Saúde

As dores da pandemia fazem disparar o consumo de álcool e drogas no Brasil

Os dados indicam que as substâncias estão sendo usadas como válvulas de escape para as transformações causadas pelo coronavírus

(Foto: iStock)
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“Desde que a pandemia começou estou tomando mais vinho e fumando muito mais maconha.” Depois de quase um ano em casa, essa foi a percepção de Ana Clara*, curitibana de 27 anos, cujo nome verdadeiro será preservado. O relato da jovem pode até parecer apenas um chiste, caso isolado, mas não é o que indicam pesquisas mundiais recentes. Um bom exemplo é a Global Drug Survey (GDS), levantamento mundial que revelou um aumento exponencial no consumo de álcool e drogas em dezenas de Países em 2020.

Ao todo, segundo indicou a edição especial da GDS sobre a Covid-19, o Brasil registrou um aumento de 17,2% no consumo de maconha e 13,5% no consumo de álcool em 2020. Os dados da pesquisa ainda apontam um salto de 7,4% no uso de cocaína e de 12,7% no uso de remédios para ansiedade, como Diazepam e Clonazepam. Os números são semelhantes à média mundial.

Outras pesquisas, como a ‘ConVid – Pesquisa de Comportamentos’ elaborada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com as universidades Federal de Minas Gerais e Estadual de Campinas, também indicam o mesmo cenário. 18% de crescimento no consumo de álcool e 34% no uso de tabaco no primeiro ano de pandemia.

Os dados indicam que álcool e drogas estão sendo usados como possíveis válvulas de escape para as drásticas transformações causadas pelo coronavírus

Ana Clara conta que demorou meses para perceber que fumar e beber passaram a fazer parte da sua rotina diária. Ela atribui o aumento aos efeitos que o isolamento social lhe trouxe.

“A bebida e a maconha sempre estiveram ali, principalmente no fim de semana. Mas agora tô em casa, com mais tempo sozinha e comecei a consumir mais vezes na semana, até perceber que estava fumando e bebendo todos os dias”, relata. “Esse estalo veio só agora, no meio do ano.”

Os motivos da jovem são os mesmos citados pelos participantes do GDS ao redor do mundo. Entre os entrevistados que sinalizaram ter aumentado as doses e a frequência com que bebem, 42% dizem ter mais tempo livre, 41% afirmam beberem por estarem mais chateado, 27% por estarem mais estressados ou ansiosos com tudo o que está acontecendo e 20% por estarem se sentindo mais sozinhos.

Entre os que relataram maior frequência no uso da maconha, há uma larga diferença entre aqueles que indicaram o tempo ocioso proveniente da pandemia como principal desencadeador, 63%, e entre os afirmam fumar mais por estarem mais chateados, 57%. Os demais percentuais são semelhantes ao álcool.

Os dados indicam que álcool e drogas estão sendo usados como possíveis válvulas de escape para as drásticas transformações causadas pelo coronavírus. A tese é confirmada por Marcelo Dalla Vecchia, professor da Universidade Federal de São João del-Rei e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Intervenção nas Políticas sobre Drogas (NUPID).

“O aumento de consumo se vincula a uma questão de sofrimento mental. Essas pessoas estão tendo que se manter distanciadas dos seus vínculos de relação cotidianos e há um medo constante rondando a rotina. Tudo isso vai criando um quadro de sofrimento mental complexo em que a ampliação do consumo pode deixar de ser algo eventual, recreativo e fora do risco para um padrão cada vez mais pendente ao nocivo”, detalha o professor.

Mudança de hábitos

Para o professor que acompanha de perto o tema e tem observado na prática este aumento, há uma mudança pragmática que reflete bem os impactos da pandemia: o perfil das drogas consumidas.

Segundo Dalla Vecchia, há uma busca por bebidas, maconha e remédios anestesiantes cada vez mais evidentes ao passo de que há uma redução na procura por drogas mais estimulantes, geralmente associadas a festas, como LSD e ecstasy.

“Como estes eventos não estão mais acontecendo em larga escala, há uma migração deste consumo para outras drogas menos estimulantes”, explica.

Este perfil, no entanto, se inverte em profissões que estão sendo mais exigidas durante este período, como por exemplo, trabalhadores de hospitais ou segurança pública. Segundo aponta o professor, “há registros de consumo maior de estimulantes entre profissões de ritmo muito intenso. Estimulantes esses que passam por anfetamina, cocaína, etc.”.

‘Olhar crítico’ sobre o aumento

Dalla Vecchia também explica que os dados por si só, como qualquer número, são frios. É preciso atenção a alguns detalhes. Para ele há de fato um aumento, mas que precisa ser analisado sempre dividindo este universo em dois grupos distintos.

De acordo com o professor, há um grupo em um contexto de vulnerabilidade social maior, em situação de rua e que sempre esteve mais exposto ao consumo de drogas, principalmente o crack e o álcool, e há um grupo de pessoas que não estão em situação de vulnerabilidade social.

Sobre o primeiro, o pesquisador explica que não há dados consolidados para quantificar este aumento por se tratar de uma população cada vez mais isolada pela pandemia. Isso porque muitos levantamentos e pesquisas que eram feitos presencialmente estão sendo realizados apenas on-line, o que, obviamente, dificulta a coleta de dados entre esta população.

Apesar de não serem quantificados, ele afirma que os depoimentos de quem atua diretamente no auxílio a dependentes químicos e população de rua dão conta de confirmar este crescimento no consumo.

“O consumo de álcool e drogas nestas populações que não estão conseguindo se manter em distanciamento social é mais um elemento de um conjunto amplo de vulnerabilidades às quais essas pessoas estão expostas”, alerta. Soma-se a isso o baixo acesso aos cuidados contra a Covid-19, como o uso de máscaras, vacinas e o não compartilhamento de objetos e temos um cenário desastroso.

 

Já em relação ao segundo grupo, Dalla Vecchia chama a atenção para o fato de que os números podem não necessariamente indicar um risco do ponto de vista epidemiológico. Isso porque, segundo alerta, o perfil do consumo pode não ser nocivo como um primeiro olhar faz parecer.

“É importante dizer que estes dados refletem não necessariamente um aumento no consumo abusivo, mas, em muitos casos, um aumento no número de pessoas que antes não consumiam e passaram a consumir. Isso não significa, para espanto de alguns mais moralistas em relação ao tema, que as pessoas passaram a fazer um consumo problemático”, destaca.

Dalla Vecchia não descarta, porém, que há uma parcela que de fato esteja caminhando para padrões mais nocivos, nem que um consumo regular não possa vir a se tornar problemático com o passar do tempo.

Cuidado precisa ser ampliado

É justamente para conter este avanço para índices mais problemáticos que o professor destaca a urgência de se ampliar os cuidados e as políticas públicas em torno do tema.

A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) fez uma tentativa global de conter este avanço, recomendando em abril deste ano que os Países impusessem uma restrição maior à venda de bebidas em seus territórios. A medida, no entanto, não foi adotada em larga escala.

Segundo lembra o professor, o Brasil desde o fim da década de 1990 havia se tornado referência de atenção e cuidados de pessoas que fazem uso de drogas. Havia até então um consenso nacional e internacional de que estes cuidados deveriam sempre ser deslocados para contextos comunitários, com serviços cada vez mais próximos das casas e realidades destas pessoas. O processo vinha sendo focado em políticas de acolhimento e redução de danos.

Na prática, porém, desde a chegada de Michel Temer ao poder com sua política do Teto de Gastos este cenário deixou de ser realidade. O retrocesso foi ampliado com a eleição de Jair Bolsonaro, que passou a focar em novas políticas reformistas sob a batuta de Paulo Guedes.

“O que a gente tem visto nos últimos anos, puxado pela fatídica Emenda Constitucional 95, é um intenso sucateamento que a rede de atenção psicossocial tem sofrido nos últimos anos, em especial a partir de 2017”, destaca.

Para Dalla Vecchia, o sucateamento da rede é ainda amplificado pelo significativo aumento das comunidades terapêuticas, concentradas nas mãos de grupos religiosos que recebem volumosas verbas do governo e se utilizam de métodos forçados de reclusão, que muitas vezes se aproximam dos extintos manicômios.

Este sucateamento é sentido na prática por profissionais que trabalham diretamente nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) focados em álcool e drogas. Reservadamente, servidores que atuam em algumas destas instituições no Paraná relataram que a pandemia, combinada ao corte de verbas e pouco incentivo às políticas públicas historicamente consolidadas têm tornado o trabalho cada vez menos eficiente.

“Os recursos terapêuticos que a gente historicamente construiu na saúde mental, como o cuidado em liberdade e as práticas de reabilitação psicossocial ficaram muito mais restritos pela pandemia, mas principalmente pelo ataques e retrocessos nas políticas de saúde mental que já vem de antes”, relata uma das servidoras.

Para ela, o corte de verbas e os ataques aos métodos já consolidados estão intimamente ligados aos maiores investimentos dos governos federal e estadual nas comunidades terapêuticas e práticas religiosas.

“Se antes a gente conseguia acompanhar um usuário diariamente em grupos e oficinas, aumentar as estratégias de cuidado e estabelecer combinados, agora a gente tem apenas atendimentos de crise”, resume a profissional sobre os seus dias.

Em 2020, mortes por overdose cresceram nos Estados Unidos

Dados do Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), a mais importante agência de Saúde dos Estados Unidos, mostram que o número de mortes por overdose bateu um recorde histórico em 2020, com cerca de 93 mil óbitos registrados.

O dado aponta um crescimento de 30% em comparação ao mesmo período de 2019 e é o maior das últimas três décadas no País. Segundo a plataforma dedicada ao tema do próprio CDC, os dados ainda são preliminares, podendo haver ‘pequenas diferenças’ na divulgação dos números finais.

Em comunicado emitido em março deste ano, o CDC reafirmou a relação das mortes com o coronavírus: Os números “indicam que o aumento nas mortes por overdose de drogas parece ter se acelerado durante a pandemia de Covid-19”, escreveu o órgão.

No comunicado, a agência ainda lista uma série de ações de prevenção e cuidados que vem promovendo para evitar que os óbitos sigam aumentando. As ações vão desde orientações aos profissionais de saúde sobre como realizar um atendimento adequado até uma ampliação da vigilância por forças de segurança sobre o fornecimento de remédios que podem resultar em overdoses.

No Brasil, os dados de mortes por overdoses são mais restritos e ainda pulverizados, sendo difícil afirmar se houve ou não um aumento no número de casos no último ano.

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