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Rastro de sangue

A execução da ialorixá Bernadete Pacífico é mais um capítulo da violenta novela que assombra os baianos

Morticínio. Em 2022, foram registradas 1.464 mortes decorrentes de intervenção policial na Bahia, o maior número do País – Imagem: iStockphoto
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O brutal assassinato da ialorixá Bernadete Pacífico, líder quilombola da comunidade Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, região metropolitana de Salvador, coroa a condição de insegurança pela qual os baianos são submetidos e consolida a Bahia como o estado mais violento do Brasil, conforme revelado, em julho, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em seu Anuário, a mapear a violência no País. Mãe Bernadete, como era conhecida, foi executada na quinta-feira 17 com 14 tiros dos mais de 20 disparados pelos assassinos, que até a conclusão desta reportagem não haviam sido identificados. O motivo do crime continua um mistério.

A principal linha de investigação aponta para uma disputa de terra, uma vez que a área do quilombo desperta cobiça de ruralistas, interessados tanto na exploração de madeira quanto no mercado imobiliário. A ialorixá vinha recebendo ameaças de morte há seis anos e, depois do assassinato do seu filho Gabriel, outra respeitada liderança quilombola, foi incluída no Programa de Proteção de Testemunha. O crime está sendo investigado, sob sigilo, tanto pela Polícia Civil da Bahia quanto pela Polícia Federal.

O estado figura na liderança das mortes violentas e também no topo do ranking da letalidade policial

“O Brasil é um país tão absurdo que, mesmo quando fazem ameaças a um defensor dos direitos humanos, as condições estruturais não permitem a proteção das pessoas. Não queremos mais mártires. Queremos que os defensores dos direitos humanos possam atravessar esse caminho em direção a uma sociedade mais justa vivos e juntamente conosco. Eu assumo a minha responsabilidade, em nome do Estado brasileiro. Nós não podemos aceitar essas falhas”, lamentou Sílvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos.

O secretário de Justiça da Bahia, Felipe Freitas, também reconhece a fragilidade do programa. “A morte de uma defensora de direitos humanos é inaceitável, ainda mais se ela vinha sendo ameaçada. O governo federal e o da Bahia estão revisando todos os protocolos de proteção. Uma tragédia como essa precisa fazer com que a gente aprimore o programa, aprimore as medidas de proteção, aperfeiçoe as ações de policiamento em todo o País.”

Barbárie. Mãe Bernadete foi assassinada com 14 dos mais de 20 tiros disparados – Imagem: Arquivo/CONAQ

Sílvio Almeida cobra do governo baiano uma explicação sobre o alto índice de violência no estado, principalmente a letalidade em decorrência da ação policial. No início de agosto, após o assassinato de 31 pessoas durante uma ação policial, Almeida acionou a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos para apurar o caso e para acompanhar a atuação da PM da Bahia, considerada a mais letal do País, superando até mesmo a do Rio de Janeiro.

Em julho, foram registradas 64 mortes por parte de policiais baianos, de acordo com levantamento feito pelo Instituto Fogo Cruzado. Em 2022, segundo o Fórum de Segurança Pública, a polícia baiana matou ao menos 1.464 “suspeitos”, enquanto, no Rio de Janeiro, o saldo foi de 1.330 mortes. Os dois estados, juntos, contabilizaram no ano passado 43% dos homicídios em decorrência da intervenção policial. Em meio ao caos, o governo estadual minimiza os dados da violência ao tentar desclassificar o ­Anuário de Segurança Pública e sair em defesa da Polícia Militar, sob a justificativa de sempre haver danos colaterais no combate ao crime organizado.

Em nota circulada depois da divulgação do Anuário, a Secretaria de Segurança Pública afirmou que “não coloca homicídio, latrocínio ou lesão dolosa seguida de morte praticados contra um inocente na mesma contagem dos homicidas, traficantes, estupradores e assaltantes, entre outros criminosos, mortos em confrontos com a polícia”. Questionado por CartaCapital, o órgão destacou a “alta produtividade” dos policiais que, “mesmo assim, diariamente, acabam conduzindo as mesmas pessoas, que na maioria das vezes acumulam diversas passagens pelo mesmo tipo de crime”.

Segundo a secretaria, houve redução de mortes violentas no estado: foram registradas 6.666 em 2016, ante 5.167 casos no ano passado. Para Samuel Vida, professor da Faculdade de Direito da UFBA, coordenador do Programa Direito e Relações Raciais e membro do Afro Gabinete de Articulação Institucional e Jurídica, o Aganju, os mais de 16 anos dos sucessivos governos do PT na Bahia deram continuidade à mesma linha adotada nos governos carlistas, liderados pela oligarquia comandada pelo já falecido Antônio Carlos Magalhães, legitimando a violência policial.

Aplausos. Após chacinas policiais, o governador Jerônimo Rodrigues saiu em defesa da atuação da Polícia Militar – Imagem: Feijão Almeida/GOVBA

“Assistimos desde 2007, quando ­Jaques Wagner assumiu o primeiro governo, uma escalada nessa direção. Em vários momentos tivemos reuniões com Wagner, depois com Rui Costa, questionando as escolhas, apontando outros caminhos, sugerindo outras possibilidades. Algumas políticas foram adotadas na contramão de tudo que foi historicamente defendido pelo PT na Bahia. Uma delas foi desativar um grupo de repressão ao crime organizado”, lembra Vida, destacando que, à época, a principal modalidade de violência que atingia a população negra era produzida por grupos de extermínio. “Uma das primeiras medidas de Wagner foi acabar com esse grupo e remeter a apuração dos crimes de extermínio para uma delegacia especializada em proteção à vida, que acabou por diluir esse trabalho”, diz o pesquisador, ressaltando que o governo Wagner nem sequer trocou o Comando da Polícia Militar que herdou do seu antecessor, o governador Paulo Souto, mantendo a mesma linha de atuação policial.

Um dos episódios mais relevantes que marcam a violência policial na Bahia nas gestões petistas é a Chacina Cabula, de 2015, que deixou o saldo de 12 mortos. Na época, o então governador comparou a atuação dos policiais a um jogo de futebol. “É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro.” A justificativa, como em outros casos, foi de que as vítimas tinham envolvimento com o crime organizado, alegação depois desmentida. “Dos 12 jovens, somente um deles tinha uma passagem policial por briga no Carnaval, algo que pode acontecer com qualquer baiano”, denuncia Vida, destacando que o ex-governador apoiou o pacote anticrime de Sergio Moro, a propor o chamado excludente de ilicitude, espécie de carta branca à polícia para matar.

Terceiro governador petista a comandar o estado nos últimos anos, Jerônimo Rodrigues saiu em defesa da polícia quando uma equipe de jornalistas fazia uma reportagem sobre a violência na Bahia. “Respeitem a nossa Polícia Militar, o que vocês estão fazendo é irresponsabilidade”, disse. “Há uma situação muito esquisita na Bahia, porque temos um governo do PT desde 2007 que negligencia a segurança pública de uma forma geral, mas em particular a violência policial. Se fosse um governo bolsonarista, seria completamente natural, mas, realmente, num governo de esquerda é uma situação trágica”, desabafa o cineasta Bernard ­Attal, diretor do filme O Descanso, que relata a história de mais uma vítima da polícia baiana. O documentário de 2014 narra o desaparecimento de Geovane, um jovem negro da periferia de Salvador, que foi abordado e morto pela PM baiana.

“Se fosse um governo bolsonarista, seria natural, mas num de esquerda é uma situação trágica”, desabafa o cineasta Bernard Attal

“A polícia baiana tem um procedimento específico de atuação em determinados espaços urbanos, que é direcionado a certos setores da população, a subcidadania. Nesses espaços, a abordagem policial pode se iniciar com a muito comum agressão verbal e culminar com a eliminação física. O policiamento é militarizado, ostensivo e belicoso, aspectos que na atividade policial têm sido os responsáveis pela maior letalidade”, analisa o so­ciólogo Antônio Lima, autor dos livros Rastros de Fogo e Sangue e Rotas Alteradas.

Mariana Possas, professora do Departamento de Sociologia da UFBA e pesquisadora do Laboratório de Estudos Sobre Crime e Sociedade, classifica como um “grande mal-entendido” o discurso de que o papel da polícia é combater crime, ainda que se produza violência, narrativa que, muitas vezes, é adotada também por governadores. “É, no fundo, não mexer na estrutura. E mexer estruturalmente significa produzir algum tipo de controle, observar e fiscalizar o serviço da polícia, exigindo, por exemplo, como meta de desempenho, a redução da letalidade”, afirma. “Somos um país recordista de homicídios, que também tem a polícia mais violenta. Esses números fazem parte de um mesmo fenômeno. A gente olha a polícia combater determinadas facções e acha que isso vai reduzir os homicídios, quando, na verdade, só aumenta”, acrescenta Possas, lembrando que, para pensar no problema da violência na Bahia, assim como no País como um todo, é preciso repensar o papel da polícia na sociedade.

O cientista político Cláudio André de Souza, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), reconhece os elevados índices de violência na Bahia, mas explica que não se trata de um problema localizado e cita o estímulo à violência durante os quatro anos do governo Bolsonaro. Referindo-se ao assassinato de Mãe Bernadete, ele afirma existir um clima de impunidade que impera no País, mais um incentivo para os criminosos. “Há uma perseguição, um cenário que se acirrou ainda mais por conta do bolsonarismo, que legitimava a ocupação irregular da terra e sua exploração comercial de maneira danosa.”

João Jorge, presidente da Fundação Palmares, lembra que o histórico de violência na Bahia perpassa todos os governos, mas que teve uma escalada principalmente na era Bolsonaro. “Depois de ouvir o presidente falar tanto em armas e propagar a violência, olha aí o preço que a sociedade brasileira está pagando. Estamos nos matando. A Bahia virou uma máquina de matar pessoas pretas e pobres. Nos bairros ‘nobres’, nunca vemos gente sendo atingida por uma bala perdida, parece que há um escudo invisível.”

Ex-governadores. Rui Costa e Jaques Wagner também minimizaram a violência policial – Imagem: Redes sociais

A secretária de Promoção da Igualdade Racial da Bahia, Ângela Guimarães, também atribui o aumento da violência ao governo Bolsonaro e diz não haver resposta fácil, nem mágica, para resolver os ataques contra a população negra e periférica no estado. “Atuamos por meio de campanhas de enfrentamento ao racismo no sentido de transformar um consciente coletivo, porque, na prática, na visão de grande parte da população, ainda vigora uma compreensão de que violência se combate com mais violência”, lamenta. “A gente combate violência com distribuição de renda, com geração de emprego, com educação de qualidade, com acesso a equipamentos públicos, de saúde, de cultura, de esporte e de lazer.”

Pressionado, Jerônimo Rodrigues tenta minimizar o desgaste e vem apresentando medidas para reduzir as estatísticas de violência. Uma delas é a implantação de câmeras nas fardas dos policiais, recurso que deve ser instalado já nos próximos meses. Nas últimas semanas, ele tem participado de eventos para entrega de viaturas e armamento às corporações. “Estamos entregando viaturas para toda a Bahia, algumas semiblindadas. Estamos fazendo agenda constante de segurança pública”, disse o governador na terça-feira 22, em evento para a entrega de veículos e equipamentos no município de Teixeira de Freitas. •

Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de à brasileira.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Rastro de sangue’

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