Política

Comunidades tradicionais de Boipeba tentam barrar a chegada de resort de alto padrão

Especialistas apontam ilegalidades em licença concedida por órgão ambiental baiano. O governo federal suspendeu a obra pelo prazo de 90 dias

Comunidades retornam de um dia de trabalho em Castelhanos. Créditos: Divulgação
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Há pouco mais de um mês, Raimundo Esmeraldino Silva, conhecido como Raimundo Siri, passou a conviver com o medo ao entrar e sair do mar para cumprir a sua rotina de pesca. O sentimento, porém, nada tem a ver com o desbravar das águas de rio e mar que banham a ilha de Boipeba, no baixo sul da Bahia, e que se tornou rotina desde muito cedo ao pescador de 60 anos.

A insegurança do morador do povoado São Sebastião (antigo Cova da Onça), compartilhada por outros membros da comunidade, é justamente pelas incertezas sobre a continuidade de seu modo de vida, dada a possibilidade da chegada de um mega empreendimento turístico imobiliário na região.

O pescador Raimundo Siri. Créditos: arquivo pessoal

O processo de licenciamento não é novo, tramita há cerca de 11 anos, mas avançou no dia 7 de março, quando o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), emitiu uma portaria e concedeu à empresa Mangaba Cultivo de Coco uma licença para instalar o resort Ponta dos Castelhanos, na Fazenda Ponta dos Castelhanos, no município de Cairu. No Brasil, os licenciamentos ambientais carecem de três licenças, a prévia, a de instalação e a de operação.

O empreendimento ocupará uma área de 1.650 hectares, o que equivale a 20% do território da ilha de Boipeba. A área abrigará um grande conglomerado de casas de alto padrão, pousadas, aeródromo e píer com capacidade para 150 embarcações, entre outras instalações.

Além da licença de instalação válida por cinco anos, o Inema concedeu, via portaria 28.063/2023, autorização para que a empresa dona do empreendimento faça supressão de mata nativa em uma área de 2,92 hectares, e autorização para manejo de fauna nas áreas de influência do empreendimento. A portaria foi assinada pela diretora-geral do Inema, Márcia Cristina Telles de Araújo Lima.

Desde então, se criou uma grande mobilização social para barrar a chegada do projeto. Moradores, pesquisadores, ativistas, associações e entidades criaram o movimento #SalveBoipeba que já conta com mais de 26 mil seguidores nas redes sociais.

“Eu vivo da pesca, da mariscagem, atividades que se dão em área de remanso, agora imagine a chegada de 150 embarcações, o impacto é direto”, alerta o pescador Raimundo Siri. “Eu também boto roças de pequenas raízes como mandioca, abóbora, maxixe, quiabo, e já estamos sendo proibidos de plantar, isso quando não arrancam as nossas plantações.”

Estamos falando de um empreendimento de venda de lotes para pessoas que têm muito dinheiro e que, certamente, não vão nos querer pelo local. Temos muito medo de perder nossas atividades, nosso acesso ao lugar onde a gente nasceu e se criou, nossa liberdade. É um sentimento de impotência, de traição por parte do poder público. É um movimento rasteiro de expulsão dos moradores, uma lógica desenvolvimentista que nos exclui”.

Entenda os desdobramentos jurídicos

No campo jurídico/político, o que se vê é uma intensa queda de braços. A reportagem de CartaCapital elencou os últimos desdobramentos acerca do licenciamento do empreendimento:

  • Na quinta-feira, 6 de abril, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), órgão vinculado ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, do governo federal, suspendeu a obra do megaempreendimento pelo prazo de 90 dias.
  • No documento da suspensão, o governo federal estabeleceu o prazo para que seja apurado se a obra obedece à legislação patrimonial, já que se trata de uma área federal reservada à comunidade tradicional Cova da Onça.
  • O despacho atende a uma solicitação do Ministério Público Federal que, no dia 14 de março, pediu a revogação da portaria do Inema que concede a autorização de instalação do empreendimento.

O documento do MPF foi encaminhado ao governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), e ao secretário estadual de Meio Ambiente (Sema), Eduardo Sodré Martins. Nos ofícios, o MPF pediu que os gestores determinem ao Inema que não autorize, nem licencie, qualquer empreendimento em áreas públicas federais, principalmente nas que envolvem comunidades tradicionais protegidas constitucionalmente, e citas as áreas das comunidades Cova da Onça, Monte Alegre, Moreré, Boipeba, Garapuá e Batateira, todas em Cairu.

O órgão apontou ainda que o projeto viola as diretrizes e recomendações do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental Tinharé-Boipeba e atinge diretamente ecossistemas costeiros de extrema vulnerabilidade, como manguezais e faixas de praia.

Acrescentou também que o empreendimento prevê consumo de água desproporcional na ilha, remoção de vegetação de Mata Atlântica, pavimentação do solo, cercamento de terras e caminhos tradicionais, destruição de roças e a desconfiguração do modo de vida tradicional de centenas de famílias de pescadores, catadores e catadoras de mangaba e marisqueiras das comunidades de Cova da Onça, Moreré e Monte Alegre.

Por fim, os procuradores da República Ramiro Rockenbach e Paulo Marques concluem que a concessão da licença representa “ilegalidade de caráter fundiário”, já que as terras onde se pretende implantar o megaempreendimento são públicas, da União, e, por lei, devem ser prioritariamente destinadas aos usos ambientais e tradicionais das comunidades.

Em 2019, o MPF já tinha se manifestado com uma recomendação para que o processo de licenciamento do empreendimento imobiliário Ponta dos Castelhanos fosse interrompido.

Em sua última manifestação sobre o caso, em 11 de março, o Inema defendeu o processo licitatório do empreendimento. Sustentou, em nota, que “o projeto foi licenciado com a mais perfeita lisura e transparência dos atos adotados pelo Instituto, de acordo com a lei, seguindo o código florestal, atendendo a Lei da Mata Atlântica, os marcos legais e as resoluções federais e estaduais”.

Acrescentou ainda que o projeto “pode ser considerado como um marco positivo na atividade turística da região, contribuindo para a preservação, através da ocupação controlada e ordenada, de baixíssima densidade, dentro dos conceitos mais avançados de construção sustentável, gerando, inclusive, ganhos e infraestrutura para a comunidade nativa”.

Em posicionamento sobre o caso, o prefeito de Cairu, Hildécio Meireles (União), também saiu em defesa do licenciamento concedido pelo Inema. “Meio ambiente limpo é o nosso meio de vida, somos um espaço turístico. E o Inema também é um órgão muito sério”, destacou o gestor municipal.

Entre parlamentares, o projeto segue dividindo opiniões. Na Assembleia Legislativa da Bahia, os deputados Pablo Roberto (PSDB) e Hilton Coelho (PSOL) apresentaram projetos para sustar a portaria do Inema. Coelho inclusive busca arrecadar assinaturas para instaurar uma CPI que apure as licenças concedidas pelo órgão ambiental a empreendimentos pelo estado. Já o deputado Rosemberg Pinto (PT), líder do governo na Assembleia, defende a instalação do empreendimento e sustenta que todas as exigências para que o resort seja construído foram cumpridas e, por isso, a licença foi concedida.

Pesquisador alertas para ‘ilegalidades’ no licenciamento

O processo vem sendo acompanhado de perto, e com preocupação, pelo pesquisador Eduardo Barcelos, professor do Instituto Federal Baiano e membro do Observatório Socioterritorial do Baixo Sul da Bahia. Em conversa com a reportagem, o pesquisador reforçou as ilegalidades contidas no licenciamento.

“O primeiro ponto a se destacar é a situação fundiária da Ilha Tinharé Boipeba. A Advocacia Geral da União e o Ministério Público Federal reforçam em seus pareceres técnicos que as ilhas de Boipeba e Tinharé são terras públicas da União. Então, de início, a União teria de ser consultada sobre o interesse em legitimar e autorizar um empreendimento desse porte. Os pareceres da AGU e MPF também evidenciam que, desde 2014, não houve essa consulta, a cessão de uso para que o empreendimento fosse autorizado”. A regulação é feita via Secretaria de Patrimônio da União (SPU) que, recentemente, resolveu suspender o empreendimento.

O pesquisador também relembra que a Constituição Federal assegura que a destinação de terras públicas deve ser compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária, motivo pelo qual questiona o tipo de transação feita com a empresa Mangaba Cultivo de Coco, que tem entre seus sócios o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga Neto, e José Roberto Marinho, que controla a Fundação Roberto Marinho, do Grupo Globo.

“A Fazenda Ponta dos Castelhanos foi adquirida por uma trama imobiliária em 2008, que envolve Armínio Fraga, o grupo Globo, e demais rentistas. Agora, de onde vem a autorização de titular a área em nome de particulares? Quem é que legalizou, legitimou o título de propriedade dessas terras em nome da Mangaba Cultivo de Coco?”, questiona.

O especialista ainda alerta para a dimensão das perdas ambientais e menciona uma aferição feita pelo Ministério Público da Bahia que destoa da apresentada pelo Inema. “O Inema tem dito que é uma supressão de 2,9 hectares. Já o MP da Bahia aponta 37 hectares, 12 vezes mais do que o estimado”, observa. “Estamos falando da alteração das paisagens ambientais da ilha, desmatamento de Mata Atlântica, supressão de vegetação, de manguezais, de mussununga, uma pastagem nativa que tem na ilha, extremamente rara, que ocorre junto aos campos de mangaba”.

Para Barcelos, ainda que a comunidade de Cova da Onça, estimada em cerca de mil pessoas, seja a mais afetada, todas as demais (Velha Boipeba, Moreré e Monte Alegre) sentirão impactos sociais.

“São comunidades tradicionais que vivem da pesca, da mariscagem, dos mangues, dos campos de mangaba. Há uma coleta tradicional na safra da mangaba pelas mulheres de Cova de Onça que gera uma renda anual significativa a elas. Veja, esses povoados usam as matas, os rios, as pequenas nascentes e córregos a partir de um uso comunitário, não há uma lógica de cercamento, de propriedade privada no uso tradicional comunitário. Além disso, esses povos também se comunicam a partir de caminhos tradicionais que, com a chegada do empreendimento, serão bloqueados, dado o forte esquema de segurança. Então também há uma perda de circulação, do intercâmbio entre os povoados”.

O pesquisador entende que, ainda que não haja uma desapropriação compulsória, o empreendimento levará a uma expulsão indireta dos moradores da ilha que terão que procurar por atividades nas periferias de outras cidades, o que impacta diretamente na piora da qualidade de vida e no empobrecimento dessas populações.

“O que vemos é que esse licenciamento tem promovido um atropelo aos direitos fundamentais dessas comunidades”, analisa, ao cobrar apoio do governo federal para a suspensão da obra e criticar o posicionamento político dos últimos governos da Bahia.

“Essas autorizações ambientais sem transparência acontecem desde o governo de Jacques Wagner (PT), passando por Rui Costa (PT) e agora Jerônimo Rodrigues (PT), com o aval da secretaria do meio ambiente e da diretoria do Inema. O que a gente vê é que o estado da Bahia está na contramão das sinalizações que o governo Lula (PT), e a ministra Marina Silva, têm feito do ponto de vista da agenda socioambiental, um esforço de reconstruir a política, os órgãos de fiscalização, a imagem do País frente à diplomacia internacional, depois de tudo que foi destruído durante as gestões Temer (MDB) e Bolsonaro (PL)”, aponta.

“Aqui, o caminho é oposto, de flexibilização das normas, do licenciamento, de celeridade com as autorizações a empreendimentos de alto impacto sócio ambiental. Não seria exagero dizer sobre um alinhamento às políticas bolsonaristas”, criticou. 

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