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Racismo indecoroso

As cassações do vereador negro Renato Freitas e do prefeito indígena Marcos Xucuru desnudam o revanchismo da casa-grande

Racismo indecoroso
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Tapetão. O cacique foi eleito com 51% dos votos, mas nem sequer chegou a assumir a prefeitura de Pesqueira (PE) - Imagem: Arquivo pessoal e Arquivo/CMC
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Negro, periférico, advogado, mestre em Direito, vereador eleito em Curitiba em 2018 com 5.097 votos. Este é Renato Freitas, 38 anos, que carrega em sua biografia numerosos episódios de racismo e teve seu mandato cassado, no dia 5 de agosto, por ter participado, em fevereiro deste ano, de um protesto em frente à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Largo da Ordem, região central da capital paranaense.

O ato era para denunciar a xenofobia e o racismo que motivaram o assassinato do congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro, atividade que aconteceu simultaneamente em várias outras cidades brasileiras. Enquanto o protesto acontecia do lado­ de fora, dentro da igreja o padre Luiz Hass celebrava uma missa e, ao término da celebração, os manifestantes, inclusive Freitas, adentraram na igreja. Este foi o “crime” que tirou do vereador do PT o mandato que lhe foi consagrado pelas urnas. “Crime”, por sinal, bem mais brando que o praticado pelo deputado estadual por São Paulo, Fernando Cury, que apalpou os seios da colega Isa Penna no plenário da Assembleia Legislativa e não perdeu o mandato. Ou do deputado bolsonarista Daniel Silveira, autor de ameaças aos ministros do Supremo Tribunal Federal e incontáveis ataques à democracia, mas a Câmara faz vistas grossas.

Fazendo uma analogia com outros casos recentes, a cassação de Freitas torna-se algo ainda mais inusitado. Em maio passado, a Assembleia Legislativa de São Paulo cassou o então deputado Arthur do Val, o Mamãe Falei, depois do vazamento de áudios sexistas do parlamentar, afirmando que as mulheres ucranianas, refugiadas de guerra, “são fáceis porque são pobres”. Em junho do ano passado, o então vereador Doutor Jairinho, do Rio de Janeiro, perdeu o mandato por envolvimento na morte do menino Henry Borel, de 4 anos. E o que dizer do também vereador carioca Gabriel Monteiro, acusado de estupro de vulnerável? A Comissão de Ética da Câmara pediu por unanimidade a cassação do parlamentar, mas a decisão depende de aprovação no plenário. (Nota da redação: Por 48 votos a 2, Câmara do Rio cassou o mandato de Monteiro).

A rígida punição aplicada ao vereador de Curitiba vai contra o posicionamento oficial da Igreja Católica, suposta vítima do ato que teria sido liderado por Freitas. O padre Luiz Hass não só saiu em defesa do parlamentar como esteve presente na sessão de cassação e sentou na primeira fila ao lado do réu. A Arquidiocese de Curitiba inicialmente registrou um boletim de ocorrência contra o protesto, mas, ao perceber a instrumentalização política do ato, voltou atrás. Durante a tramitação do processo, a entidade entregou ao Conselho de Ética da Câmara um documento colocando-se contra a cassação, considerando a punição desproporcional ao ocorrido e ainda elogiou o ativismo de Freitas contra o racismo e na defesa da população negra. “A manifestação contra o racismo é legítima, fundamenta-se no Evangelho e sempre encontrará o respaldo da Igreja. Percebe-se no vereador o anseio por justiça em favor daqueles que historicamente sofrem discriminação em nosso país. A causa é nobre e merece respeito”, diz um trecho do documento. O padre Júlio L­ancellotti, reconhecido pela defesa dos excluídos, também saiu em defesa de Freitas.

Punido por suposta invasão a uma igreja, Freitas se encontrará com o papa Francisco no fim de setembro

“Tecnicamente, não há objeto da cassação, porque não houve invasão da igreja. Canonicamente, não existiu a interrupção do ato litúrgico nem a profanação do espaço sagrado. Também não proferiram nenhuma palavra contra a fé nem houve depredação”, diz Lancellotti, acrescentando que a cassação é fruto do racismo estrutural. “A motivação é de ódio aos pobres e de um racismo que não suporta um vereador periférico questionar a hegemonia branca que manda em Curitiba. Não há razoabilidade. É uma cassação montada em cima de fake news, ódio, racismo e aporofobia.”

O episódio teve grande repercussão no interior da Igreja Católica e chegou até o Vaticano. No fim de setembro, Freitas terá um encontro com o papa Francisco, quando deverá denunciar a cassação e o extermínio da juventude negra no Brasil. Há também a expectativa de o vereador ser recebido por organismos internacionais. “Tentaram silenciar nossas vozes, nos asfixiar e nos matar politicamente, porque ousamos fazer com que as pessoas soubessem que a mesma violência que ocorreu no assassinato do Moïse também ocorre em Curitiba”, acusa Freitas. Os advogados do vereador, Guilherme Gonçalves, Edson Abdala e Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, entraram com uma ação na Justiça do Paraná, pedindo não só a devolução do mandato de Freitas, mas também a anulação da inelegibilidade de dez anos aprovada pela Câmara. O petista é candidato a deputado estadual.

Dentre os argumentos da defesa está o de que o processo não cumpriu o tempo estipulado pela legislação. Segundo os advogados, a jurisprudência estabelece que o processo deveria ter ocorrido em, no máximo, 90 dias corridos. No regimento da Câmara, consta que esse prazo pode ser contado em dias úteis, o que para os advogados é inconstitucional. “A jurisprudência entende que o prazo para fim de cassação de mandato dentro do Legislativo sempre é contado como decadência, em dias corridos”, explica Gonçalves. “Eles querem cassar o Renato desde o início. Toda instrução do processo deixa claro que a cassação se deu por racismo. Foi um jogo de cartas marcadas”, completa Kakay.

Impunes. Silveira ameaçou o STF e Monteiro é acusado de estupro de vulnerável – Imagem: Betinho Casas Novas/Futura Press/Folhapress e Fernando Frazão/ABR

O presidente da Câmara, vereador ­Tico Kuzma, defendeu o regimento interno e diz que a cassação por quebra de decoro é subjetiva. “É uma decisão de interpretação de cada vereador, que, após analisar as provas, assim como o relatório do Conselho de Ética, define se o ato foi suficiente ou não para a quebra de decoro.” O parlamentar nega o caráter racista do processo.

Freitas não é o único que se diz vítima de racismo na política. Eleito em 2020 prefeito de Pesqueira, município do Agreste pernambucano, o cacique Marcos ­Xucuru jamais conseguiu assumir o cargo e, no início de agosto, o TSE confirmou a inelegibilidade do indígena. Quem assumiu interinamente o cargo foi o presidente da Câmara, Sebastião Leite da Silva Neto, que deverá repassar a função ao prefeito que será eleito em 30 de outubro.

Recai sobre Marquinhos, como é conhecido, a acusação de que ele teria estimulado uma revolta popular em 2003, que resultou no incêndio de uma propriedade. Ele nem sequer estava presente no ato. O conflito foi gerado depois de uma emboscada contra o próprio cacique, que resultou na morte de dois indígenas. Marquinhos recebia atendimento médico durante a revolta popular, mas foi condenado por supostamente ter liderado o movimento. “Naquela época, corria um boato de que o cacique também tinha sido morto e é nesse clima que a comunidade xucuru vai incendiar a propriedade”, explica Eliene Amorim, pesquisadora da causa indígena. O cacique foi condenado em duas instâncias e, em 2016, a sentença foi transitada em julgado, cravando o nome de Marcos Xucuru na Lei da Ficha Limpa.

O cacique Marquinhos é acusado de liderar uma revolta enquanto recebia atendimento médico após ser ferido em uma emboscada

“A decisão do TSE reafirma as injustiças e a criminalização que os xucurus sofreram historicamente. Com base em julgamento que ocorreu há tanto tempo, os ministros impediram que a principal liderança desse povo ocupasse a função de prefeito, legitimando o preconceito e o racismo estrutural”, destaca Saulo Feitosa, estudioso dos povos xucuru, acrescentando que o conflito de 2003 se deu num contexto de disputa pela terra e que os agressores não eram os indígenas. ­Marcos ­Xucuru se diz injustiçado tanto pela decisão do TSE quanto por ter sido condenado pelo conflito de 2003. “Por conta da luta pelo território ainda hoje estou sendo perseguido, tendo meus direitos políticos cassados por uma coisa que eu não cometi. Algumas pessoas não aceitam que os indígenas possam ocupar espaços de poder.”

A Articulação dos Povos Indígenas (Apib), em conjunto com a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), publicou uma nota em apoio a Marquinhos e contra a decisão do TSE. Dentre os ministros da Corte eleitoral, o único que votou a favor do indígena foi ­Edson Fachin. O ministro observou que o caso está inserido “no âmbito de um complexo contexto de conflito étnico, no qual está em jogo não apenas o bem econômico nem somente o patrimônio das pessoas”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Racismo indecoroso”

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