Política

“As comunidades terapêuticas não respeitam a liberdade religiosa”

Presidente do Conselho Federal de Psicologia diz que unir reclusão, religião e dinheiro público pode gerar uma fábrica de minimanicômios

Comunidade terapêutica: inspeção nacional encontrou graves violações de DH (Foto: Andre Borges/Agência Brasília)
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As comunidades terapêuticas completaram 50 anos de existência e ganharam um presentão do governo de Jair Bolsonaro. Na última terça 19, os ministros Damares Alves e Osmar Terra anunciaram, em uma tacada só, contratos para financiar 216 novas instituições. O número de vagas chegará a 10.883 mil.

“Neste ato, o Estado laico reconhece a importância das comunidades religiosas. É o retrato de um novo Brasil.” Foi com essas palavras que Damares definiu a mudança. Este novo Brasil, porém, é visto com preocupação por profissionais de saúde mental.

“Essas entidades se recusam a respeitar a Lei da Reforma Psiquiátrica”, critica Rogério Giannini, presidente do Conselho Federal de Psicologia. Em 2017, o CFP participou de uma inspeção nacional nas comunidades terapêuticas coordenada pelo Ministério Público Federal. Foram vistoriadas 28 entidades em onze estados brasileiros.

O resultado, apresentado no ano seguinte, é desolador: os peritos identificaram vários casos de castigos físicos, privação de liberdade, violação à liberdade religiosa, trabalhos forçados e conduções à força para a internação. “São como mini-Barbacenas”, diz, em referência ao Hospital Colônia de Barbacena, palco de gravíssimas violações entre os anos 30 e 80.

Existem hoje mais de 2 mil comunidades terapêuticas no Brasil, a maioria é ligada a igrejas católicas e evangélicas. Com o aporte do governo, o número de entidades subsidiadas chegará a 496. Nessas comunidades, os internos ficam isolados por alguns meses, sem usar drogas e empenhados em trabalhos braçais e atividades religiosas.

A aproximação do governo com as comunidades terapêuticas nunca foi tão escancarada. Em 2017, o governo custeava pouco mais de duas mil comunidades. No ano seguinte, sob a batuta de Osmar Terra, esse número subiu para 6.600. Agora, chegará 10,8 mil – um aumento de quase 50% — ao custo de 153,7 milhões por ano. Cada leito custará por mês aos cofres públicos cerca de 1200 reais.

A iniciativa está alinhada com a Nova Política Nacional de Saúde Mental, que privilegia leitos em hospitais psiquiátricos em detrimento dos serviços abertos e de base comunitária do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial).  Giannini teme que o isolamento e falta de fiscalização abram caminho para que os casos de violência se multipliquem.

Em entrevista a CartaCapital, ele explica porque a combinação de reclusão, religião e dinheiro público é tão preocupante.

Rogério Giannini, presidente do Conselho Federal de Psicologia (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

CartaCapital: Quais as principais críticas do CFP às comunidades terapêuticas?

Rogério Giannini: Vemos com muita preocupação dentro da lógica do retorno dos manicômios. As comunidades terapêuticas repetem essa ideia asilar, de tratar as pessoas isoladamente. Sempre que uma população marginalizada é isolada e esquecida, o risco de violações aos direitos humanos fundamentais é imenso. As pesquisas apontam uma baixíssima eficiência desse tipo de tratamento. O grande risco é ter o poder público financiando centenas de mini-Barbacenas Brasil afora.

Nós também desconfiamos que , de certo modo, esse também é um negócio lucrativo. Essas populações mais invisibilizadas, que saem de uma internação para outra, irão justamente para lugares de difícil fiscalização, baixo custo e financiados com dinheiro público.

CC: Quais foram os problemas que as inspeções encontraram?

RG: No resultado médio, vimos que as comunidades terapêuticas atuam em uma única lógica: a da abstinência. E essa abordagem, historicamente, não funciona como política pública, além de estar em desacordo com a política nacional de saúde mental. Embora possa indicar a abstinência como meta, a política, de modo geral, trabalha com redução de danos.

Leia também: Comunidades terapêuticas: a violência no lugar da cura

O chamado tratamento é a partir de programas copiados do AA. É basicamente um reforço moral desse usuário a partir de uma perspectiva religiosa. Não tem problema ter uma perspectiva religiosa, mas ela tem que vir de dentro pra fora. Se o usuário é religioso, esse elemento é incorporado ao tratamento, respeitando a liberdade religiosa. Essas comunidades não respeitam a liberdade religiosa. Elas impõem uma visão religiosa sobre os internos.

CC: E quanto à rotina de trabalho nessas comunidades? Tem ou não valor terapêutico?

RG: Essa rotina é o que eles chamam de laborterapia. Mas, me desculpe, não é laborterapia. É a ocupação das pessoas em manter o espaço físico. Então as pessoas pintam, limpam, fazem jardinagem. Eles mesmo dizem que essas pessoas “moralmente fracas” vão ficar “moralmente fortes” recebendo orientações religiosas e fazendo trabalhos forçados. Em alguns casos análogos à escravidão. Em nosso último relatório, encontramos internos que trabalhavam na casa do dono da comunidade, menores de 13 anos limpando o banheiro usado pelos monitores. Isso não é atividade terapêutica.

CC: E porque o tratamento aberto, no modelo do Caps, é mais eficiente?

RG: Essas comunidades seguem o modelo manicomial, de isolar os internos e tirá-los do convívio social. As assembleias são um dispositivo terapêutico, onde as pessoas discutem como usar o Caps. Onde ele vai se envolver em defesa dessa lei da saúde mental. Você tem uma vida social que ajuda o paciente a readquirir um repertório para que ele possa viver em sociedade. Viver ativamente, sendo um cidadão consciente, participativo. E não só um número. Na lógica das comunidades é o oposto, os internos ficam isolados por até três ciclos 90 dias. Nós estamos falando de 270 dias de internação e isolamento.

CC: O ministro Osmar Terra vem falando na necessidade de aprovar o PL que abre brechas para internação compulsória de dependentes químicos.

RG: Nenhum tratamento pode ser compulsório. Isso está ligado à questão legal. Em casos criminais, por exemplo, interna-se a partir de uma decisão judicial. Isso vale para a medicina geral e também para a saúde mental. Toda a legislação brasileira e tratados que o Brasil assinou internacionalmente vão nesse sentido.

CC: Ao mesmo tempo em que valoriza as CTs, o governo incentiva a disseminação do eletrochoque. Estamos muito longe de ter comunidades aplicando terapias como essas?

RG: Não é impossível. Bastaria ter um psiquiatra de plantão. A lógica de controle já é realidade nessas entidades. Então não acho impossível, bastaria ter um psiquiatra de plantão. Em muitas comunidades que visitamos, medicamentos como Rivotril e Haldol eram dados sem prescrição para controlar os internos que queriam sair de lá. Estamos no meio de um debate sobre qual sociedade queremos. Uma mais inclusiva, que garanta direitos, ou essa outra, que vai criando problemas sociais gravíssimos, como o desemprego, criminalidade e a dependência de álcool e outras drogas?

Vídeo: o Brasil precisa da volta do sistema manicomial?

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