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Por trás da fumaça

Enquanto a polícia brinca de gato e rato com os frequentadores da cracolândia, os crimes disparam na região e atiçam os milicianos

Ao menos mil dependentes químicos persistem na cena de uso. Nas últimas semanas, eles passaram a retaliar as ações de dispersão da polícia com saques e depredações – Imagem: Nelson Almeida/AFP e Amauri Nehn/Brazil Photo Press/AFP
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No rescaldo das violentas intervenções das forças de segurança para dispersar os frequentadores da Cracolândia, os dependentes químicos passaram, nas últimas semanas, a retaliar com arrastões em comércios e depredação de veículos, até mesmo de viaturas policiais. A prefeitura e o governo do estado, sócios na cruzada repressiva, atribuem os ataques ao alegado êxito no combate ao narcotráfico, um incômodo para os líderes do crime organizado. Já os usuários de drogas, protagonistas dos saques, dizem estar cansados de apanhar à toa, sem reação. Não importa quem tem razão. Esse conflito permanente só aumenta a sensação de insegurança da população, acuada por uma onda de violência jamais vista naquela área.

Enquanto a polícia brinca de gato e rato com os dependentes químicos, os crimes aumentaram de forma assustadora nos dois distritos policiais que cobrem a região. Desde a deflagração da Operação Caronte, em junho de 2021, os roubos triplicaram e os furtos cresceram 244% no perímetro do 3º DP, de Campos Elísios. Na área aos cuidados do 77º DP, de Santa Cecília, os roubos tiveram alta de 89% e os furtos, 41,5%, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do estado, que divulga as ocorrências mensais de cada delegacia.

No perímetro do 3º DP, de Campos Elíseos, os roubos triplicaram e os furtos cresceram 244% em dois anos

Quem acompanha o problema de perto garante: a onda de assaltos não é obra dos frequentadores da Cracolândia, mas de quadrilhas especializadas em tomar celulares e raspar as contas bancárias das vítimas pelos aplicativos do aparelho. Há tempos os moradores se queixam da atuação da temida gangue da bicicleta. A polícia paulista parece, porém, ocupada demais com a urgente tarefa de conduzir a procissão de dependentes envoltos em cobertores de uma rua para outra. Não bastasse, milicianos passaram a assediar os comerciantes da região com a cobrança de uma “taxa de proteção”.

A prova cabal do fracasso da política de dispersão dos usuários, inaugurada por Gilberto Kassab em 2012 e replicada por sucessivos governos, foi a confissão feita pelo governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, na terça-feira 18. Ele admitiu o que a prefeitura cogita há tempos, permitir a reconcentração dos usuários sob a ponte Governador Orestes Quércia, conhecida como Estaiadinha, no Bom Retiro. “Lá, eu consigo deixá-los um pouco mais afastados da área residencial e da área comercial. Vamos ver se a estratégia vai dar certo.” Após a repercussão negativa, o prefeito Ricardo Nunes, do MDB, disse que houve um “mal-entendido”. O atendimento aos usuários será direcionado ao Bom Retiro, mas o fluxo “tem dinâmica própria”, não há como transferi-lo.

Trata-se de mais uma iniciativa fadada ao fracasso, avalia Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Desde os anos 1980, rememora a urbanista, existem iniciativas do governo do estado e da prefeitura para abrir uma nova frente de expansão imobiliária na região da Luz, o que não ocorreu por uma série de fatores, a começar pela estrutura fundiária do local, bastante fragmentada. A presença de dependentes químicos, de pessoas em situação de rua e de trabalhadores empobrecidos, que viviam em pensões e cortiços, sempre foi vista como empecilho para o projeto. Emerge, então, o conveniente discurso da “guerra às drogas”, espécie de carta branca para a polícia agir à margem da lei na expulsão dos indesejáveis. “Mesmo com todo o aparato repressivo, a política de dispersão fracassou, só fragmentou os grupos de usuários, que depois voltam a se reagrupar”, observa Rolnik. “Agora, o governador fala em levar essas pessoas para outro lugar, mas não com o objetivo de tratá-las. A ideia é varrer o problema para debaixo da ponte, literalmente.”

Quem circula pela região espanta-se com a quantidade de comércios fechados. Até mesmo as lojas da Rua Santa Ifigênia, tradicional ponto de comércio de eletrônicos, estão sucumbindo. “Quando os usuá­rios estavam concentrados, todo mundo sabia onde estavam, eventualmente surgia algum problema, mas nada comparado com o que vivemos hoje. Essa horda de gente sendo levada para lá e para cá assusta as pessoas”, desabafa José Roberto ­Cheda, dono de lojas de equipamentos de som desde 1975. Segundo ele, o policiamento aumentou, mas não intimida mais os bandidos. “Fui o primeiro lojista a contratar segurança particular, há mais de 30 anos.”

Fonte: Dados Estatísticos do Estado de São Paulo, Secretaria de Segurança Pública. As ocorrências mensais por Distrito Policial podem ser consultadas no link: https://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/Pesquisa.aspx.

Aproveitando-se do clima de insegurança, milicianos passaram a competir com os serviços privados de segurança. Após uma denúncia da Controladoria-Geral do Município, o Ministério Público paulista abriu uma investigação para apurar a conduta do guarda civil metropolitano Elisson Assis, apontado como chefe de uma milícia que vendia proteção a comerciantes. Outros seis agentes da corporação foram afastados de suas funções por suspeita de envolvimento. Com a condição de ter a identidade preservada, um segurança particular confirmou a atuação dos concorrentes fardados. “Outro dia, quando aquele GCM caiu em flagrante, armando esquema de extorsão, a turma dele veio para cima de mim”, conta. “Tentaram me levar preso para dar um apavoro.”

Em um ponto do fluxo mais afastado, com poucos usuários, um deles aproxima-se da repórter de CartaCapital porque havia sido alertado sobre a presença de “gente estranha”. “Aqui é perigoso, você está na elite do crack, onde estão as maiores pedras, os traficantes mais respeitados, é melhor dar o fora”, ameaçou. Depois do primeiro contato conturbado, topou uma conversa, longe da vista dos demais. Durante a caminhada pela Rua dos Gusmões, o rapaz cumprimentou vários funcionários de lojas. “Aquele ali é segurança, aquele lá é da polícia, ganha por fora”, entrega um a um. “Esta guerra é interessante para as polícias, cada qual quer dominar uma área e faturar”. Segundo ele, a “limpeza” custa caro aos proprietários, mas para o tráfico nada mudou. “Agora, os traficantes só têm mais mulas.”

Foi numa dessas aventuras que Letícia de Souza da Silva “caiu”. “Fui presa passando dez pedras, mas a polícia queria mesmo era a traficante, que se safou”, explica. Levada para o Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha, dois dias depois foi liberada via pagamento de fiança, e voltou para a Cracolândia, onde vive há quase oito anos. Diferentemente de outros usuários, ela é avessa à convivência com o grupo. Prefere manter-se afastada, em ruas próximas das maiores concentrações. “Se estou sozinha, é suave. Mas se tem mais dois ou três comigo, a polícia já vem dar enquadro. Como se eles não soubessem quem são os traficantes.”

Enquanto Freitas silencia diante do fracasso da gestão da segurança pública no Centro de São Paulo, o prefeito Nunes parece redobrar a aposta na repressão. Após ser rebaixado de posto na administração municipal, Alexis Vargas, então secretário de Projetos Estratégicos da prefeitura e responsável pela coordenação dos trabalhos na Cracolândia, pediu demissão. Em seu lugar, Nunes escalou o linha-dura ­Edsom Ortega, que chegou a proibir a distribuição de marmitas a pessoas em situação de rua quando comandou a pasta de Segurança Urbana na gestão de Kassab.

Tarcísio de Freitas admite a intenção de varrer os dependentes químicos para debaixo de uma ponte

Um ano atrás, Vargas defendia com afinco a dispersão dos usuários da Cracolândia para favorecer o “tratamento humanitário prestado pela prefeitura”. O crime organizado, argumentou em artigo publicado na Folha de S.Paulo, não comandava apenas a distribuição de drogas na região, também estava por trás de estupros e homicídios cometidos no fluxo. Segundo o secretário, a abordagem em grupos menores seria mais segura para profissionais da saúde e da assistência social.

Por outro lado, para dispersar os usuários, policiais e agentes da GCM sempre primaram pelo uso excessivo da força, observa o psiquiatra Leon Garcia, que atua no Centro de Atenção Psicossocial da Sé, com um público semelhante ao da Cracolândia. “No ano passado, um homem foi baleado e morto em meio às ações de dispersão. Há muitos relatos e registros em vídeo de ações violentas da polícia, inclusive contra ativistas que atuam com programas de redução de danos”, lembra. “Essa atuação repressiva esgarça todos os vínculos que aqueles indivíduos poderiam ter com políticas públicas do Estado. Eles ficam desconfiados, arredios. É um contrassenso. Essas operações ocorrem há mais de dez anos e nunca deram certo.”

De fato, a Operação Caronte – nome emprestado do barqueiro de Hades, que segundo a mitologia grega carregava a alma dos mortos – é nitidamente inspirada na fracassada Operação Sufoco, levada a cabo por Kassab em 2012. Para forçar os frequentadores da Cracolândia a aceitarem a internação, era necessário impor “dor e sofrimento”, dizia o então prefeito, seduzido com a ideia de “revitalizar” o bairro da Luz. À época, a Cracolândia estava circunscrita ao quarteirão compreendido entre a Rua Helvétia e as alamedas Dino Bueno e Cleveland. Somente a primeira parte da promessa foi cumprida: a Defensoria Pública colecionou denúncias de abusos cometidos pelos policiais. Mas as violentas operações só espalharam o “fluxo” pela região central da cidade, e depois os usuários se reagruparam.

Os novos moradores da região da Luz não suportam mais o clima de guerra permanente. O governo do estado e a prefeitura são sócios na cruzada repressiva aos usuários de drogas

Ao assumir a prefeitura dois anos depois, o petista Fernando Haddad lançou o programa De Braços Abertos, com uma perspectiva radicalmente distinta. Inspirada em exitosas experiências internacionais do housing first, política pública que prevê a oferta de moradia digna em primeiro lugar, a iniciativa alocou os dependentes químicos em quartos de hotéis e pensões no Centro, além de ofertar vagas de trabalho em serviços de zeladoria, como varrição de ruas. Durou pouco. ­Haddad não conseguiu se reeleger e, em 2017, o tucano João Doria retomou a política de dispersão dos usuários, com a demolição das antigas pensões que os abrigavam. À época, o prefeito chegou a celebrar o “fim da Cracolândia”, que ao cabo se reagrupou na Praça Princesa Isabel e voltou a aglomerar milhares de dependentes químicos.

“Os críticos dizem: ‘Ah, mas o De Braços Abertos também não resolveu nada’. Na verdade, ele não teve tempo de resolver. Para implantar um programa desses, você demora sete, oito anos”, pondera o psiquiatra Dartiu Xavier, professor e pesquisador da Unifesp, que trabalha há mais de 40 anos com dependentes químicos. “À época, vi pessoas interromperem o uso de crack ou reduzirem muito o consumo só por ter uma vaga em pensão e uma atividade laboral. Imagine a força disso: um dependente abandonar o vício sem passar por uma consulta médica.”

Mas nem tudo eram flores no programa de Haddad. Parte das vagas em hotéis e pensões, descobriu-se mais tarde, foi sublocada pelos dependentes químicos. Além disso, constatou-se a presença do tráfico de drogas e da prostituição em algumas unidades, lembra Clarice Madruga, pesquisadora da Unifesp e coordenadora do Levantamento das Cenas de Uso das Capitais, o Lecuca. “O housing first, como qualquer outro programa de moradia para dependentes, tem como contrapartida a adesão ao tratamento. Em vários países são realizados testes toxicológicos para identificar eventuais recaídas e pensar em estratégias para evitá-las. Esse monitoramento é importante para orientar o trabalho terapêutico e motivacional. Já o De Braços Abertos não exigia qualquer compromisso dos usuários.”

Garcia, que à época chefiava a Secretaria de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça, observa que houve uma evolução dos hotéis sociais ao longo da gestão de Haddad. “No último ano, todos eles tinham uma equipe técnica. Um deles, o de maior número de vagas, contava até com um GCM à paisana na portaria para impedir a entrada do tráfico e da prostituição”, diz. “A única condição colocada aos moradores era a visita periódica de um agente de saúde e um agente social.”

Diante do cenário de guerra no Centro da cidade, Nunes passou a vender as “internações compulsórias” como solução. Pura bravata, não compete a políticos definir quem deve ou não ser internado. Tanto a internação involuntária, a pedido de um familiar, quanto a internação compulsória, por determinação judicial, dependem do aval de um médico, a quem cabe avaliar a real necessidade da medida. Além disso, a própria prefeitura informou, em resposta aos questionamentos de CartaCapital, que foram feitos 910 encaminhamentos para internação voluntária nos últimos 12 meses. Ou seja, a política de impor “dor e sofrimento” aos frequentadores da Cracolândia parece ter dado algum resultado, com dependentes procurando tratamento por decisão própria.

A administração municipal não soube, porém, informar quantos desses pacientes receberam alta, quantos voltaram a viver nas ruas e, mais importante, quantos retornaram ao vício. A razão é simples: ninguém monitora isso. Segundo especialistas, nem sequer é possível rastrear os prontuários, pois muitos pacientes estão indocumentados e usam nomes falsos.

O cerne da questão é que as internações são pouco efetivas, observa Xavier. “Existem vários estudos sobre esse tema, em lugares diferentes, com populações diferentes, é até difícil compará-los. Mas todos indicam um porcentual de recaída altíssimo, superior a 90%, em até três meses após a alta. Em algumas pesquisas, essa taxa chegou a 95%. No caso do crack, não há sequer uma diferença significativa do êxito de internações voluntárias ou forçadas”, observa. “Por que isso ocorre? O indivíduo é retirado do ambiente dele, colocado numa clínica ou hospital psiquiátrico. Enquanto estiver lá, não fará uso da droga, até por estar em cárcere médico. Mas, ao receber alta, se retornar para a situação de miséria e exclusão social em que vivia, dificilmente ele vai se manter sóbrio.”

Madruga acrescenta que o acolhimento em comunidades terapêuticas não pode ser confundido com internação, até porque elas não são reconhecidas como equipamentos de saúde, e sim de acolhimento social, que oferece um local de moradia de longa permanência, com foco na reinserção social após a fase inicial de tratamento, que seria a desintoxicação. “A política atual de regulação exige que esses equipamentos recebam pacientes sem condições clínicas de saúde que exijam monitoramento médico, e sugere a manutenção do acompanhamento pela unidade básica de saúde ou Caps do seu território.”

Por trás da “guerra às drogas” está o interesse de abrir nova frente de expansão imobiliária, alerta Rolnik

Essas instituições continuam, porém, malvistas por parte dos profissionais da saúde após fiscalizações do Conselho Federal de Psicologia apontarem toda a sorte de abusos, incluindo trabalhos forçados, privação de liberdade, contenção química dos internos e agressões físicas. “Uma resolução da Anvisa, a RDC 29, de 2011, estabeleceu parâmetros para a atuação desses equipamentos. No estado de São Paulo, a maior parte deles segue rigorosamente a lei, a ponto de reivindicar a definição de ‘Comunidades Terapêuticas Legalmente Constituídas’, para se distinguir daquelas que promovem esses horrores. Parece-me uma alternativa interessante, desde que o Poder Público as fiscalize com rigor.”

O enrosco é que boa parte dessas comunidades terapêuticas está em bairros afastados ou em cidades do interior. “Felizmente, agora, a prefeitura passou a investir em hotéis sociais na região central. Não faz mesmo sentido empurrar essas pessoas para a periferia. Elas relutam em sair para longe, já estão vinculados ao território”, diz Garcia.

Enquanto Nunes celebra o fim das grandes aglomerações da Cracolândia, indicador que flutua ao sabor das operações policiais na região, Madruga diz ser mais conveniente analisar a taxa de influxo, isto é, de novos frequentadores da cena de uso. “Em 2017, após aquela mega­operação do Doria, o número de usuários despencou de cerca de 2 mil para 200. À época, especulou-se que aquele seria o núcleo duro, que jamais iria abandonar a região, mas fomos a campo e constatamos que a maioria deles era de novos frequentadores.” De acordo com o Lecuca, a taxa de influxo, que chegou a 46% em 2016, caiu para 20% no ano passado. “Ainda assim, é um porcentual altíssimo. Se o fluxo, hoje, tem cerca de mil usuários, pode ganhar 200 novos frequentadores até o fim do ano. Precisamos reforçar o trabalho de prevenção em todos os níveis, tanto para evitar o consumo de adolescentes, que aumenta as chances que a pessoa desenvolva transtornos aditivos mais graves, quanto prevenção secundária, que seria a intervenção precoce em casos em que já se identifica o abuso ou a dependência dentro das UBSs e evita que agrave a ponto de levar uma pessoa a mudar para uma cena de uso. Não faz sentido esperar o agravamento do quadro clínico para intervir.” •

Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.

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