Frente Ampla

Ser antirracista é defender a democracia

A luta contra o racismo exige coragem, como a de Vinicius Jr., mas há outras medidas que podemos tomar para avançar nesta luta

Foto: Jose Jordan/AFP
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José Carlos Ruy diz que: “Todo racismo, em todos os lugares onde se manifesta, desde a antiguidade, tem como base comum a crença de que alguns grupos humanos seriam superiores e destinados ao domínio, enquanto outros seriam inferiores e destinados a servir àqueles em consequência de características físicas (pele, cabelo, olhos, nariz, formato do crânio etc.) ou culturais (religião, língua etc.). Em todos os lugares, ele parte daquela base comum para legitimar-se, para justificar a desigualdade e a opressão”.

O Brasil recebeu 43% dos 8 milhões de sequestrados da África, que aqui permaneceram como mão de obra escrava sob o açoite por séculos. E hoje, as pretas e pretos ainda sofrem o peso das discriminações racistas em todas as dimensões da vida, agregada à desumana ofensiva extremista que avança sobre o mundo.

Dissimulada ou explícita, esta forma de violência encontrou campo livre nas redes sociais: o ódio e a divisão são os combustíveis que movimentam plataformas bilionárias como Twitter, Facebook, TikTok, YouTube e Instagram.

Nestas redes, preconceitos centenários são perpetrados diariamente, na forma de ofensas ou até “piadas”. Os estragos, porém, não ficam restritos ao ambiente online. Na Espanha, por exemplo, as denúncias de discriminação racial cresceram mais de 30% entre 2013 e 2021. Este é o país onde o brasileiro Vinicius Jr., jogador de um dos principais times de futebol do mundo, o Real Madrid, sofre constantes ofensas racistas durante as partidas do bilionário campeonato espanhol, La Liga.

Porque o racismo não respeita ninguém, em nenhum lugar do mundo. Vini é talentoso e competente, mas, para os que tem sua cor de pele, isso nunca é suficiente. Vejam o caso do americano Ryan Coogler. Em janeiro, o diretor de Pantera Negra, um raro sucesso global de bilheteria conduzido e estrelado por um elenco negro, entrou numa agência bancária e pediu para sacar 12 mil dólares. A atendente do banco estranhou a situação e… chamou a polícia. Coogler foi algemado e levado para uma viatura antes de sequer poder se explicar – como se devesse alguma explicação por ousar ter tanto dinheiro para sacar.

Na Espanha, o que vimos foi uma sessão de xingamentos que durou 90 minutos na partida contra o Valencia. Vini foi agarrado pelo pescoço por um adversário, revidou e foi expulso. O jogador que o agrediu (branco, europeu) permaneceu em campo. Na súmula do juiz, nem uma palavra sobre o racismo da torcida contra o brasileiro e o contexto que levou ao tumulto.

É de se pensar: se o racismo acontece com pessoas mundialmente conhecidas, como Vini Jr. e Ryan Coogler, o que dizer das violências racistas sofridas diariamente por milhões de pessoas pretas anônimas dentro de casa, nas ruas, nas favelas, nas escolas, nas empresas do Brasil?

Racismo é crime aqui, nos Estados Unidos, na Espanha e em muitos outros lugares. Mas, quando nem a força da lei consegue intimidar centenas, milhares de torcedores raivosos de demonstrarem todo o seu preconceito contra um único jovem, é preciso rever as ações para combater este crime.

A intolerância cresce em todo o mundo em escalada incentivada pela extrema-direita e sua máquina de preconceito e fomento ao discurso de ódio. A verdade alarmante é que o racismo de sempre está cada vez mais  abraçado ao extremismo de agora. Basta ver as bandeiras nazistas exibidas com orgulho por torcedores espanhóis. Ou aos grupos neonazistas que atuam no Brasil. Ser antirracista sempre foi e é, portanto, defender a democracia.

Vini Jr., que traz tatuada no corpo a frase “Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho nos olhos, haverá guerra” (do imperador etíope Haile Selassie) abraçou a luta antirracista faz tempo. Após o episódio em Valencia, foi abraçado pelo governo e a sociedade brasileiros, a começar pelo presidente Lula e vários ministros, que pressionam o governo espanhol por providências. Os efeitos já se fazem sentir, em manifestações oficiais e na cobertura da imprensa.

Mas as mudanças são lentas. Ainda hoje, 22 anos após a  III Conferência Mundial da ONU Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, na África do Sul, a Declaração e o Plano de Ação ali elaborados carecem de implementação. Enquanto isso, o racismo sistêmico, a discriminação racial e os crimes de ódio mantêm as populações de cor preta ou parda em situação de vulnerabilidade econômica e social em todo o mundo.

A atitude de Vini Jr. é a primeira providência de todo antirracista: denunciar a violência. O gesto do governo brasileiro  foi forte e célere, exigindo providências e sanções, mas é preciso atuar para mudar culturalmente a consciência e o comportamento do nosso povo, a começar pelas escolas, onde devemos cumprir a lei que obriga o ensino da história indigena e africana na construção da civilização brasileira. A escravidão foi uma violência que durou séculos e deixou marcas que se mantém ainda hoje. Honrar suas milhões de vítimas com memoriais, como o Cais do Valongo, no Rio, que abrigará um museu da diáspora africana com recursos federais e municipais, é outra ação positiva.

Em São Paulo, o uso de câmeras nos uniformes policiais reduziu em três vezes o número de vítimas adolescentes em 2022. Os jovens pretos são os que mais sofrem com a violência policial. É uma forma de minimizar as ações violentas nas operações policiais, e deve ser estendida a todo o país.

Se o racismo é anterior às novas tecnologias, elas têm contribuído para amplificar o discurso extremista em todo o mundo e precisam de regulação urgente. Na Câmara, estamos na luta para aprovar o PL 2630, que garante a transparência na internet no combate às fakenews e aos crimes de ódio tolerados pelas big techs em suas redes sociais. Este projeto impede, por exemplo, que aplicativos como o infame jogo “Simulador de Escravidão” fosse disponibilizado em sua plataforma de downloads.

É também preciso uma atenção especial às mulheres negras, que eram 37% de todas as pessoas desempregadas no Brasil em 2022, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Seu salário é o mais baixo da cadeia de remuneração. Nossas políticas públicas precisam ser, antes de mais nada, antirracistas. Isso significa investir  na política de cotas, em educação de qualidade, saúde e bem-estar, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades. Apenas com estas garantias civilizatórias poderemos afastar o espectro do fascismo que nos ronda. Não haverá democracia enquanto houver parcelas oprimidas e discriminadas na sociedade. É urgente derrotar a vergonha histórica e criminosa do racismo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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