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Um assassinato tem dois lados? Para o bolsonarismo, sim

As redes bolsonaristas já começaram a “desmontar a narrativa” sobre o assassinato do petista Marcelo Arruda por um militante de seu campo

O guarda municipal Marcelo Arruda foi morto com dois tiros à queima roupa, enquanto comemorava seus 50 anos. Foto: Reprodução Facebook
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Mal haviam repercutido as primeiras notícias sobre o assassinato do guarda municipal Marcelo Arruda em Foz do Iguaçu, e as redes bolsonaristas já começavam a “desmontar a narrativa” sobre o caso. Canais de YouTube e sites noticiosos populares na direita, como o Jornal da Cidade Online e Terra Brasilis, afirmavam trazer a “verdade” dos fatos que não estaria sendo publicizada pela imprensa: que assassino e vítima já teriam um “histórico de agressões verbais”; que a esposa do assassino havia sido convidada para a festa; que Marcelo teria “iniciado a confusão” jogado pedras no adversário (em outra versão, ele teria jogado um copo de cerveja); que a vítima teria disparado mais tiros que o assassino; que Jorge Guaranho não havia sido socorrido pelos presentes, que teriam, ainda, o chutado e adulterado a cena do crime. 

O narrador de um desses vídeos, postado num canal bolsonarista de Foz do Iguaçu, afirmava assumir uma posição neutra, trazendo apenas os fatos “crus”. Para sustentar essa alegação, se apoiava no que supunha ser evidências transparentes: um áudio gravado por uma suposta testemunha do evento, e vídeos da cena do crime registrados por câmeras de segurança e celulares. Ao mesmo tempo em que relatava tais fatos com se fossem auto-evidentes e objetivos, para que os espectadores tirassem as próprias conclusões, afirmava lamentar e condenar o ocorrido. Destacava que a tragédia seria de responsabilidade exclusiva dos dois homens, não tendo nada a ver com o presidente Bolsonaro.

Diferente dos segmentos mais extremistas, os canais e influenciadores que se propõem “apenas” a levar ao usuário os fatos do “outro lado” operam sempre na ambiguidade

Este vídeo e outros conteúdos análogos circularam nos segmentos mais “moderados” do bolsonarismo, que são consistentemente tolerados por plataformas do mainstream como o YouTube. O modo como eles atuam para produzir “verdades” é diferente, mas complementar, ao dos segmentos mais radicalizados, ancorados em plataformas subterrâneas como os aplicativos de mensagens. Ele expressa padrões que são mais gerais e que se ligam ao modo como a internet tem alterado as formas de produção de verdades públicas, privilegiando, entre outros fatores, a percepção individual e imediata: vídeos e imagens do “fato em si”, testemunhos de “pessoas comuns”, responsabilização individual. 

Essa tendência geral se combina, nos públicos digitais bolsonaristas, com estratégias de empreendedorismo que são típicas de seus canais e influenciadores. Seu modelo de negócios envolve relatar, em primeira mão, supostas verdades que a “grande mídia” ou os “poderosos” não querem que o usuário comum conheça. Por isso, todos eles têm necessariamente um caráter conspiratório, ou seja, buscam revelar algum roteiro oculto que estaria sendo propositalmente escondido das pessoas comuns por elites midiáticas, políticas e/ou econômicas.

A “grande mídia” sempre figura como inimiga nessas narrativas conspiratórias, pois sem isso, esses influencers não teriam seu nicho de mercado, e talvez sequer existissem.

Diferente dos segmentos mais extremistas do bolsonarismo, os canais e influenciadores que se propõem “apenas” a levar ao usuário os fatos do “outro lado” operam sempre na ambiguidade, e em dois níveis comunicativos: um do conteúdo em si, que alegam ser neutro, e um meta-comunicativo e indireto, que influencia a própria integração cognitiva da “verdade” de maneiras que beneficiam o bolsonarismo. Eles transmitem a mensagem bolsonarista nos termos do que a literatura chama de negabilidade plausível – uma característica também dos enunciados do presidente Bolsonaro. Ao oscilar entre os dois níveis, essa comunicação impede que se trace causalidades lineares, e portanto responsabilização direta, pelo que esteja sendo dito, de modo que sempre sobre uma margem para que emissor possa, retrospectivamente, negá-lo. 

A internet tem alterado as formas de produção de verdades públicas, privilegiando, entre outros fatores, a percepção individual e imediata

Essa estratégia discursiva, que é tanto tática quanto espontânea, se aproveita da circularidade causal que é própria dos atuais ambientes cibernéticos. Neles, é mais difícil estabelecer de modo linear o que é causa e efeito, agente e paciente, original e cópia, do que nas mídias pré-digitais. Embora Marcelo não seja diretamente acusado de ser o responsável pela própria morte, a “revelação” de “fatos ocultados” aumenta a equiprobabilidade, ou a entropia informacional, em torno do evento que levou à sua trágica morte.

Embora o narrador do vídeo continuasse repetindo que “nada justifica” a violência, o modo como ele estruturou a narrativa sobre como ela ocorreu – seu storytelling – só incluía “fatos” que induziam à inversão de causalidades: responsabilização da vítima e vitimização do assassino. Foi a esposa de Marcelo quem convidou a esposa do assassino; foi ele quem começou as provocações; quem atacou com pedras (ou cerveja); quem disparou mais vezes; foram seus convidados que omitiram socorro e agrediram Jorge. Não obstante, o espectador é levado a crer que, apenas avaliando os fatos de modo objetivo, chegaria às próprias conclusões por um julgamento individual e autônomo.

Todos esses “fatos alternativos” podem, em tese, ter acontecido. Porém, como mostram longas linhagens em campos como as ciências da cognição e os estudos sociais da tecnociência, fatos crus não existem, ou, se existem, não podem ser apreendidos diretamente pela nossa percepção individual. No sistema pré-digital, todos esses “fatos” teriam entrado nos autos de um processo de investigação que estabeleceria causalidades de modo o mais objetivo e imparcial possível. Essa objetividade se produziria pela contraposição organizada, procedimental e impessoal de versões e evidências, e não por cada usuário de internet “fazendo a própria pesquisa”. Julgamentos privados são uma base demasiado frágil para estabelecer verdades públicas; por isso, como mostra a antropologia, nenhuma sociedade jamais se apoiou neles para isso.

Os influenciadores dos públicos bolsonaristas percebem as fraquezas do atual ambiente informacional, e crescem e se monetizam em cima delas. Seu objetivo não é emplacar na esfera pública uma narrativa alternativa sobre o evento que se sustente para além de qualquer questionamento. Como os ?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> class="s1">mercadores da dúvida na ciência, é suficiente impedir que qualquer outra explicação logre se consolidar. Isto é, inclusive, mais condizente com o seu modelo de negócios. Primeiro, porque consolidar uma narrativa implicaria que esses influenciadores se responsabilizassem pelo que dizem – o que, como seu líder e modelo, o presidente Bolsonaro, jamais farão. Segundo, porque, assim como o bolsonarismo enquanto movimento político, esses mercadores de contra-narrativas vicejam justamente num tipo de parasitismo, neste caso, da informação que é circulada na esfera pública convencional.

Entender que a resiliência política do bolsonarismo advém dessa comunicação paradoxal em dois níveis implica reconhecer que não há simetria entre os “dois lados. Essa falsa simetria é, sobretudo, um efeito de perspectiva: da perspectiva limitada do observador que olha para os seus “dois lados” – Bolsonaro e Lula – a partir de apenas um nível lógico, o das interações locais. Ela funciona também porque esses atores operam com pressupostos similares ao do bolsonarismo, relativos, por exemplo, ao englobamento do coletivo pelo individual, do público pelo privado, do social pelo mercado. A grande ironia é que são muitas vezes esses mesmos atores que lamentam a erosão da “civilidade”, da competência técnica, dos julgamentos isentos.

Incapaz de perceber como o bolsonarismo vem ganhando terreno no nível meta-comunicativo, essa perspectiva se encontra capturada pelo controle indireto que ele logra exercer sobre o atual ambiente de mídia – e portanto se situa, na prática, do seu lado. 

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