Política
O bufão do Bicentenário
Bolsonaro não radicaliza, mas abusa da pequenez histórica e do dinheiro público na luta pela reeleição


O Brasil “independente”, 200 anos depois, é uma vergonha. Uma das dez maiores economias do mundo nega à maioria condições dignas de vida. Um dia após o 7 de Setembro, o País aparecia na 87ª posição, entre 191 nações, no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano. O cálculo do IDH leva em conta a expectativa de vida, o tempo de estudo e a renda per capita. Neste último quesito, o Brasil se sai pior, graças, claro, à pornográfica concentração de renda, fruto da mesma longuíssima tradição iniciada não em 1822, o ano da Independência, mas em 1500, o da chegada dos portugueses. Ao tomar posse em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro não quis mencionar a expressão “desigualdade social” que constava na versão escrita de um de seus discursos, preparada previamente por auxiliares. Por que imaginar que agiria de outra forma nos festejos do bicentenário?
As comemorações serão lembradas no futuro como um comício do presidente em busca da reeleição bancado com verba pública, e só. De Bolsonaro não se ouviu nada sobre sonhos, soberania, projeto de país. Estava em cena única e exclusivamente o candidato em busca desesperada por mais quatro anos no poder. E desse ponto de vista eleitoral, qual o saldo? O capitão foi comedido, como pregava a ala do “Centrão” de seu comitê, encarnada no ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. A postura pode ter frustrado seus apoiadores mais radicais, favoráveis a um golpe, mas não deu motivos aos eleitores propensos a optar por Lula apenas no segundo turno para que adiantem o voto no petista. A antecipação contribuiria para liquidar a disputa em 2 de outubro. Entre os simpatizantes de Ciro Gomes, do PDT, 56% acham que ele deveria apoiar Lula em um turno final contra Bolsonaro, do PL. No caso dos de Simone Tebet, do MDB, são 41%. Os dois índices superam a preferência por apoio ao capitão (17% e 22%, respectivamente), conforme uma pesquisa Genial/Quaest divulgada no Dia da Pátria. Juntos, Ciro e Simone têm cerca de 10% nas pesquisas.
“HOJE NÃO FOI UM PONTO DE VIRADA PARA ELE”, DIZ A CONSULTORIA EURASIA SOBRE OS FESTEJOS DO 7 DE SETEMBRO SEQUESTRADOS PELO CAPITÃO
No PT, não se apostava em uma radicalização presidencial, pois a campanha de Bolsonaro tornou-se mais convencional, com a cara do “Centrão”. Também não se acredita que os indecisos, cerca de 5% nas pesquisas, serão influenciados pelo 7 de Setembro. O presidente ofereceu um discurso sem novidades em relação a seu horário eleitoral no rádio e na tevê. Chamou Lula (sem citá-lo) de “ladrão”, colocou-se como um governante patriota e temente a Deus, um defensor da família e da liberdade. “Hoje não foi um ponto de virada para ele (Bolsonaro)”, diz uma análise enviada a clientes na noite da quarta-feira 7 pela consultoria política internacional Eurasia. O texto destaca “a falta de novas mensagens para um público mais amplo”, especialmente quanto ao “sentimento de vulnerabilidade econômica” da população. E conclui que as chances de reeleição são de 35%. A consultoria anotou ainda que a base bolsonarista sairá ainda mais fiel ao “mito” e que ganhou “energia” para ir até 2 de outubro. “Sejamos resistentes. Vai ganhar quem terminar de pé”, tuitou Eduardo, um dos filhos do presidente, enquanto o pai discursava pela manhã em Brasília.
Não se sabe ao certo quantos eleitores estiveram nas ruas a favor de Bolsonaro, inexistem cálculos oficiais das forças de segurança. Certo é que foram manifestações grandes e indicativas do ânimo e do engajamento da militância presidencial. Lula, que tem feito uma campanha na retranca, levaria o mesmo número de simpatizantes às ruas? Segundo uma pesquisa do Instituto Ipespe do último dia 3, 18% dos eleitores de Bolsonaro declaram participar da campanha. No caso do petista, 11%. Esse levantamento sondou os sentimentos dos brasileiros às vésperas da eleição. Há mais positivos, como esperança (37%) e confiança (15%), do que negativos, como preocupação (17%) e indignação (11%). Entre os partidários de Bolsonaro, porém, 20% se dizem confiantes, índice menor com o metalúrgico, 14%. Lula desperta mais esperança entre os seus (44%) do que o presidente (35%).
Luciano Hang portou-se como o Rasputin do 7 de Setembro. Foi mais um desafio de Bolsonaro a Alexandre de Moraes – Imagem: Arquivo/STF e Alan Santos/PR
“Nunca utilizamos um Dia da Pátria para campanha eleitoral. Ao invés de discutir os problemas do Brasil, Bolsonaro me ataca, ao invés de explicar como a sua família juntou 26 milhões em dinheiro vivo para comprar 51 imóveis. O Brasil precisa de amor, não de ódio”, declarou Lula em um vídeo nas redes sociais na noite da quarta-feira 7. Os advogados do comitê petista decidiram ingressar no Tribunal Superior Eleitoral com uma ação por abuso de poder econômico e político contra o presidente. No limite, o questionamento poderia levar à cassação da chapa do capitão. Para os advogados, o abuso foi “acachapante, com o uso de recursos públicos, de uma grande estrutura pública, para fazer campanha. Os discursos desse comício escancarado foram transmitidos ao vivo para toda a nação, inclusive por meio da TV Brasil, uma tevê estatal”.
O partido Rede e as campanhas de Ciro e Soraya Thronicke, do União Brasil, também anunciaram ações judiciais. A Rede pretendia cobrar uma indenização pesada de Bolsonaro aos cofres públicos pelo uso de verba federal numa atividade que, ao fim e ao cabo, foi de campanha. Soraya defende que o horário eleitoral de Bolsonaro na tevê e no rádio seja cortado e repartido entre os demais presidenciáveis, uma forma de compensá-los. Para o ex-juiz eleitoral Márlon Reis, candidato a deputado pelo PSB do Tocantins, em tese é possível que o TSE proíba o capitão de utilizar em sua propaganda vídeos e fotos gerados no Dia da Independência. Produzir esse material era um dos objetivos do comitê da reeleição. Segundo Reis, cabe não só uma ação para impugnar a chapa de Bolsonaro, mas para cassar o próprio mandato presidencial. “Como se trata de um evento oficial, não poderia ter havido nenhuma manifestação sobre temas eleitorais, falando sobre como as pessoas devem votar. É conduta vedada a agente público”, afirma.
*Fonte: Pesquisa “Termômetro da Campanha Presidencial”, do instituto Ipespe, de 3 de setembro
“A vontade do povo se fará presente no próximo dia 2 de outubro. Vamos todos votar, vamos convencer aqueles que pensam diferente de nós, vamos convencê-lo do que é melhor para o nosso Brasil”, disse Bolsonaro nos festejos em Brasília. Eis o batom na cueca pelo uso em proveito eleitoral próprio de um ato patrocinado com recursos federais. Na sequência dessa declaração, o candidato disse que o povo deveria comparar não só ele e Lula, mas as esposas de ambos. A evangélica Michelle seria uma “mulher de Deus”, declarou. Em seguida, beijou-a, enquanto seus fiéis gritavam, e ele repetiu, a palavra “imbrochável”. Terá obtido voto? Mulheres com atitude mais feminista certamente repudiaram a cena. Detalhe: quando o casal entrava no carro para ir do Palácio do Alvorada ao desfile na Esplanada dos Ministérios, houve algum desentendimento entre eles, filmado por uma câmera da tevê estatal.
A presença da primeira-dama no 7 de Setembro foi outra tentativa do marido de melhorar a imagem com as mulheres. O voto feminino por ora decide a eleição a favor de Lula. Numa pesquisa Ipec, o ex-Ibope, da segunda-feira 5, o petista ganha do capitão no primeiro turno por 44% a 31% no geral e, apenas entre as mulheres, por 45% a 26%. A rejeição a Bolsonaro é 5 pontos porcentuais acima da média. O aumento para 600 reais do Auxílio Brasil, o ex-Bolsa Família, tem sido incapaz de reverter a situação. Dos 18 milhões de pagamentos, 15 milhões vão para mulheres. Entre quem tem acesso ao programa, a vantagem de Lula sobre Bolsonaro subiu 3 pontos desde agosto, conforme levantamento Genial/Quaest da quarta-feira 7. Para 62% dos brasileiros, o reajuste no valor foi “eleitoreiro”.
PARTIDOS DE OPOSIÇÃO PROMETEM INGRESSAR COM AÇÕES NO TSE POR ABUSO DE PODER ECONÔMICO E POLÍTICO
Mulheres à parte, o que fará o TSE do linha-dura Alexandre de Moraes diante do escandaloso uso da máquina pública pelo candidato à reeleição? No 7 de Setembro do ano passado, o juiz havia sido chamado de “canalha” pelo presidente. Quatro dias antes dos festejos deste ano, em passagem pelo Rio Grande do Sul, Bolsonaro referiu-se ao ministro como “vagabundo”, embora sem mencioná-lo. O comentário foi feito por causa da autorização do magistrado para a batida da Polícia Federal de 23 de agosto contra oito empresários flagrados em conversas golpistas no WhatsApp. Com a operação, Moraes espera ao menos inibir qualquer conspiração. “Pessoas honradas”, afirmou Bolsonaro sobre o octeto, na véspera do feriado. Os oito foram convidados para acompanhá-lo no Dia da Pátria. Luciano Hang, das Lojas Havan, estava colado no capitão em Brasília e no Rio de Janeiro. Destacou-se mais do que os três chefes de Estado presentes: Marcelo Rebelo de Souza, de Portugal, Umaro Sissoco Embaló, de Guiné-Bissau, e José Maria Neves, de Cabo Verde.
Souza compareceu apesar de uma desfeita de Bolsonaro em julho. Naquela visita ao Brasil, iria encontrar o presidente, mas decidiu primeiro conversar com Lula. Irritado, o capitão deu um bolo no colega português. Em Portugal, é maior do que aqui o negacionismo quanto aos efeitos da escravidão praticada por mais de três séculos na ex-colônia, último país do mundo a abolir a prática. Para 33% dos portugueses e 20% dos brasileiros, as consequências são coisa do passado. Para 58% dos portugueses e 75% dos brasileiros, não: estão por aí até hoje, na forma de violência e preconceito contra negros e indígenas. Violência simbólica que não só Bolsonaro ignorou no Dia da Pátria, como reforça a cada dia de seu governo. Não à toa, entre negros e pardos, 55% da população, ele perde de longe para Lula, 47% a 29%, conforme a última pesquisa Ipec.
Em outros estados, como Minas Gerais, os desfiles militares ocorreram como de costume, sem grandes sobressaltos – Imagem: Redes sociais
Na véspera dos festejos, Souza, Embaló e Neves haviam sido recebidos no Palácio Itamaraty, a sede do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. As comemorações na capital da República tinham sido precedidas de negociações do Supremo Tribunal Federal com o governo local para a polícia reforçar o esquema de segurança. Havia receio de violência dos partidários do presidente contra o STF. O Distrito Federal, lar de 1,4% do eleitorado, é um reduto bolsonarista e uma das duas maiores guarnições militares do País. Na eleição de 2018, o capitão teve 58% dos votos no primeiro turno e 70%, no segundo. Agora, conforme uma pesquisa Ipec, bate Lula por 38% a 31%. O governador Ibaneis Rocha, do MDB, fã do presidente, caminha para ser reeleito com folga. Mas peitou o ídolo.
Na segunda-feira 5 à noite, a PM fechou a Esplanada dos Ministérios para impedir o acesso de caminhões ao desfile militar. No 7 de Setembro do ano passado, o presidente do STF, Luiz Fux, que passará o bastão a Rosa Weber na segunda-feira 12, tinha informações de que a Corte seria invadida por um caminhão. Detalhe: nem Fux nem os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, participaram dos festejos deste ano com Bolsonaro. O trio foi apenas a uma sessão solene um dia depois, no Congresso. O capitão quis liberar na marra o acesso de caminhões à Esplanada desta vez e mandou o Exército dar um jeito. Rocha bateu o pé: “Só entra gente”. Durante as comemorações, a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal registrou poucos incidentes. Foram apreendidos 12 celulares, por suspeita de roubo, estiletes e canivetes. Não houve registro de armas de fogo.
APOIADORES DE BOLSONARO EXIBIAM CARTAZES CONTRA O STF E LULA E A FAVOR DA INTERVENÇÃO MILITAR, MAS O TOM GOLPISTA NÃO ERA O MESMO DO ANO PASSADO
Na segunda-feira 5 pela manhã, Eduardo Bolsonaro havia convocado os portadores legalizados de armas, os CACs, para “se transformar num voluntário de Bolsonaro” e distribuir “santinhos do presidente”, aqueles folhetos com o nome e o número do candidato. Por acaso ou não, horas depois Edson Fachin, do Supremo, baixou uma liminar com restrições para compra e porte de armas e munições. O juiz tomou a decisão em duas ações que contestam decretos presidenciais armamentistas, movidas por PT e PSB. O despacho passou por cima de um colega de Corte, Nunes Marques, indicado de Bolsonaro que há um ano trava o julgamento dessas ações pelo plenário. Segundo Fachin, “o risco de violência política torna de extrema e excepcional urgência a necessidade de se conceder” a liminar. Recorde-se que em julho um guarda petista foi assassinado à bala por um agente penitenciário bolsonarista, em Foz do Iguaçu.
A convocação da legião armada levou os advogados da campanha lulista a pedir ao Supremo para incluir Eduardo no inquérito sobre a quadrilha de carne e osso sabotadora da democracia, o 4.874. Motivo: possibilidade de montagem de “verdadeiras milícias privadas” para resistir ao resultado das urnas (as eletrônicas, aliás poupadas por Bolsonaro no 7 de Setembro). O inquérito corre aos cuidados de Alexandre de Moraes. O filho do presidente não deu bola para a decisão de Fachin. Logo em seguida, voltou às redes sociais para dizer que ela “é totalmente inócua”.
Eduardo Bolsonaro convocou os atiradores, mas o apelo não encontrou eco – Imagem: Redes sociais
O deputado, elo do bolsonarismo com a extrema-direita de outros países, estava eufórico após o 7 de Setembro. “Maior movimento político pelo menos da América Latina”, tascou no Twitter. No feriado do ano passado, o pai havia recebido Jason Miller, ex-assessor de Donald Trump e um dos cabeças de uma rede social na qual a extrema-direita deita e rola, a Gettr. À época, Miller tinha sido interrogado pela Polícia Federal, em um inquérito sobre distúrbios e pregação ditatorial no Dia da Independência. Miller voltou ao Brasil agora. Compareceu às manifestações que ocorreram no Rio de Janeiro à tarde, após aquelas de Brasília.
No Rio, o presidente bateu o pé e se deu bem. Queria que a exibição das tropas ocorresse na Praia de Copacabana e conseguiu. O prefeito da cidade, Eduardo Paes, do PSD, defendia as comemorações no Centro. O estado é o terceiro maior colégio eleitoral do País (tem 8% dos votantes), abriga a segunda maior guarnição militar e também é um reduto bolsonarista. Os números da eleição de 2018 e das pesquisas de intenção voto de agora assemelham-se àqueles do Distrito Federal. Na campanha passada, o capitão teve, contra Fernando Haddad, 59% no primeiro turno e 68%, no segundo. Desta vez, empata com Lula, 39% a 38%, respectivamente, conforme pesquisa Ipec. Na véspera do feriado, paraquedistas militares fizeram um ensaio para a apresentação do dia seguinte e houve acidentes. Rajadas fortes de vento, segundo o Exército, arrastaram quatro deles para longe do destino final (um caiu numa árvore, outro num telhado, um terceiro no meio da rua e um último, numa calçada).
“Estamos aqui na rua para mostrar que Bolsonaro tem muito mais apoio do que os 30% que aparecem nas pesquisas manipuladas”, disse o aposentado Thadeu Figueiredo, presente à orla de Copacabana. A salva de tiros realizada por grupos de artilharia do Exército tinha começado às 8 da manhã. Após uma sucessão de carros de som com políticos e religiosos dividir o microfone, por volta de duas e meia da tarde houve alvoroço com a chegada da motociata de Bolsonaro e algum empurra-empurra antes da subida do presidente ao palanque ao lado de outras autoridades. Havia poucas faixas com palavras de ordem antidemocráticas ou pedidos de intervenção militar e fechamento do STF. Algumas abertas em frente ao palanque no qual Bolsonaro discursou.
Nem tudo saiu, porém, como o presidente esperava no Rio. Naquela noite ele foi ao Maracanã, onde o Flamengo jogava pela Libertadores contra o Vélez, da Argentina, e ouviu uma sonora vaia. •
*Colaborou Mauricio Thuswohl.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O bufão do Bicentenário”
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