Sociedade

Esquerda age pouco na periferia durante pandemia, diz Ferréz: “Discurso não enche armário”

Em entrevista a CartaCapital, escritor de São Paulo relata ‘tragédia anunciada’ nas quebradas durante crise do coronavírus

Ferréz escreve sobre a realidade da periferia em forma de poemas e romances. Foto: Reprodução/TV Cultura
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Ferréz está “totalmente frustrado” com a falta de atuação da esquerda na periferia durante a crise do novo coronavírus. Morador do bairro de Capão Redondo, zona sul da cidade de São Paulo, o escritor de 44 anos relata um cenário de abandono, falta de dinheiro e desinformação nas quebradas, onde muitos descumprem as recomendações de isolamento.

O tom é de tristeza. Por um lado, os progressistas se concentram em criticar o governo do presidente Jair Bolsonaro, mas se esquecem de atuar nas bases, com iniciativas que amenizem os efeitos devastadores da pandemia aos mais pobres. Enquanto isso, o discurso “despreparado e mal-intencionado” do chefe do Palácio do Planalto ecoa e leva cada vez mais gente de volta às ruas. “Chega muita contra-informação pelo WhatsApp”, diz Ferréz.

A periferia não é a classe média-alta, ele frisa. Os mais abastados estão acostumados a serem servidos, telefonam para o delivery e recebem almoço, estocam comida e trabalham de casa, com seus computadores. Além disso, muitos não dispensaram seus empregados domésticos e seguem contando com serviços de limpeza.

Já na periferia, os trabalhadores que não foram demitidos se expõem em ônibus para preservar seus empregos. Os informais muitas vezes ficam sem renda se não continuarem as atividades. O panorama se agrava com a demora no pagamento do benefício de 600 reais prometido pelo governo.

No início de abril, uma pesquisa realizada pela DataFavela e pelo Instituto Locomotiva mostrou que 56% dos moradores de favelas em todo o Brasil só conseguiriam se manter por uma semana durante a crise.

“Às vezes, moram oito pessoas dentro de um barraco de quatro por cinco metros quadrados. E aí, como faz para todas essas pessoas ficarem ali o tempo todo?”, questiona o escritor.

Para Ferréz, é uma tragédia anunciada. Em seu canal, posta vídeos sobre a situação das favelas com frequência. Num deles, passam pedestres, automóveis e motocicletas. As portas das residências estão cerradas, mas nem todos os comerciantes fecharam seus estabelecimentos.

O artista também dedica esforços na organização não-governamental “Interferência”, que preside desde 2009. A iniciativa nasceu para oferecer atividades educativas e artísticas para crianças de 6 a 16 anos, mas durante a crise está voltada para a distribuição de cestas básicas a cerca de 100 famílias. Em uma das fotos no seu Instagram, ele aparece ao lado do ex-candidato à presidência da República, Guilherme Boulos (PSOL), entre caixas de papelão com mantimentos.

Famoso desde 1997, quando lançou seu primeiro livro, Fortaleza da Desilusão, Ferréz foi reconhecido por narrar o cotidiano das quebradas com poesia e romances. Mais tarde, em 2000, ganhou projeção com Capão Pecado, prosa que se tornou um clássico da literatura marginal.

Em sua escrita, as contradições da desigualdade sempre lhe pareceram evidentes. Mas, na sua visão, a arte tem o papel de orientar e, principalmente, engajar. “Discurso não enche armário”, diz o literato.

Confira, a seguir, a entrevista de Ferréz a CartaCapital.

CartaCapital: Como está sua rotina?

Ferréz: Eu estou prevenido, né? Como sou escritor, fico mais em casa. As incursões que eu ia dentro da quebrada fazer o meu trabalho, eu diminuí. Praticamente parei. Estou tentando me proteger na medida do possível. Saí para ir na ONG, a gente tem uma associação aqui que a gente faz parte. Vou nela para distribuição de cesta básica, para poder manter as coisas básicas para as famílias. Fora isso, eu tenho ficado em casa.

CC: Você mostrou em alguns vídeos que muitas pessoas não estão conseguindo adotar o isolamento. Como está o comportamento das pessoas no seu bairro?

F: Na verdade, é uma coisa mais profunda. Eu tento abordar sempre isso. O meio de comunicação que as pessoas pensam que a periferia vê, às vezes a periferia não vê. Hoje em dia, o meio de comunicação é muito pelo WhatsApp. E chega muita contra-informação pelo WhatsApp. Isso atrapalha. A pessoa está se prevenindo ali e daqui a pouco fala: “Não, isso já passou, o pico já passou”. Mesmo que seja uma fake news, as pessoas acabam pegando essas contra-informações ali. Então, o número de pessoas que estão aceitando a quarentena é bem menor, infelizmente. 

Tem outras particularidades. Não tem como pedir comida em casa, não tem estoque de alimentos. Então o cara vai ali na padaria e compra um café, sai para comprar um arroz. Às vezes, são várias famílias na mesma casa. Às vezes, moram oito pessoas dentro de um barraco de quatro por cinco metros quadrados. E aí, como faz para todas essas pessoas ficarem ali o tempo todo? É bem complexo, a periferia não é um monobloco. As pessoas tendem a achar que é preciso ficar em casa para resolver a situação. Mas na periferia as pessoas são diferentes, né, mano?

CC: Você tem pedido que as pessoas te enviem informações sobre como está a quarentena em outras quebradas. O que estão te dizendo?

F: Eu recebi um feedback em que 99% das pessoas não estão respeitando [o isolamento]. Quem falou comigo, falou: “Ferréz, pelo amor de Deus, estou te enviando essa mensagem porque aqui está impossível. Tá tendo festas, encontros, bares abrindo na minha porta”. É tudo muito triste, mano. Sabe, gente querendo fazer um pancadão, o pessoal tentando orientar, e esses caras não ouvem ninguém… É muito difícil para a comunidade. É muita gente envolvida, e o cumprimento das regras é outro também. Isso é triste, porque quando vier essa demanda para a gente, quando vier um contágio forte, vão culpar as periferias. Parece que o governo já está se preparando para culpar. Sendo que eu vou falar para vocês: a informação não chega da forma como deveria chegar.

“O Jair Bolsonaro é mal-intencionado. Quando ele falou da primeira vez que podia sair, muita gente saiu mesmo. As pessoas vão pelo presidente, não tem como”, diz Ferréz.

CC: Qual é a diferença entre as classes mais abastadas e a periferia na hora de ficar em isolamento?

F: A classe média-alta está acostumada a ser servida. Então ela fica muito menos vulnerável. Ela vai ligar para pedir uma comida, e a comida vai chegar. Ela vai abrir a casa dela para limpeza, e ela vai sair para a pessoa fazer a limpeza. A periferia é o contrário. A periferia vai pegar um ônibus lotado, um metrô lotado, e vai na casa dessa pessoa limpar. Então ela fica muito mais exposta. Como nós temos pessoas que fazem serviços, a gente fica muito mais exposto, enquanto a classe média está no seu aconchego. Ela pode falar o que for, mas ela faz um home office, ela entrega um serviço pela internet. É menos exposição, não tem nem como comparar. 

Fora os recursos. Uma pessoa na periferia vai estocar alimentos como, se ganha o básico para sobreviver mês a mês? Muitos patrões aproveitaram e diminuíram os salários, cortaram salários. Então como alguém vai estocar mais comida? Ela pode comprar ali um fardo a mais de papel higiênico, um fardo a mais de arroz. Mas não quer dizer que ela vai ficar em casa 30 dias ali só se alimentando do que tem. 

CC: O presidente Jair Bolsonaro está incentivando o descumprimento do isolamento. O que isso representa?

F: O Jair Bolsonaro é mal-intencionado. Despreparado e mal-intencionado. É o que eu posso falar. Porque realmente não tem como um cara que está ali, com pessoas informadas ao lado, tem um ministério que pode prestar contas a ele, tem acesso a informação do mundo todo, estar pregando uma contra-informação dessa. Hoje ele é o único presidente no mundo que está pregando esse tipo de coisa, salve engano com um ou outro que pode estar fazendo essa voz.

Então, é uma pena, porque muitos da população vão por ele. Quando ele falou da primeira vez que podia sair, muita gente saiu mesmo. As pessoas vão pelo presidente, não tem como. É um discurso cômodo para a população. Eu também queria acreditar que o sol mata o vírus, eu também queria acreditar que você pode sair e não vai acontecer nada. Mas não é a realidade. Então, ele está fazendo um desserviço perante tudo o que a gente está enfrentando. 

CC: Em vídeo, você também se diz incomodado com as pessoas da outra ponta do espectro ideológico. Você cita, por exemplo, canais progressistas, socialistas, que só têm ficado no discurso, mas trabalho mesmo tem sido para poucos. Você está, de certa forma, frustrado com a atuação da esquerda no meio da pandemia?

F: Estou totalmente frustrado. A gente tem partidos de esquerda que não estão fazendo nada. Que não estão agindo para salvar a população de forma nenhuma. Só estão na crítica total ao governo, mas não estão fazendo nada de produtivo para a população. Uma coisa é você ter força política para ir contra o governo. Outra coisa é você, num momento desse, se virar para a população. Deixar a politicagem de lado e falar: meu, vou resgatar vidas, vou tentar fazer uma campanha de doação de cestas básicas, vou me direcionar para, de fato, orientar a população que precisa. Vamos montar uns canais de bairro aí que a gente tem acesso.

Eles estão de brincadeira! Tem gente que está voltado só para a parte política, e é importante a parte política, mas o retorno tem que ser a melhoria para o povo, da vida das pessoas. Isso me deixa puto da vida. A gente tem poucos executores aqui no Brasil. Fala-se muito, mas sair para executar num momento desse, isso não está sendo feito. E não se fortalece quem faz também.

CC: Por que você acha que isso acontece?

F: Acho que, querendo ou não, quem representa a maioria do povo não é do povo. Quem está falando que tem um discurso mais popular, não conhece o povo de verdade. Se desvencilhou. Começou a pisar no carpete e esqueceu do barro. Isso tudo gera demagogia. Não é a realidade. A realidade é que as pessoas são desinformadas, vão precisar de campanhas de doação de alimento para sobreviverem, e não estão fazendo nada disso. Discurso não enche armário não. 

CC: O que você tem feito para colaborar com as pessoas que mais precisam?

F: Além de deixar o meu canal disponível para divulgar ações que acontecem no Brasil todo, eu também trabalho aqui no Capão, junto com a comunidade, em um projeto chamado “Interferência”. Nesse projeto, a gente cadastrou as famílias, fizemos distribuição de cestas básicas, e agora estamos estocando cestas básicas para o caso de necessidade futura. A gente entende que o momento de caos ainda não chegou, ainda vai chegar. Eu não posso fazer mais do que 100 famílias, é o que posso estar fazendo. A gente vai abranger 100 famílias nos próximos meses.

CC: Você disse que o caos ainda está por vir. Existe medo do caos entre essas pessoas que estão próximas a você?

F: É um clima de medo mais da gente que entende, que tem internet, que lê a própria revista CartaCapital, gente que está antenada em canais progressistas, como o do Henry Bugalho. A gente tem mais medo. As pessoas que estão vivendo na informação “normal” estão temerosas, mas ao mesmo tempo não sabem o que fazer. Vai comprar uma máscara, não sabe se vai manter aquela máscara todo dia. Vai comprar o álcool em gel, não acha e desiste. Também, o quê que sobrou para a população fazer? Vai comprar álcool em gel, ficar em casa com a máscara… É uma coisa… Sei lá, é bizarro demais.

CC: No meio disso tudo, você publicou no seu canal um conto do livro “Os Ricos Também Morrem”. De que serve a arte no meio da pandemia?

F: O papel da arte é fundamental, é o lúdico, o que chega na população de outra forma. Eu tenho recebido muitos versos de rap, o cara recitando ali na favela, e isso impacta muito mais pessoas. Você pára pra escutar aquilo. O papel da arte dentro da quebrada é de oratória. Por isso eu li esse conto e toda semana eu tô lendo um conto diferente, lendo poesia. A pessoa já me fala: ó Ferréz, enquanto eu te ouço, estou ali varrendo, lavando louça. Então eu gosto de fazer essas narrações para tirar as pessoas desse assunto, ninguém aguenta viver nisso por 24 horas. A arte é fundamental para a mente da gente não se frustrar mais, não entrar em depressão.

CC: Essas contradições da pandemia têm se refletido no que os artistas produzem ao seu redor?

F: Têm. Teve gente que falou comigo: “Pô, eu não sei se devia abordar isso, mas criei uma poesia sobre o vírus”. Eu falei: aborda. Se você puder, na sua poesia, orientar uma pessoa a usar máscara, ótimo. Se você puder orientar a não expor uma pessoa de idade na rua, ótimo. É para isso que serve a arte. Se não tiver engajamento na arte, para a gente não funciona. A gente nunca fez arte só pela arte. A gente faz arte para mudar vidas. Então, eu sempre oriento: faça arte por um motivo. 

CC: Que face o capitalismo apresenta para você em uma crise como essa?

F: Apresenta um momento muito triste. Mostra que a gente trabalha só pela comida. A gente não está trabalhando para poder progredir de forma nenhuma. Você pode ver que as pessoas ficaram 30 dias paradas e estão totalmente sem condições de sobreviver. Imagina daqui para frente. Então, eu acho que é um momento para refletirmos que tipo de vida a gente está levando. Estamos trocando suor por ração.

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