Sustentabilidade

Como a mineração de ferro ameaça a biodiversidade e as comunidades tradicionais na Chapada Diamantina

A Serra da Chapadinha, que abarca mais de 30 sítios arqueológicos não-catalogados, foi quase toda loteada a empresas autorizadas a investigar a existência do mineral; moradores temem falta de água e contaminação

A Chapada Diamantina, na Bahia, é composta por 24 municípios que oferecem inúmeros atributos naturais, mas vive sob ameaça da especulação financeira - Reprodução/Kennedy Silva
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O professor Jonilson dos Santos Melo, 39, vive há mais de duas décadas no Assentamento Europa, comunidade localizada na zona rural do município de Itaetê, na Chapada Diamantina (a cerca de 387 quilômetros de Salvador). Lá, cerca de 50 famílias têm o sono e o despertar embalados pelo rumorejar das águas negras do Rio Una.

Trata-se de um curso d’água que atravessa a Serra da Chapadinha e é protagonista da vida de quem, desde muito cedo, encontra o seu sustento na agricultura familiar. Além disso, desempenha papel fundamental no abastecimento hídrico de mais de 60% dos lares da região metropolitana de Salvador. 

Há alguns meses, porém, a comunidade enfrenta o medo de ver o Una desaparecer. O temor nada tem a ver com a possibilidade de o rio secar por contra própria, uma característica dos rios perenes. É o avanço da mineração que tem colocado em xeque o acesso da comunidade à água e a biodiversidade da região. 

Cerca de 240 municípios baianos tiveram suas rotinas alteradas com a chegada de projetos para mineração nos últimos cinco anos

“Os afluentes do rio serão prejudicados, e o Una pode secar gradualmente”, diz Joilson a CartaCapital. “Assoreamento de rios, morte de peixes, tudo isso a gente teme.”

Encravada entre os picos castigados pela exploração do diamante no século XIX, a Serra da Chapadinha abarca mais de trinta sítios arqueológicos não catalogados. Está localizada em área protegida pela Lei da Mata Atlântica e rodeada por três unidades de conservação. Além disso, desempenha papel importante no conjunto da Bacia do Rio Paraguaçu, responsável pelo abastecimento hídrico de 60% da população que vive na região metropolitana de Salvador. 

Quase três séculos depois e apesar de sua importância e de mecanismos de proteção, a região ainda é cobiçada pelas gigantes da mineração: hoje, quase toda a serra está ocupada por empresas autorizadas a investigar a existência de ferro por ali.

“Já tem demarcação [para exploração] aqui bem próximo da gente, inclusive além da Chapadinha”, acrescenta Joilson, que mora no Assentamento Europa desde 1998. “Mas aqui [nas proximidades da comunidade] mesmo, é algo que veio agora. É uma atividade que vai levar lucro a curto prazo, mas a que custo?”.

São diversos processos de pesquisa mineral em fase inicial na região, apurou CartaCapital. Um deles é encabeçado pela estatal Companhia Baiana de Pesquisa Mineral, CBPM, que estuda o potencial de extração do diamante na principal fonte de abastecimento do Assentamento Baixão. Nesta fase, não há retirada do mineral. Caso o potencial exploratório seja identificado, a estatal fará uma licitação para encontrar empresas que darão seguimento à atividade. 

O território da Chapada Diamantina é alvo de cobiça das gigantes da mineração. Atualmente, a região está completamente loteada por empresas do ramo – Reprodução/ANM

O outro processo, sob responsabilidade da recém criada Mineração Novo Rumo Ltda, compreende quatro áreas que, somadas, equivalem a mais de seis mil campos de futebol no tamanho padrão.

A empresa encontrou quantidade considerável de ferro para fins comerciais e agora avança para obter na Agência Nacional de Mineração autorização para explorar a região em caráter excepcional, antes da licença definitiva, bem como retirar dali o minério com a ajuda de caminhões. 

A autorização inicial da ANM permite que a empresa extraia cerca de 300 mil toneladas de ferro ao ano. O  quadro de sócios da Novo Rumo, porém, inclui o empresário Daniel Rezende e a Three Stone Mineração, que também possuem permissão para explorar o mineral na região. Ou seja: um mesmo grupo econômico poderá extrair mais de 1,2 milhão de toneladas de ferro em apenas doze meses. 

Mesmo antes da licença definitiva, a atuação mineradora começa a dar mostras do impacto que a atividade pode trazer à região. 

Segundo relatos feitos sob reserva à reportagem, a empresa teria driblado as permissões do alvará para a pesquisa inicial e feito intervenções significativas na região sem a autorização do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), responsável pelo licenciamento de empreendimentos e atividades de impacto ambiental na Bahia. 

Por meio de uma consulta ao Sistema Estadual de Informações Ambientais e Recursos Hídricos (SEIA), a reportagem não encontrou registros de autorização ou licenciamento ambiental em nome da mineradora ou dos seus sócios.

As irregularidades denunciadas pela comunidade levaram o Inema a interditar provisoriamente uma das quatros áreas de pesquisa mineral sob responsabilidade da Novo Rumo, no dia 20 de abril. 

A maior preocupação dos moradores é com o abastecimento de água, já que a região conta com pontos de nascentes. Há risco ainda de destruição da biodiversidade.

O que dizem especialistas

Para Ricardo Fraga Pereira, professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia, a mineração em locais como a Serra da Chapadinha, composta por brejos de altitude e corpos d’água importantes para o estado, deve ser repensada. 

“Será que um local como este, com toda sua relevância hídrica e ambiental, deve ser mesmo palco de um projeto de mineração de ferro, que tem um baixo valor agregado?”, questiona. “É nisso que as autoridades devem ter atenção neste momento.”

O pesquisador, contudo, também critica outros empreendimentos a colocar em risco a biodiversidade no País, como o agronegócio. “A mineração, quando bem feita, é muito menos danosa que a agricultura e a pecuária. Nada se compara ao dano instalado que temos da agricultura e pecuária no Brasil”, frisa, destacando o atual cenário crítico de conservação do Rio Paraguaçu oriundo do desmatamento e da pressão expansiva da agropecuária. “Será que este é mesmo o local de instalação de um projeto de mineração, principalmente com esta situação crítica do Paraguaçu?”. 

Compartilha da mesma opinião Henrique Carballal, presidente da CBPM, que ressalta a importância do respeito à legislação ambiental. “É preciso que essa produção ocorra com cuidado e atenção às comunidades e ao meio ambiente, dada sua grande importância para o desenvolvimento socioeconômico”, acrescenta.

Ameaça às comunidades tradicionais

A exploração do ferro pode ser feita de duas formas: através de escavadeiras, que raspam o solo até encontrar o mineral, ou com a utilização de explosivos. Os rejeitos representam alto risco à biodiversidade e à saúde da população, que podem contaminar os rios e impactar o ar das comunidades localizadas ao redor da área de extração. 

O drama das comunidades localizadas no entorno da Serra da Chapadinha está longe de ser um caso isolado. Um levantamento feito pela MAM e divulgado pelo portal Brasil de Fato mostra que cerca de 240 municípios baianos tiveram suas rotinas alteradas com a chegada de projetos para mineração nos últimos cinco anos. Os números foram obtidos através da Companhia Baiana de Pesquisa Mineral. 

A comunidade quilombola da Bocaina, em Piatã (distante cerca de 133 quilômetros de Itaetê), é um desses exemplos. Desde que o empreendimento da mineradora britânica Brazil Iron foi instalado, em 2014, o som das dinamites utilizadas para extrair o minério de ferro na região mais alta da Chapada Diamantina passou a embalar o dia a dia da comunidade. 

O alto impacto das explosões, que chegaram a provocar rachaduras nas casinhas de barro dos moradores, levou o Inema a interditar as atividades da mineradora. No documento de interdição, o órgão cita ao menos quinze infrações, entre elas a falta de apoio financeiro para mitigar os danos causados à comunidade. 

“As bombas do minério estrondavam [sic] a casa todinha. Tinha hora que até as coisas da casa a gente via sacudindo. Eu estou com medo dela [a casa] cair. Eu tenho imaginação de estar dormindo e uma hora a casa despencar de vez”, relembra a curandeira Leonísia Maria Ribeiro, de 77 anos.

À reportagem, a Brazil Iron disse que permanece com as atividades paralisadas e trabalha para regularizar sua situação junto ao Inema. 

Desde a chegada da Brazil Iron em Piatã, em 2014, moradores protestam contra a intervenção da empresa no território – MAM Bahia/Reprodução

A implantação desses empreendimentos, destaca Rafael Augusto Nunes, diretor do Movimento pela Soberania Nacional Popular na Mineração na Bahia, nem sempre leva em consideração a opinião dos moradores. “Os projetos vêm de cima para baixo, prontos, e não leva em consideração os direitos das comunidades”, pontua. “Essa relação colonial – de espoliação, saque dos recursos naturais – se mantém estrutural mesmo nos dias atuais”. 

No entorno da Serra da Chapadinha, ao menos nove assentamentos e três comunidades quilombolas convivem com as tradições herdadas do Jarê, a religião típica das Lavras Diamantinas, e sobrevivem exclusivamente da agricultura familiar e do turismo de base comunitária. 

“Com estes empreendimentos sendo implantados na Chapada, teremos êxodo rural, concentração de terra e água nas mãos de quem tem o poder do capital”, pontua Rogério Mucugê, geógrafo e ex-consultor do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio). “Poderemos ter uma Chapada vazia de gente que se sustenta, com pobreza disseminada, com seca e com problemas hídricos graves”. 

As denúncias dos moradores da Serra da Chapadinha nas redes sociais levaram o deputado estadual Hilton Coelho (PSOL) a propor a criação de uma unidade de conservação no local – este mecanismo permite, entre outras coisas, que os espaços recebam atenção especial do Poder Público na preservação da biodiversidade existente no território. Estariam proibidas, por exemplo, atividades de mineração tanto na área da serra como na zona de amortecimento.

No documento, o parlamentar destaca o potencial de “recarga hídrica” da serra e afirma que a criação da UC pode garantir o abastecimento de mais de 80 municípios da Bahia. O texto foi aprovado sem ressalvas pela Assembleia Legislativa da Bahia e aguarda sanção do governador Jerônimo Rodrigues (PT). 

A criação da UC também possui o aval do Ministério de Meio Ambiente. A reportagem teve acesso a um despacho assinado por Alexandre Tofeti, Coordenador de Revitalização de Bacia Hidrográfica, Acesso à Água e Uso Múltiplo dos Recursos Hídricos, no qual a pasta defende a adoção da medida. 

“As unidades de conservação são uma importante ferramenta para a conservação da biodiversidade, mas também para a preservação de mananciais de água superficial e subterrânea”, diz trecho do documento, subscrito ainda por Iara Bueno Giacomini, outra integrante da diretoria. 

Procurado por CartaCapital, o governador da Bahia não se manifestou.

Outro lado

Por diversas vezes, a reportagem tentou contato com o Inema, sem sucesso. 

Procurados por CartaCapital, a Three Stone Mineração e o empresário Daniel Rezende não responderam. Por telefone, a Mineração Novo Rumo Ltda. disse que não realizou nenhum tipo de atividade nem intervenção no local. 

Por e-mail, a reportagem voltou a questionar quais procedimentos estariam sendo adotados pela empresa com o objetivo de reduzir eventuais danos ambientais na região, mas não obteve retorno até o momento.

A Secretaria de Meio Ambiente da Bahia ainda não havia se manifestado até o fechamento desta reportagem. Também procuramos o prefeito de Itaetê, Zenildo Matos (União Brasil), e o secretário de Meio Ambiente do município, Cristovem Marcos Vieira, que não responderam aos contatos da reportagem.

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