Política

Governo Bolsonaro ameaça (de novo) desmanchar política de saúde mental

Em meio à pandemia, o Ministério da Saúde voltou à carga com o ‘revogaço’ de 99 portarias que regulamentam o tratamento no SUS

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Os profissionais da saúde mental no Brasil podem ser divididos entre dois grupos. Um prega a eficácia dos tratamentos medicamentosos e a internação, mesmo contra a vontade do usuário. Nesse modelo, o hospital e o médico são centrais. O outro, ligado à luta antimanicomial, acredita no diálogo, acolhimento e em mecanismos de ressocialização. Ambas as visões e modelos de tratamento coexistem. Desde os anos 1990, os sanatórios e hospitais psiquiátricos, de reputação manchada por maus-tratos e outras violações, foram aos poucos substituídos por serviços abertos e de base comunitária, como os Centros de Atenção Psicossocial. O grande objetivo desse modelo, além de recuperar a saúde mental do paciente, é integrá-lo à família e à comunidade. O atendimento é feito por médicos, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras, entre outros especialistas.

Há três anos estão em curso, no entanto, mudanças profundas na forma como se cuida dos doentes mentais e dependentes químicos. Contra as evidências científicas, a abstinência passou a ser recomendada como solução para o abuso de drogas. Cresceu o apoio à internação de crianças e adolescentes em hospitais psiquiátricos, mesmo naqueles reservados a adultos. Em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, uma portaria do Ministério da Saúde sugeriu facilitar a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia (o antigo eletrochoque, em versão humanizada) pelo SUS e a internação à força. Após a reação da comunidade médica, o ministério desistiu das medidas.

Há, porém, uma compulsão de caráter medieval no governo. Em meio à pandemia, o Ministério da Saúde voltou à carga com a ideia de revogar 99 portarias que regulamentam o tratamento mental e a dependentes químicos. Em linhas gerais, a proposta transfere as políticas comunitárias da pasta para o ramo da assistência social, o que reduziria os investimentos nos Caps e aumentaria a verba destinada a hospitais psiquiátricos.

Documentos aos quais CartaCapital teve acesso indicam que, na proposta do governo, os Caps ficariam responsáveis apenas pela reabilitação, tornando-se serviços de assistência social, e não mais de saúde pública.

Cogitou-se ainda a extinção dos Caps AD, dedicados aos usuários de álcool e drogas, e de programas como De Volta para Casa, que visa a reinserção social dos pacientes.

O projeto nasceu sob a batuta da Associação Brasileira de Psiquiatria, autora de um documento que serve de base a várias das propostas. Em um vídeo gravado em agosto, representantes da associação e funcionários do Ministério da Saúde celebraram os “novos rumos” da política de saúde mental. O psiquiatra Antonio Geraldo, presidente da

ABP, declara: “O que foi proposto aqui hoje é um sistema privado oferecido ao sistema público. A psiquiatria brasileira no SUS vai ser de ponta”. Na prática, o setor privado atua nessa seara por meio de convênios com entidades filantrópicas subvencionadas pelo governo – como as Santas Casas e boa parte dos hospitais psiquiátricos – e os contratos de gestão das Organizações Sociais de

Saúde. O que está em jogo, segundo especialistas, é a volta dos hospitais e ambulatórios ao centro da política de saúde mental. O grande risco seria reavivar os manicômios, de triste memória. A reforma psiquiátrica iniciada nos anos 1970 descobriu que muitos hospitais brasileiros não passavam de depósitos humanos – vários pacientes acabavam internados por motivos que nada tinham a ver com alguma doença.

Eleito pela primeira vez na ABP em 2006, Geraldo domina a associação. Apesar de não pertencer ao grupo tradicionalista, ganhou poder ao alimentar a antipatia da classe em relação à reforma psiquiátrica. Diante da repercussão, a ABP preferiu chamar de fake news tanto o “revogaço” quanto seu apoio às medidas. No mesmo texto, defendeu que a política de saúde mental adotada em 2017 deve ser “amplamente implementada para que a assistência aos pacientes com transtornos mentais, fruto de ideologias irresponsáveis, seja finalizada em nosso país”. A nota foi endossada por Bolsonaro, pela deputada Bia Kicis e pela ministra Damares Alves. O Ministério da Saúde admitiu que havia um grupo de trabalho debruçado sobre o assunto, composto de representantes do Ministério da Cidadania, do Conselho Federal de Medicina, da Associação Brasileira de Psiquiatria, do Conass e Conasems, e encarregado de reavaliar a Política Nacional de Saúde Mental aprovada em 2017. Mas negou haver sugestões de fechar Caps e consultórios de rua.

Ação entre amigos. Em 2020, o governo pagará às comunidades terapêuticas
o dobro do que investe nos Caps. Foto: Redes sociais

O interesse do ex-capitão e de seus apoiadores nessa política tem outras razões de fundo. A nova ordem na saúde mental escancarou o espaço para as comunidades terapêuticas. Existem hoje mais de 2 mil delas no Brasil, quase sempre ligadas a igrejas católicas e evangélicas. O governo repassa dinheiro a quase um terço. Não foi sempre assim. Em 2017, apenas 2,9 mil vagas nessas instituições eram subsidiadas. No ano passado, em uma só tacada, ganharam contratos 216 novas instituições, o que elevou o número de vagas para 11 mil, ao custo de 153,7 milhões de reais. É pouco menos do que os 158 milhões de reais investidos anualmente nos Caps, amplamente fiscalizados e regulados.

O revogaço ainda não saiu do papel. A oposição pediu a convocação do ministro Eduardo Pazuello. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, prometeu pautar imediatamente um projeto na Câmara para derrubar qualquer medida do governo nessa direção. E Maria Dilma Alves Teodoro, autora da planilha, pediu demissão e deixou a Coordenadoria de Saúde Mental. Mas isso não significa que o projeto se despede com ela. Um dos cotados para substituí-la é o médico Rafael Bernardon Ribeiro, defensor da política centrada nos hospitais e das terapias com eletrochoque.

Publicado na edição nº1136 de CartaCapital, de 16 de dezembro de 2020

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