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Programas policialescos e perfis nas redes sociais sustentam suposta guerra às drogas

O genocídio da juventude negra, promovido pelo Estado, é justificado por programas de TV e postagens na internet

Moradores protestam contra uma operação policial que matou 16 pessoas no Guarujá. Foto: Allison Sales / AFP
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Por Mabel Dias, Iago Vernek e Alex Hercog*

No último sábado 12, novamente, uma bala perdida achou o corpo de uma criança, resultando na morte de uma menina de cinco anos e de um adolescente de 17, após operação da Polícia Militar na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Na semana anterior, Thiago Flausino, de 13 anos, também teve sua vida interrompida em decorrência de uma ação da polícia na Cidade de Deus. Nas redes sociais, a corporação divulgou que “um criminoso ficou ferido ao entrar em confronto” com os policiais.

Thiago Flausino, 13, Eloah, 5, Gabriel Silva, 10, João Pedro Mattos, 14, Agatha Felix, 8, Kauan Alves, 16, Matheus, 19, são personagens de uma história de terror que, infelizmente, é realidade nas favelas e comunidades pobres do país. Conforme os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2017 e 2019, policiais mataram 2.215 crianças e adolescentes em 15 estados brasileiros. A dor dos familiares e os protestos de moradores e amigos não parecem suficientes, porém, para barrar esse genocídio.

No início de agosto, uma operação policial deflagrada após a morte de um soldado da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) no Guarujá (SP) resultou na prisão de 160 pessoas e 16 mortes, segundo informações da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP).

Relatos e vídeos de moradores da baixada santista, veiculados nas redes sociais, demonstram a extrema violência da polícia. Apesar do saldo aterrador de óbitos, o governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), disse estar “extremamente satisfeito” e que “não houve excesso na operação”. Em sua gestão, ainda no primeiro semestre de 2023, as mortes em consequência de intervenções policiais subiram em 26% com relação ao mesmo período do ano passado. Ressalta-se ainda o fato de Tarcísio ter sido eleito sob uma plataforma eleitoral que incentiva a repressão policial.

A PM da Bahia irá matar Daniel Alves, Geddel e o ex-secretário de Segurança?

Nesta mesma toada segue o Governo do Estado da Bahia. Num discurso falacioso de “guerra às drogas” ou “combate aos criminosos”, as forças de segurança pública têm atuado numa lógica de extermínio em que os inimigos a serem aniquilados são os mesmos. A pergunta lançada acima é uma provocação à tentativa das autoridades baianas de justificar o injustificável.

É de conhecimento público que o ex-jogador baiano está atualmente preso na Espanha enquanto responde a uma acusação de estupro, cujos indícios fizeram a Justiça espanhola negar diversos pedidos de soltura – a expectativa é que a sentença saia ainda esse ano. Já Geddel (MDB) ficou nacionalmente conhecido por ser preso após operação policial que localizou 51 milhões de reais escondidos em um bunker em seu apartamento. Apesar de ser condenado a 14 anos e 10 meses de prisão por lavagem de dinheiro e associação criminosa, o ex-deputado ficou menos de três anos preso e desde 2020 está sob prisão domiciliar no seu luxuoso apartamento em um dos metros quadrados mais caros de Salvador.

Já Maurício Barbosa foi secretário de Segurança Pública da Bahia durante o governo de Rui Costa (PT) e foi exonerado do cargo após a Polícia Federal deflagrar a Operação Faroeste. As investigações identificaram a suspeita de um esquema de venda de sentenças por juízes e desembargadores do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). A Procuradoria-Geral da República chegou a pedir a sua prisão temporária, alegando que ele ocupava um “papel central na garantia da impunidade”. O pedido foi negado e o ex-secretário segue em liberdade. Alguns juízes envolvidos neste esquema foram “punidos” pelo TJ-BA com a “pena” de aposentadoria compulsória. Durante o ano em que a desembargadora Maria do Socorro ficou presa acusada de vender sentenças, ela chegou a receber 459 mil reais em salários e benefícios.

A pergunta que lançamos acima busca entender os critérios para assassinatos promovidos por policiais militares da Bahia. Recentemente, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgou dados em que a PM baiana superou a do Rio de Janeiro e se tornou “a polícia que mais mata no Brasil”. Foram 1.464 pessoas assassinadas em 2022 somente em intervenções oficiais, uma alta de mais de 300% em relação aos últimos sete anos.

Questionada pela imprensa, a Secretaria de Segurança da Bahia refutou os dados, justificando que não põe na conta as mortes contra “homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos”. Ou seja, tal como no nazismo, há uma separação social daqueles que são “matáveis” em relação aos que devem ser tratados de acordo com a lei e o sistema de Justiça. No caso do partido alemão, judeus, negros e homossexuais foram as pessoas “matáveis” por, segundo os nazistas, pertencerem a uma raça inferior.

No dia 23 de julho deste ano, Gabriel Silva da Conceição Júnior, uma criança negra e periférica, de 10 anos, foi morto em uma operação policial em Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador. Seus familiares exigem Justiça. Mas se quiserem se vingar, de acordo com o raciocínio do governador paulista, eles estariam autorizados a matar os policiais responsáveis?

Na Bahia, a fala da Secretaria de Segurança e o silêncio do governador já dizem muito. O projeto político de guerra aos pobres, adotado em governos anteriores, tem sido considerado um sucesso. Não à toa, a negligência, o incentivo ou a permissão para matar levou a Bahia ao topo do ranking e fez o estado receber o carimbo de ter a “polícia que mais mata no Brasil”.

Em meio à complexidade do tema, que envolve o confronto entre o crime organizado e as forças de segurança pública, mas também o luto de famílias e o medo instaurado em comunidades inteiras, a resposta do Estado tem sido de promover o genocídio da juventude preta e periférica.

Tráfico de drogas e a descriminalização da maconha

Todo esse genocídio promovido pelo Estado brasileiro é justificado por uma suposta “guerra às drogas”. O discurso é usado para encobrir uma política de estado que encarcera e mata a população preta e periférica. Como alertamos em artigo publicado no Alma Preta, desde o início da vigência da nova lei de drogas em 2006, até 2016, a população carcerária subiu 81% no Brasil, sendo que um a cada três presos respondia por tráfico de drogas. No caso das mulheres a taxa é ainda maior: dois terços. Apenas no estado de São Paulo, segundo o Ministério da Justiça e Secretaria da Administração Penitenciária, o número de presos por tráfico de drogas cresceu 508% em 12 anos.

Recentemente, o STF voltou a julgar uma ação de 2011 que pode mudar o curso da história e descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal. Após três votos a favor – em julgamento paralisado desde 2015 – Alexandre de Moraes acompanhou o relator do caso, Gilmar Mendes, dizendo que “a própria cultura de persecução penal acabou transformando uma lei que veio para melhorar a situação do usuário, piorando a situação”. Moraes defendeu a fixação de um limite de 25 a 60 gramas ou seis plantas fêmeas para diferenciar o tráfico do consumo, o que pode ter um efeito de soltura de pessoas presas com pouca quantidade da droga.

Em seu voto, Alexandre de Moraes apontou que “o branco para ser considerado traficante deve ter 80% a mais de drogas do que o preto ou pardo”. Entretanto, chama atenção o discurso do ministro, que ascendeu ao STF após longa carreira no Ministério Público e em órgãos ligados ao governo tucano em São Paulo, sendo inclusive secretário de Segurança Pública do estado entre 2014 e 2016, nomeado por Geraldo Alckmin, à época chefe do executivo paulistano. Seria uma mudança de postura do magistrado, que já foi filmado cortando plantas de maconha no Paraguai?

Se a “guerra às drogas”, antes liderada e agora criticada por Moraes, não reduziu os danos sociais e o consumo, foi absolutamente responsável pelo aumento da violência, sobretudo nas periferias das grandes cidades. Nesse sentido, dados do Atlas da Violência apontam para uma correlação entre o encarceramento em massa e a elevação nos índices de homicídio. Em 2022, foram 40,8 mil mortes violentas em todo o país, sendo que, nos últimos 10 anos, um brasileiro negro teve, pelo menos, o dobro de chance de morrer violentamente do que um não-negro.

Importa lembrar os massacres da Candelária e Vigário Geral em 1993, no Rio de Janeiro (RJ), a invasão do presídio Urso Velho no ano de 2002, em Porto Velho (RO), além das chacinas na cidade de Guaíra (PR), em 2008, nos municípios de Nova Iguaçu/Queimados (RJ) e no bairro de Padre Miguel, também no Rio de Janeiro, em 2005 e 2009. Outros casos recentes se deram em Curió e Cajazeiras, na cidade de Fortaleza (CE), nos anos de 2015 e 2018. De acordo com levantamento feito pelo Grupo de Estudos Novos Ilegalismos, das 305 chacinas ocorridas no país entre agosto de 2016 e 2021, com 1.184 mortos, 223 foram consequentes de “ações policiais” (878 mortos).

Violência da informação e os programas policialescos

Todo este cenário de encarceramento em massa e extermínio da população negra brasileira é respaldado pelos programas policialescos na TV, os quais ocupam boa parte da programação das principais emissoras brasileiras. Em seus discursos, apresentadores e repórteres exaltam o jargão “bandido bom, é bandido morto” e comemoram quando o CPF de algum suspeito é “cancelado”, ou seja, quando um jovem negro, pobre e periférico é morto em razão de ação policial, amplificando uma frase utilizada por grupos milicianos. Na operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, no Jacarezinho, em 2019, os policialescos aplaudiram a ação que classificaram como um “sucesso”, que resultou em 29 mortos.

Moraes, ao defender a descriminalização do porte de maconha, não foi bem visto por aqueles que fazem os programas policialescos. Um destes apresentadores, na Paraíba, candidato a cargos políticos devido à visibilidade que alcançou na TV e no rádio, divulgou em suas redes sociais um vídeo afirmando que a ação do ministro e do STF “estava colocando em risco a vida dos jovens do Brasil e que a maconha era a porta de entrada para outras drogas.” Um discurso desinformativo e sem base científica.

Uma parte considerável das prisões que são exibidas nestes programas dizem respeito ao porte de cannabis. Ao chegar em uma delegacia, estas pessoas, sobretudo pretas e pobres, sob a responsabilidade do Estado, são julgadas e condenadas pelos “policialescos”. Aliás, esta é uma das principais violações cometidas por estes programas, o desrespeito à “presunção de inocência” (art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal).

Faz parte do conteúdo destes programas a exaltação a penas mais severas – como se o Brasil não tivesse uma quantidade de leis suficientes para punir os crimes praticados. Entre as pautas defendidas pelos policialescos também está a pena de morte e a redução da maioridade penal. Como aponta a pesquisadora Ticianne Perdigão, em sua tese “Fiscalização estatal sobre o conteúdo televisivo: violação de direitos em programas policiais na televisão”, os “policialescos” oferecem soluções simplistas para problemas complexos, como a violência urbana.

Na prática, os policialescos encontraram um modelo de negócios muito rentável porque, além de gerarem vultosas somas de lucro para emissoras e capital político para apresentadores, ainda agem como se fossem imunes à fiscalização do Estado, não parecem reconhecer limites éticos, morais ou humanitários, tampouco os legais. Com a ascensão da internet, assistimos a proliferação de discurso de ódio e desinformação, revitimizando os alvos das operações.Têm ganhado ainda repercussão os perfis de agentes públicos que, em exercício de sua profissão, promovem verdadeiros realities shows durante as operações. Na lógica de monetização, agentes fardados viram youtubers, tik tokers e se portam como “justiceiros”. Essa é uma das situações que aguardam regulação pelo Projeto de Lei 2630, conhecido como PL das Fake News, que aguarda para voltar à pauta da Câmara dos Deputados nos próximos dias.

Às mães e famílias enlutadas, resta, após a morte de seus filhos, lutar ainda contra a propagação de discurso de ódio e desinformação, seja nas redes sociais, seja nos policialescos. O que se vê é um potente acordo comercial e político que sustenta uma fake guerra às drogas enquanto propagandeia a brutalidade do braço armado do Estado. À medida que o sangue preto corre no chão, as TVs celebram e lucram com a violação de direitos, acompanhadas das plataformas de redes sociais e sua lógica de monetização. Já não nos resta perguntar até quando, mas organizar um basta.

*Mabel Dias, Iago Vernek e Alex Hercog são associados do Intervozes

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