Cultura

Jarê, o ‘candomblé de caboclos’ típico da Chapada Diamantina

Trazido à região por africanos nagô, a religião mistura kardecismo e influências africanas e indígenas

Dona Idalina Sales Barbosa, pioneira do jarê em Andaraí (Reprodução/jare.internetlivre.org)
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O espetáculo do jarê é encenado em uma cidade com pouco mais de 13 mil habitantes, a menos de quinhentos quilômetros de Salvador: Andaraí. Simboliza não apenas uma soma orgânica de diferentes culturas existente apenas nas Lavras Diamantinas, mas uma trincheira de resistência.

Considerado uma espécie de “candomblé de caboclos”, o que o diferencia das cerimônias realizadas na capital é a forma musical com batidas diferentes e a construção autônoma dos atabaques imitando a produção dos índios — em Andaraí, o instrumento é conhecido como couro*. 

O município de Andaraí é dividido entre a “metade de pedra” e a “metade de areia”, inspirado pela exploração diamantífera na região. O centro histórico fica na “parte de pedra”, a que tem incrustada em suas ruas parte da história da exploração do diamante na cidade. A “porção de areia”, mais recente, corresponde a antigas propriedades rurais e a algumas faixas de terras cedidas pela paróquia local há cerca de cinquenta anos.

Na primeira, entre casebres antigos amontoados, está a Casa de Ogum, uma espécie de catedral desta religião. Ao chegar perto do terreiro, consigo ler, em caixa alta, uma saudação ao Divino Espírito Santo, e aos três irmãos: São Cosme, São Damião e São Roque, que, segundo sugere a plaqueta fixada na parede, sustentam o templo. 

A mulher para quem aflui o dever de manter esse peji* em pé é Idalina Sales Barbosa. Entrevistei Idalina em fevereiro de 2020, antes da pandemia. A ideia inicial era fazer um documentário que contaria a história do jarê no município. Porém, logo a pandemia de covid-19 se instalou e por isso, optamos por interromper as entrevistas. 

“Deus vos salve Casa Santa / aonde Deus fez a morada / Onde mora o Cálix Bento / e a hóstia consagrada, e a hóstia consagrada / Pelo Cálix bendito que Jesus já levantou / que Jesus já levantou”

Foi através desses versinhos cantados com a voz intermitente, expressando exaustão, que Dona Idalina nos recebeu. Segundo ela, essa é a sua “cantiga de frente”. Muito conhecida pelo povo de santo, a cantiga ao toque do couro fica ainda mais emocionante. 

Negra retinta de 85 anos, dona Idalina começou a arar esse terreno ainda muito jovem. “Não entrei no jarê por boniteza ou vaidade. Cumpri as ordens de Deus e de Ogum de Lei. Não vi a hora que entrei, quando me dei fé já estava dentro. Atendi ao chamado para fazer as rodas de samba”, afirma a mãe-de-santo. Ogum de Lei é o ancestral da matriz iorubá associado à guerra e ao fogo e aplicador da lei de Xangô, orixá da justiça.

Sua jornada no jarê dura mais de 75 anos. Iniciada ainda criança, ela iniciou um movimento de povoamento religioso em outros municípios, devido a sua numerosa prole de filhos de santo. E disso ela se orgulha. “Tenho filho de santo em São Paulo, em Salvador, em Feira de Santana. Nesses lugarzinhos todos eu tenho filho de santo”, orgulha-se. Não foi apenas pelo jarê que Idalina elaborou humanidades; em suas mãos, mais de uma centena de recém-nascidos viram brotar a luz pela primeira vez, já que a curandeira também acumulou por um bom tempo o ofício de parteira.

Altar dos santos da Casa de Ogum.
(Reprodução/jare.redelivre.org.br)

Filho da Chapada Diamantina, o jarê foi liderado pelas nagôs, etnia à qual pertenciam senhoras africanas escravizadas e alforriadas trazidas para a região. Foi através de uma síntese particular que aglutinou o espiritismo kardecista e as influências africanas e indígenas, representadas pelos índios Cariris e Maracás com suas performances xamânicas, que o jarê conseguiu se perpetuar até os dias de hoje, pioneiramente por esforços orais. Embora se presuma a existência de casas do culto ainda no final do século XIX e no início do século XX, a mais antiga de que se ouviu falar foi a de Zé da Bastiana, fundada numa área densa de mata por volta de 1970, terreiro posteriormente conhecido como Chalé.

Na visão do antropólogo fluminense Gabriel Banaggia, autor de As forças do jarê: religião de matriz africana da Chapada Diamantina, os jarês, antes de tudo, são festas. Seja como forma de cumprir as obrigações com caboclos e de celebrar as datas em que são homenageados, seja como uma ocasião para o encontro e o divertimento do povo de santo e de visitantes habituais. Os “sambas”, nome que recebem as festas na cidade, são cerimônias quase sempre públicas. 

As cerimônias em louvor aos santos são feitas anualmente, sendo apenas duas na Casa de Ogum. A primeira feita em comemoração a São Cosme e São Damião acontece no dia 07 de setembro; em 04 de dezembro quem é homenageada é Santa Bárbara, associada a Iansã. 

Ao som peculiar dos couros e das cantigas ecoantes, os caboclos chegam ao terreiro, manifestando-se nos corpos dos filhos e filhas de santo da casa e, não raro, na audiência ali presente. A palavra ‘caboclo’ designa todas as entidades do jarê. Essas forças espirituais acompanham a pessoa desde o nascimento e a presença delas se revela ao longo da vida.

As cerimônias

“A mata está fechada. 

Eu já mandei abrir. 

Quem tem sangue de caboclo, tá na hora de cair”

Às vésperas das celebrações, a comunidade fica em polvorosa. Não apenas quem ”pega caboclo”, mas também os espectadores. Nos rituais de jarê, como sugere o verso acima, é comum que, de súbito, a audiência ali presente “rode no santo”.

No dia da festa, as pessoas que residem no entorno das casas despertam com foguetórios, disparados logo às seis horas da manhã. Muitas destas festas podem durar mais de 24h — ocorrem em terreiros mais afastados do centro urbano, longe da “lei do silêncio”. Durante todo o dia, caboclos chegam, vadiam no salão e “sobem”, enquanto olhos admirados fitam os indivíduos que rodam no santo*.

Pergunto a dona Idalina o porquê dos “sambas” serem tão frequentados. Sua resposta não poderia ser mais profunda: “O samba abate o que é ruim. O samba dá paz, dá coragem, é alimento para nossa espiritualidade. Dá sustância”, diz ela. Há uma profunda crença no suprimento emanado pelos minutos em que aquela entidade, com suas danças, dispara seu ilá*, abençoa os fiéis e distribui sementes de esperança para seguir resistindo.

Quando o samba cessa, todos presumem que a “mesa” será posta. Uma toalha é estendida no chão. Ao redor dela, sete, quatorze ou até vinte e uma crianças são posicionadas com as pernas cruzadas e descalças, tudo dependerá da promessa* do anfitrião. No centro, monta-se um altar de improviso com flores, velas, imagens de São Cosme e Damião, Iemanjá e Santa Bárbara, além dos comes e bebes que serão oferecidos a “Dois-dois”, outra nomenclatura para se designar os santos Cosme e Damião. 

O mais conhecido deles é o “cariru”. O cariru é como se chama em Andaraí o caruru, principal quitute oferecido a São Cosme e Damião, preparado de quiabo, camarão seco, óleo de dendê e outras especiarias.

“Cosme e Damião, cadê Doum? 

Cosme e Damião, cadê seus orixás? 

Cosme e Damião viajou por água. 

Ao som dessa trombeta todos dois marchavam”

Ao som desta melodia, acompanhada pela pancada dos couros e com o barulho dos fogos de artifício pairando sob o céu, iniciam-se os trabalhos a que se propõem inúmeras casas de jarê: oferecer o cariru aos santos-gêmeos. A partir disso, a plateia parece pactuar uma voz uníssona que louva estridentemente os patronos da festa,enquanto as crianças degustam o banquete servido a elas, deferência aos santos que se materializam na ternura pueril. Enquanto escrevo, consigo resgatar as memórias da minha infância nos quais fiz parte dessa ode à espiritualidade.

Eu, leigo dentre os afetos e desafetos da vida, pulava de alegria quando convidado para ir àquela festa, sacramentada no calendário litúrgico do jarê como a principal. Entre os convites que recebi, o que nunca me sairá da memória era o da ialodê* I’Olina, que agora se encontra no Orun*. No dia em questão, era acordado com os fogos pipocando no céu, e logo pressupunha que o culto já havia se iniciado. Uma mensagem deveras importante! Como morávamos a menos de cinco metros de distância, e acrescida a relação de comadre mantida entre minha bisavó e ela, seus chamados para comer o cariru oferecido sempre no segundo sábado de setembro eram previsíveis. Comia, apesar do receio de ficar com dor de barriga depois, lambuzando-me. Desenvolvi uma infame alergia.

Logo depois das crianças terem comido, uma fila extensa se forma à espera da degustação do quitute. A roda de samba se estende noite adentro, e convoca os orixás a virem ao terreiro. Mesmo reis e rainhas em Aruanda* chegam descalços. Sambar é uma maneira de viver junto com os caboclos, pois que tangíveis e palpáveis em sua grandeza são uma extensão do ser, partículas de um todo, componentes da imensidão de águas que brotam das pedras do Rio Paraguaçú.

Na entrada da Casa de Ogum, a plaqueta diz: “Respeite a Casa do Divino Espirito e dos 3 irmãos São Cosme, São Damião e São Roque” (Reprodução/jare.redelivre.org.br)

O jarê e a cura

Os templos de jarê encarna justamente a teia de solidariedade que dá base à religião. Os rituais de cura, por exemplo, dizem muito sobre amparo. Dona Idalina lembra que houve ocasiões nas quais sujeitos chegavam amarrados à corda, desajuizados, amparados por mais de cinco homens que já pareciam não conseguir detê-los tamanha a brutalidade. Sua resposta firme era apenas: solte-o.  

Na cosmologia do jarê, a cura é um estado de constante negociação com o meio-ambiente. Há as revistas, consultas particulares nas quais o curador desvenda a natureza e as causas do problema do paciente e prescreve o tratamento necessário, tudo isso com o auxílio de seus guias. Os trabalhos, por sua vez, correspondem ao ritual de cura, onde as recomendações prescritas nas revistas são materializadas. Em muitas ocasiões, o público pode acompanhar. Realizados à noite, esses rituais podem, eventualmente, durar até o sol raiar.

Dona Idalina adverte: “o que é de doutor pai-de-santo não dá jeito; e o que é de raizeiro* doutor não dá jeito”. O diálogo curador-paciente identifica se o imbróglio é ou não da sua alçada e, posteriormente, busca uma solução.

Sentado em frente ao altar carregado de imagens de santos católicos, figuras de preto-velhos e nagôs, sereias e índios, velas, frascos de talco e perfume, flores e outros adornos, o curador lança, em um círculo formado por uma corrente de contas, oito a dezesseis búzios. O pai-de-santo, entretanto, não consegue sozinho adivinhar o que causou o desequilíbrio — cabe ao caboclo apontar a natureza e a causa da aflição. O lançar das conchas, em forma de narrativa, desenvolve uma explicação sobre a situação do indivíduo. O cliente é convidado a falar por meio de perguntas rápidas introduzidas na narração. Habilmente, o curandeiro formula suas considerações e logo recomenda um tratamento: banhos de ervas, uso de dietas, restrições comportamentais, remédios de farmácia. O mais recorrente é o trabalho, ritual de cura destinado a “limpar” ou “fechar” o corpo.

Dona Idalina é tida por “quem faz brotar a vida’”, pois carrega os valores ancestrais e culturais torneados de riqueza africana e indígena. Em decorrência da velhice, já não realiza mais esse tipo de trabalho. Aos 85 anos de idade, a ialorixá se equilibra num bastão que a equilibra sob o fio da velhice e o precipício da definitiva surdez, embora movida pela potência das suas vivências. Mesmo diante de tantas adversidades, a ialorixá parece cada vez mais resiliente em face das perdas populacionais, culturais e linguísticas. Essa, inclusive, é uma das características mais notáveis em todos os adeptos da religião: não se resignar perante a essa situação, mas a demonstração de vitalidade ao levar adiante o jarê.

Cantigas decoloniais

Como integrante de um povo que difundiu seu éthos primordialmente pela oralidade, a ialorixá representa centenas de mulheres e homens cujos saberes foram marginalizados. O apagamento de nossas sabedorias ainda é parte intrínseca da relação saber-poder com a qual a sociedade brasileira foi construída, de modo que ofereço este escrito como uma oferenda analítica para se (re)pensar maneiras de consolidar o nosso projeto cultural-religioso. 

O jarê consegue restituir humanidades ceifadas pelo colonialismo moderno. Ele consolida essa característica no afeto, na singeleza do culto – muitas vezes feito em salas não tão grandes e que conseguem comportar todos os presentes –, nas demonstrações de respeito, comunhão e devoção. 

Xangô, o mais justo saúda o amor. Quem guerreia e vence as batalhas, Ogum, precisa saudar o amor. Quando Oxóssi sai à caça, ele também saúda o amor. Há quem sobreviva sem amor? Então, o jarê também é amor, e acima de tudo: amor aos ancestrais. Por isso que ao desenrolar esse fio de ancestralidade, o nosso Orí* se fortalece na crença de que

seremos felizes no e com o amor. A observância dessas características genuínas só é possível quando derrubamos a cortina que as escondem, e então os Brasis que se entrechocam a um só tempo são expostos à revelia das narrativas únicas.

Dona Idalina, na Casa de Ogum; Irene Rodrigues, na Casa de Ogum de Ronda; Carmosina, à frente do Terreiro de São de Jorge; Seu Wilson, lá no Terreiro de São Roque; Pai Cobra, na Casa Saravá; Pai Raimundo, no comando do Centro Estrela Dalva; Dona Nenzinha, à frente da Casa

de Festejos Cosme e Damião; Haidê, que leva adiante o Terreiro de Xangô; e Ziu, do Terreiro de Cosme e Damião, todos esses e mais os adeptos desta religião, posicionados ao longo de toda a extensão territorial do município, são bem-aventurados porque, ao bater os couros, temperam esperança em meio a esta realidade indigesta.

Glossário:
Peji: altar das divindades cultuadas onde repousam imagens de santos católicos, figuras de nagôs, sereias, índios, velas, frascos de talco, perfume, incenso, arranjos de flores e outros adornos. Em Andaraí, mais especificamente, diz-se do terreiro em geral e não somente para designar o altar.
Couro: instrumento musical construído de forma autônoma, análoga à maneira que os índios produziam o artefato, utilizado para dar ritmo às cantigas entoadas durante as cerimônias religiosas no jarê.
Orí: significa cabeça em Iorubá, é um território ancestral de comunicação. Base e suporte para o cabelo, raiz que resgata e simbolicamente representa a cultura africana através da imagem. Possivelmente um dos maiores símbolos visuais da nossa origem. Quando exaltado com orgulho, é canal direto com a ancestralidade.
Rodar no santo: possessão, modo pelo qual os orixás se fazem presentes no momento.
Ilá: sinal de que o orixá está na terra, e de que aquela pessoa que manifestou o orixá não está ali, mas sim a divindade digna de louvor.
Promessa: muitas pessoas, em Andaraí, iniciaram seus trabalhos no jarê através de uma promessa, onde pediam a Cosme e Damião alguma graça e, em troca, ofereciam carirus todos os anos. É desse tipo de realização que surgiram muitas casas que oferecem o quitute aos santos-gêmeos no mês dedicado a eles, setembro.
Ialodê: Alcunha de maior influência feminina dentro de uma comunidade iorubá. Em Ibadã, na Nigéria, é um título administrativo utilizado exclusivamente por mulheres que detém a posição de representar as mulheres em seus assuntos.
Orun: palavra da língua iorubá que define, na mitologia iorubá, o céu ou o mundo espiritual, paralelo ao Aiye, mundo físico.
Aruanda: plano espiritual onde moram as entidades superiores.
Raizeiro: quem usa as folhas, raízes e remédios naturais para tratar problemas.

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