Política

Relembre o legado e a história de Leonel Brizola, que completaria 100 anos

Único governador a cumprir mandato em dois estados, o fundador do PDT teve uma trajetória repleta de singularidades

Foto: Divulgação/PDT
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O jornalista Caco Barcelos não esquece a visita do então prefeito, Leonel Brizola, à Vila São José do Murialdo, na periferia de Porto Alegre, onde vivia com a família. Naquele dia, nos idos de 1956, Brizola viu crianças descalças, abandonadas pelo Estado, percorrendo as ruas de chão batido do bairro. O discurso aos moradores demonstrou sua insatisfação.

“No Rio Grande, eu nunca vi um cavalo sem ferradura. Como pode nossas crianças andar descalças? Eu nunca vi um bezerro abandonado, mas vejo crianças dormindo na rua. Isso não pode mais acontecer.” Brizola prometeu dar um tênis para cada uma das crianças do bairro. E cumpriu. “Foi quando ganhei meu primeiro kichute”, contou Barcelos em entrevista ao colega ao colega Pedro Bial.

À época, Brizola já demonstrava sua obsessão pela educação pública. As escolas criadas por ele eram chamadas pela população de “Brizoletas”. Nelas, as crianças chegavam às 8h da manhã e saiam às 18h. Além do aprendizado curricular e alimentação, os alunos aprendiam música e praticavam esportes. “Sou um grande admirador dele” confidenciou.

Brizola, registrado como Itagiba de Moura Brizola, completaria 100 anos neste sábado, 22 de janeiro. Nasceu em 1922 na pequena localidade de Cruzinha, no Rio Grande do Sul, hoje chamada de Carazinho. Mal chegou a conhecer o pai, um pequeno agricultor assassinado pelas forças leais ao presidente da Província do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros, durante a Revolução de 1923. Nas brincadeiras de infância, Brizola incorporava como herói o personagem do caudilho Leonel Rocha, líder maragato que lutara contra os assassinos de seu pai. Como não gostava do seu nome, um dia resolveu adotá-lo em definitivo. Itagiba virou Leonel. Leonel de Moura Brizola.

Alfabetizado pela mãe antes de ingressar no então ensino primário, Brizola chegou a Porto Alegre em 1936. Concluiu o fundamental em 1942 e três anos depois foi aprovado no vestibular da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do sul, graduando-se engenheiro civil em 1949. Em março de 1950 casou-se com Neusa Goulart, irmã do então deputado estadual e futuro presidente da República João Goulart.

Foto: Divulgação/PDT

A política sempre esteve no seu DNA. A carreira neste ramo foi meteórica. Em 1945, ainda estudante de engenharia, se filiou ao Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB. Dois anos depois, foi eleito deputado estadual. Reeleito em 1950, disputou a prefeitura de Porto Alegre em 1952, mas foi derrotado. Em 1954, se elegeu deputado federal com o recorde nacional de 103.033 votos. Em 1956, volto a postular a prefeitura da capital gaúcha. Venceu as eleições com o slogan “Nenhuma criança sem escola”. Sua gestão, aumentou o número de escolas construídas e a oferta de vagas na rede municipal. Além disso, pela primeira vez, a cidade ofereceu à população ensino em dois turnos. As obras de infraestrutura e saneamento nos bairros da periferia e no entorno do rio Guaíba foram intensificadas.

Em 1958, Brizola é eleito governador do Rio Grande do Sul. Promoveu uma verdadeira revolução. Suas prioridades foram a alfabetização e o fim do déficit de vagas no ensino público, estimado à época em mais de 270 mil. Para suprir essa lacuna, Brizola promoveu convênios com escolas privadas em troca de receberem professores e recursos. Uma espécie de Prouni da época. Em paralelo, novas escolas públicas foram construídas por todo Estado, somando mais de seis mil salas de aula.

Brizola também bateu de frente com as multinacionais. Nacionalizou a companhia Bond & Share, que monopolizava a energia elétrica na região metropolitana de Porto Alegre, para criar a Companhia de Estadual de Energia Elétrica. Privatizou a International Telephone and Telegraph, substituída pela Companhia Riograndense de Telecomunicações. Implantou o primeiro projeto de reforma agrária no País com a criação do Instituto Gaúcho de Reforma Agrária, o IGRA. Na primeira etapa, entre os mais de 600 lotes distribuídos para o assentamento de agricultores sem terra, Brizola incluiu sua fazenda, a Pangaré.

Naqueles mesmo período, um dos mais turbulentos da história política brasileira, com a renuncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, a força política de Brizola ultrapassa as fronteiras do Rio Grande do Sul. Quando os militares tentam impedir a posse do então vice-presidente João Goulart, que se encontrava em viagem oficial à China, Brizola reage e cria a Campanha da Legalidade: um grupo de emissoras de rádio espalhadas por todo o País que, em defesa da democracia, passou a denunciar de dentro do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, a tentativa do golpe militar que já avizinhava.

Com o apoio das Forças Armadas regionais, ele organizou comitês paramilitares – e incentivou a resistência da população com armas, caso fosse necessário. O Piratini se transformou em um bunker. Brizola se opunha à troca do presidencialismo para o parlamentarismo, conforme exigiam os militares. Após doze dias sob a ameaça de uma guerra civil, Goulart aceitou a proposta e assumiu a presidência da República. Naquele momento, Brizola selava sua ida para o exílio, que se daria com o golpe militar de 1964. Inicialmente, se refugiou no Uruguai e, depois, na Europa.

O velho caudilho só retornaria ao Brasil 15 anos depois, em 1979, com a anistia em vigor. Nocauteado pelo então bruxo do Planalto, o general Golbery do Couto Silva, que não lhe devolveu o PTB, Brizola fundou o Partido Democrático Trabalhista, o PDT.

Suas pretensões políticas não se resumiam ao Rio Grande do Sul. O menino de Carazinho resolve apostar em um lance de altíssimo risco: ser candidato a governador do Rio de Janeiro.

Para o médico Eduardo de Azeredo Costa, secretário em seu primeiro governo carioca (1983-87) e depois, na segunda gestão (1991-94), tanto Brizola quanto o PDT corriam o risco de ficar restritos à política regional caso ele permanecesse no Rio Grande do Sul. “Era preciso e havia condições dele exercer uma liderança nacional a partir do Rio”. Ainda segundo Costa, Brizola não acreditou de pronto que teria condições eleitorais de vencer uma disputa ao Guanabara. A estratégia foi buscar o apoio de pequenos partidos a seu nome.

Em 1982, Brizola disputou o governo do Rio de Janeiro com Moreira Franco (MDB), candidato apoiado pelo regime militar com a anuência da Rede Globo. Um fato foi marcante nesta disputa: a empresa contratada pelo Tribunal Regional Eleitoral para fazer a contagem de votos, Proconsult, associada a antigos colaboradores do regime militar, tentou fraudar a eleição manipulando votos brancos e nulos para favorecer Franco. A farsa foi desmontada porque o PDT manteve uma apuração paralela e denunciou que os números “oficiais” não coincidiam com a realidade. Na época, o Jornal do Brasil, principal concorrente d’O Globo, deu guarida aos fatos. E Brizola foi eleito com 1,7 milhão de votos.

Após este episódio, as relações entre Brizola e Roberto Marinho ficaram ainda mais tensas. “Houve tentativas de entendimento entre eles, mas não foi possível. O cachimbo faz a boca torta” diz Costa. O ex-secretário define as práticas da Globo, durante os governos de Brizola, como as piores possíveis. “O boicote ao carnaval, após a construção do Sambódromo, e aos CIEPS (os Centros Integrados de Educação Pública, apelidados de Brizolões) foram as mais complexas”. Insiste ainda que as coberturas jornalísticas “davam microfone às quadrilhas que operavam dentro da polícia” para desconstruir a imagem do governo e suas políticas de Direitos Humanos. “A Globo apoiou a barbárie.”

Foto: Divulgação/PDT

No Rio, Brizola sonhava em implementar os CIEPS por todo Estado. Sua obstinação à educação se devia à crença que se tratava do único método capaz de provocar uma revolução social. “Seu sonho era tirar crianças da rua para coloca-las em escolas de qualidade” reitera Costa. Acreditava que a elite ia se render às evidências que a violência contra os pobres era um mau negócio.

Seu segundo governo carioca foi marcado por tensões. Brizola manteve com o então presidente Collor de Mello uma relação cordial e foi um crítico da CPI que investigava o envolvimento de PC Farias no esquema de corrupção que acabou derrubando o presidente. Classificou o processo de impeachment como “golpe”. Politicamente sofreu um enorme desgaste. Não repetiu a mesma performance da gestão anterior.

Em 1989, na primeira eleição direta à presidência da República após a redemocratização, Brizola disputa e fica em 3º lugar. Em 1994, sofre nova derrota e em 1998, como vice de Lula, perde para a reeleição do tucano Fernando Henrique Cardoso. Em 2000, tenta a prefeitura do Rio de Janeiro. Faz pouco mais de 9% dos votos. Em 2002, se candidata a uma cadeira no Senado, mas outra vez não se elege.

Brizola morreu na noite de 21 de junho de 2004, no Rio de Janeiro, vítima de infarto. Seu corpo foi enterrado em São Borja, Rio Grande do Sul, no Cemitério Jardim da Paz, onde estão sepultados sua esposa Neusa e os ex-presidentes da República, Getúlio Vargas e João Goulart. Terminava a trajetória de um dos mais brilhantes homens públicos brasileiros.

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