Letícia Cesarino

Antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de 'O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital'

Opinião

Janonismo cultural: não há guerra sem riscos

Qualquer guerrilha digital deve levar em conta a topologia específica da internet

Lula e André Janones. Foto: Ricardo Stuckert
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Neste últimos anos pesquisando as dinâmicas digitais da direita bolsonarista, uma questão sempre aparecia: esta é uma estratégia que a esquerda pode (ou deve) reproduzir? Minha resposta costumava ir nesta direção: o campo progressista tem ainda muito terreno a ocupar nos campos de batalha digitais sem reproduzir à risca as táticas do inimigo.

Seria impossível, ou mesmo indesejável, fazê-lo – estas táticas implicam cruzar sérios limites éticos e até legais. Para os segmentos mais fundamentalistas do bolsonarismo, vale literalmente tudo, pois eles operam a política eleitoral numa chave de guerra espiritual onde, glosando Benjamin, nem os mortos estarão a salvo se o inimigo vencer.

Com o resultado do primeiro turno eleitoral e a confirmação de que haveria mais um mês de campanha, alguns resolveram botar em prática táticas digitais mais próximas da lógica de guerra. A primeira ofensiva veio logo, com a circulação de um vídeo de Bolsonaro num templo da maçonaria e, em seguida, uma fala do candidato afirmando que comeria carne humana. Trata-se de um experimento válido. Afinal, ambos os vídeos eram reais, e trabalhavam com estereótipos já presentes em segmentos à direita, como o evangélico.

O movimento foi rapidamente apelidado de “janonismo cultural”, devido à atuação mais agressiva do deputado André Janones que vinha, até então, operando uma versão moderada da guerra digital. Ao se interpor de forma mais visível nesta frente de batalha, o deputado mineiro pretende atuar como imã algorítmico à energia ofensiva do inimigo. 

Janones não pretende necessariamente “furar bolhas”, mas manter o inimigo ocupado, para que ele tenha que reagir ao invés de agir. Como, nos últimos quatro anos, os segmentos mais radicalizados do bolsonarismo se tornaram mundos invertidos impermeáveis a qualquer contestação ou evidência, a única forma de perturbá-los a partir do exterior é, de fato, “jogando o feitiço conta o feiticeiro”.

Muito seguidores de Janones passaram a mimetizar e defender o deputado nessa estratégia, inclusive quando ela resvalou em práticas que foram coibidas pelo TSE. O argumento é que, como as plataformas e instituições não estão controlando adequadamente a enxurrada de desinformação da extrema-direita, estão cansados de “apanhar” e não resta opção senão ocupar e nivelar o campo de batalha.

A direita bolsonarista tem a lógica da guerra – política, militar, espiritual – como seu núcleo organizador. Já a esquerda mantém o compromisso com a lógica política da democracia representativa

Em princípio, não discordo desses argumentos – inclusive, defendi pontos que vão em direção semelhante. Mas vejo nesse movimento pouca ponderação sobre possíveis riscos.

Primeiro, as redes não necessariamente vão se comportar como Janones prevê que elas façam. Todo influenciador opera um discurso performativo, ou seja, menos descreve e mais produz  realidades – no caso, induzir seguidores e inimigos a se comportem de uma certa forma. Os ambientes digitais de hoje, contud, são totalmente não-lineares – o que torna impossível prever efeitos de rede agregados. Não se pode descartar, inclusive, efeitos rebote.

É preciso, portanto, ir ponderando esses efeitos. Qualquer guerrilha digital deve levar em conta a topologia específica da internet, que é segmentada (no limite, cada usuário navega em uma internet diferente) e multi-camadas (das mais visíveis, nas redes sociais, às mais opacas, os aplicativos de mensagem).

A razão de ser da tática de guerrilha comunicacional é, justamente, agir de forma cifrada. O próprio bolsonarismo mantém essas camadas relativamente separadas – o presidente delega o trabalho mais “sujo” a usuários comuns ou influenciadores (visíveis ou camuflados), mantendo-se sempre dentro de uma margem de negabilidade plausível pela qual ele pode atuar de forma mais moderada ou radicalizada, a depender da situação.

Se não queremos reproduzir a falsa simetria entre esquerda e direita, há que se levar em conta esses nuances e os riscos aí implicados. Tratam-se de públicos, em essência, diferentes: a direita bolsonarista tem a lógica da guerra – política, militar, espiritual – como seu núcleo organizador. Já a esquerda mantém o compromisso com a lógica política da democracia representativa, e este é o núcleo organizador da frente democrática ampla que se agregou em torno da candidatura do ex-presidente Lula.

Numa guerra, não há avanços sem assumir riscos. Mas o maior risco desse tipo de guerra é o da captura pelo ponto de vista do inimigo. Quando isso ocorre, significa que ele venceu.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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