar intermediário, no qual os mortos beneficiavam-se de um período suplementar de expiação para obterem a salvação, não ficou apenas no âmbito das crenças religiosas, mas afetou as estruturas sociais, os comportamentos e as mentalidades coletivas.

bruegel

Outro legado foi a busca de um diálogo com as outras ciências sociais, que o conduziu a delinear uma espécie de antropologia do tempo e do espaço medievais. A percepção do espaço é determinada pelo conhecimento dos homens, mas também por seus sonhos e aspirações inerentes às sensibilidades coletivas daquela época.

Como no famoso artigo de 1960, no qual Le Goff opõe o tempo cíclico e lento, ligado aos ritmos litúrgicos e ao tempo natural, a um tempo quantificável, mensurável e abstrato dos comerciantes. Ao escrever belas páginas sobre os sinos, clepsidras, relógios e outros objetos práticos para marcar o tempo, transparece o brilho do historiador como professor.

O professor se revela não só nos manuais que ele escreveu ou organizou para o ensino de história na França, mas na simplicidade com que aborda as questões históricas no pequeno livro A Idade Média Explicada aos Meus Filhos.

Na Idade Média, as pessoas viviam o tempo todo em função da religião? Supondo-se as diferenças entre os imperadores e o rei, quais as qualidades ideais de um bom chefe de Estado no ambiente político medieval? Por que a biografia de São Francisco de Assis é importante para se conhecer o imaginário medieval?  Qual o estatuto do humor e do riso numa cultura marcada pelo rigor da culpa e do pecado?

Para todas essas questões Le Goff não esconde conflitantes pontos de vista sobre o passado, elaborando respostas concisas. Ele revela elementos importantes de sua formação: além da leitura dos romances de Walter Scott, fonte de inspiração juvenil pela história, deixa escapar que o retrato mais fiel que o cinema já realizou sobre a Idade Média foi Lancelote do Lago(1974), de Robert Bresson.

Com um olhar antropológico, Le Goff descreve uma sociedade que vive num equilíbrio entre o desprezo e a glorificação do corpo.  A síntese visual desta oscilação está no metafórico combate entre a Quaresma e o Carnaval, imortalizado no célebre quadro de Bruegel, de 1559: de um lado, o magro, o jejum, a abstinência, a parcimônia e o ascetismo; de outro, o gordo, os banquetes, a gula, o regabofe e a lascívia.

É essa ambiguidade que dá o tom já no limiar da Idade Média, quando o papa Gregório Magno define o corpo como aquela “abominável vestimenta da alma”. Pelos monges, o modelo a seguir na Alta Idade Média seria mortificar o corpo com tenacidade, jejuando, usando cilícios na tentativa de afastar a tentação e, portanto, o pecado. Noutra perspectiva, o corpo é sacralizado, encarnado, identificado ao corpo padecente de Cristo. O cristianismo medieval foi constantemente atormentado pela ambiguidade em relação ao corpo, ao mesmo tempo magnífico e maldito, glorificado e reprimido, exaltado e rechaçado.

Na impossibilidade de controlar os corpos, a Igreja procura codificar e regulamentar tudo o que se refere ao corpo. Arte culinária, beleza, gestos, medicina, morte, amor, nudez, domínios da vida social e privada vão inserir-se na triunfante cultura cristã europeia. O cristianismo instituído e a sociedade de corte vão “civilizar o corpo”.

Mas o corpo resiste, nas narrativas literárias cheias de erotismo e nudez, no imaginário país da Cocanha ou nas festas populares. Neste aspecto a obra de Le Goff ilumina toda uma cultura construída em cima de contrastes e tensões notáveis: entre Deus e o homem, o homem e a mulher, a cidade e o campo, o topo e a base, a riqueza e a pobreza, a razão e a fé.

“Se biógrafo é ser alguém que trata de escrever a biografia de uma personagem que encarne uma época e que faça com que as características profundas desta época gravitem em torno da mesma personagem, então eu admito ser um biógrafo.” A declaração de Le Goff  talvez explique as importantes biografias que ele publicou a respeito de São Luís, São Francisco outros grandes personagens do universo medieval.

Homens e Mulheres da Idade Média, organizado pelo historiador, tem a marca da configuração biográfica que ele forjou nas suas próprias pesquisas: é necessário não apenas consolidar as verdades factuais, mas percorrer o longo caminho das lendas e dos mitos criados em torno daquelas figuras. A força da representação é tão forte que as sociedades atuais deixam de perceber o quanto as tradições foram criadas, ou seja, historicamente inventadas. Definir os contornos do que foi mais significativo, se a realidade concreta ou a simbólica, é uma das tarefas mais complexas do historiador.

O exemplo das biografias mostra como Le Goff foi um mestre ao explorar um vaivem constante entre a representação e a realidade. Mais do que mera renovação teórica, suas obras ampliaram, de forma perspicaz, a própria noção de fonte histórica, abrindo, na prática, novos campos de pesquisa.

A costumeira distinção entre fontes primárias, ou “de primeira mão”, e fontes secundárias (indiretas ou de “segunda mão”) tornou-se inócua, pois dependendo do ponto de vista do observador, o que valeria mais: sua procedência, seu conteúdo ou o grau de relação com o tema investigado? Quanto ao volume de informações documentais, a própria prática dos historiadores inverteu o antigo desprezo positivista em relação aos papéis notariais, arquivos judiciais ou registros contábeis de empresas: a distinção deveria ser entre documentos seriáveis e não seriáveis.

Já em relação à intencionalidade, a simples distinção entre fontes voluntárias (testemunhais) e involuntárias (não testemunhais) deslocou o olhar dos historiadores para os mecanismos de produção do documento: cenotáfios, “lugares de memória” e monumentos de um lado; de outro, cardápios, diários ou testamentos. Inspirando-se em Paul Zumthor, Le Goff dizia que o que transforma, afinal, o documento em monumento é a sua utilização pelo poder.

Para derrubar de vez as restrições tradicionais que pesavam sobre a noção de documento, completava: “Não existe um documento objetivo, inócuo, primário. (…) O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado; é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que detinham o poder. Só a analise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa”.

Resulta daí a lição maior de que a história não é feita apenas de acontecimentos, mas, sobretudo, das formas através das quais eles são representados pelas sociedades. Redescobrir essas formas e trazê-las à vida presente é a tarefa maior do historiador que Le Goff soube tão bem realizar.

*Publicado originalmente em Carta na Escola

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