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Do globalismo à guerra cultural: como as teorias da conspiração tomaram conta da política digital

A difusão dessas teorias é também uma estratégia financeira de quem produz os conteúdos

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“Esta notícia você não viu na Globo, na Band, na Record, nem nos pequenos sites de notícia aqui no Brasil.” A fórmula é simples e desperta o interesse do interlocutor, afinal quem não quer saber algo que poucos sabem? Ao mesmo tempo, a frase deixa entender nas entrelinhas a existência de um complô para esconder algo.

É assim que o youtuber católico Bernardo Kuster começa um vídeo em que afirma que a França teria legalizado a pedofilia em 2018 “cedendo à pressão de uma rede internacional de ativistas”. Em sua história completamente falsa, o paranaense distorce uma mudança de lei no país europeu para renovar uma teoria conspiratória que implica pessoas poderosas (o governo de Emmanuel Macron) em abomináveis crimes infantis.

Também seria uma rede internacional de ativistas pedófilos e satanistas, da qual participaria a própria Angela Merkel, ex-chanceler alemã, que ensejou o ataque de um grupo ativista a museus em Berlim no final de 2020. Já nos Estados Unidos, seria essa rede internacional satanista e pedófila, com apoio da democrata Hillary Clinton e do bilionário Bill Gates, que teria impedido a posse de Donald Trump após a eleição, segundo alguns dos ativistas que invadiram o Capitólio em janeiro deste ano.

Separadas no tempo e no espaço, essas três histórias convergem em um cenário de crescente uso político de teorias conspiratórias.

“Essas teorias tiveram e têm um papel muito importante na construção de alguns movimentos políticos populistas de direita ou de extrema direita, tanto nas Américas quanto na Europa. As teorias conspiratórias serviram como base para criar primeiro uma certa desconfiança com relação à política tradicional e depois um sentimento de pertencimento [a um grupo]”, explica o pesquisador Paolo Demuru, que estuda o uso do discurso conspiracionista na política.

Aliado às redes sociais, as teorias conspiratórias consolidaram em diferentes países a criação de inimigos comuns e o medo constante de uma ameaça, que podem ser, conforme o local, representados por imigrantes, “comunistas”, muçulmanos, população LGBTI+ ou a China, por exemplo.

Ele aponta, como exemplos, desse uso no populismo digital a ascensão de Matteo Salvini na Itália, da Nova Direita de Marine Le Pen na França, de Donald Trump nos Estados Unidos, de Viktor Órban na Hungria ou de Jair Bolsonaro no Brasil.

Demuru ressalta, no entanto, que o uso de conspiracionismo não é monopólio da direita, grupos radicais de esquerda se valem do mesmo método.

Uma tática antiga

A estratégia é uma velha conhecida. Foi assim na Europa no século XIX, quando uma história nascida na França e plantada na Rússia, dando conta de uma conspiração judaica para a dominação mundial, ultrapassou fronteiras e foi sendo disseminada, alimentando um ódio antissemita que levou, na Segunda Guerra Mundial, ao assassinato de cerca de seis milhões de judeus no Holocausto.

Também no Brasil foi a falsa tese de um plano conspiratório de comunistas contra o governo o argumento usado por Getulio Vargas para dar um golpe de Estado no país e dar início à ditadura do Estado Novo em 1937.

E o que leva as pessoas a acreditarem? Uma mistura de algumas características, a adoção de narrativas que usam – e aprofundam – preconceitos já existentes em certo grupo, a promessa de fácil explicação e determinação de culpados em um cenário complexo, como uma crise econômica, a mudança social de costumes ou uma pandemia de Covid-19, e a repetição constante do argumento, em diferentes histórias e usadas por diversas pessoas.

O turbilhão de mensagens, áudios e vídeos difundidos nos últimos anos sobre globalismo, guerra cultural, ideologia de gênero, para citar alguns temas, não é acaso.

Palavras vagas para convencer melhor

O uso de expressões vagas, desconhecidas ou ambíguas, sublinha Demuru, também é parte da estratégia nesse uso político do discurso pelo novo populismo digital.

“Quando Bolsonaro ou Trump diz que são contra o sistema. O que é exatamente esse sistema, o establishment ou os globalistas? São palavras propícias para gerar tipos de interpretações diferentes dependendo do contexto, e que podem ser interpretadas de uma maneira específica conforme quem for a pessoa que está ouvindo”, diz.

A interpretação fluida aumenta o potencial de adesão do discurso. O sistema a ser combatido pode ser entendido, em alguns momentos e por alguns, como o lulopetismo, como o sistema de corrupção ou o Centrão, e chega às leituras mais radicais, que vão entender o sistema a ser combatido como a própria estrutura de poderes divididos entre Executivo, Congresso e STF.

“Quando populistas, como Trump ou Bolsonaro, usam palavras como essa, eles conseguem abrir esse leque de interpretações e criar desconfiança em um amplo espectro. Cada um pode interpretar conforme o grupo no qual mais se reconhece. E, claro, isso tudo é alimentado por um substrato emocional, de paixões e ódios.”

Em bolhas e cada vez mais radicais

A radicalização do discurso chamou a atenção de Michele Prado, uma baiana que participava de grupos de discussão de direita na internet já no início dos anos 2000. Ativa em fóruns, no Orkut e em outras redes sociais, ela viu a entrada progressiva de teorias conspiratórias no discurso da direita e decidiu pesquisar a emergência da direita radical.

“Antes da internet, esses grupos de extrema direita ficavam limitados territorialmente. Além de estarem na margem da política, eles só conseguiam amplificar seus conceitos e suas ideas no boca a boca, pessoalmente. Com a internet, isso muda profundamente e a extrema direita percebeu isso muito rápido, os neonazistas foram os primeiros a usarem os fóruns para sua propaganda”, explica.

No livro que publicou recentemente, “A tempestade ideológica”, a autora mostra que algumas das ideias sobre o que chamam hoje de globalismo e de marxismo cultural já apareciam no grupo de Orkut formado por seguidores de Olavo Carvalho em 2004.

A criação intensa de bolhas nas redes sociais, ao mesmo tempo que aproxima pessoas em locais diferentes do mundo, produz grupos de consenso em que para participar é preciso estar de acordo com os outros.

“A pessoa no celular fica capturada dentro daquela câmara de eco só recebendo aquele conteúdo que reforça as próprias crenças, sem ter contato com opiniões divergentes, e isso leva à radicalização. E isso não fica limitado ao ambiente virtual, um exemplo muito claro disso é o que está acontecendo agora durante a pandemia. Um protesto antilockdown na Alemanha reverbera nos grupos de extrema direita no Brasil, e eles vão repetir aqui o mesmo conteúdo, com as mesmas informações falsas e teorias conspiracionista”, indica Michele Prado.

A eficiência na propagação dessas teorias conspiracionistas importadas vai variar conforme a tendência préexistente na população, considera o pesquisador David Nemer, especialista em comunicação política digital.

“No caso das teorias contra a vacina, como o Brasil tem um histórico muito consolidado de imunização, o movimento antivacina não pegou. Mas o que foi muito difundido foram mensagens que colocaram em dúvida a vacina por ser chinesa e relacionando com todas as teorias conspiratórias contra comunistas”, cita.

O grande problema, alerta Nemer, é que essas teorias podem ter resultado a longo prazo, como aconteceu em outros países. A desconfiança contra as vacinas já existia há décadas na população norte-americana ou francesa, dois países que enfrentam dificuldades neste momento para convencer todos a se imunizarem contra a Covid-19, apesar de terem vacinas sobrando.

“Daqui a alguns anos podemos voltar a ter problema com sarampo, com polio, por causa dessas campanhas que foram feitas agora”, critica o pesquisador.

Teorias do complô, uma história de lucro

A difusão dessas teorias é também uma estratégia financeira de quem produz os conteúdos. Na internet, quanto mais um vídeo tem apelo emocional, causa espanto ou raiva ou promete trazer uma informação única, maior sua chance de sucesso e de visualizações. E ter visualizações, no Youtube ou em sites com publicidade, significa ganhar dinheiro.

O mecanismo é bilionário. Histórias falsas ou teorias conspiratórias atraem um público para páginas que se alimentam, entre outras coisas, do mercado de propagandas automáticas. Um estudo da ONG internacional Global Desinformation Index estimou que páginas com notícias falsas receberam US$ 235 milhões em anúncios em 2019, o equivalente a mais de R$ 1,2 bilhão.

“Antes de tudo não é sobre ideologia política é sobre um mercado em que rola muito dinheiro. Na minha pesquisa percebi que houve uma mudança no financiamento. Antes o dinheiro vinha de grupos políticos, de empresários, para patrocinar canais ou pagar pessoas que produziam fake news ou gerenciavam um grupo de WhatsApp. Com o avanço das investigações da CPI das fake news e do inquérito do STF, isso mudou muito. Acharam formas diferentes de produzir e monetizar. O YouTube virou um grande antro da desinformação, agora você recebe menos memes no WhatsApp e mais links do Youtube ou de sites”, explica Nemer.

Os vídeos publicados em 14 canais brasileiros acusados de propagar notícias falsas no Youtube poderiam arrecadar, de acordo com reportagem do brasileiro UOL, mais de R$ 15 milhões em apenas um ano.

Entre esses canais estão o Folha Política, Te Atualizei, Terça Livre TV, de Allan dos Santos, e Agora é Manchete com Oswaldo Eustáquio. Juntas, essas páginas têm quase dez milhões de seguidores. Todos são investigados pelo Tribunal Superior Eleitoral por propagar informações falsas sobre a eleição e a urna eletrônica.

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