Cultura

‘Wakanda Para Sempre’ e os futuros inumeráveis da África

Ainda que tenha apelo comercial da Marvel, filme traz referências culturais, políticas e econômicas do continente africano sem incorrer na alegoria

A Rainha Ramonda, líder de Wakanda, interpretada pela atriz Angela Bassett. Foto: Reprodução/Marvel Entertainment
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Entre maio de 2018 e janeiro de 2019, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o MoMA, inaugurou a exposição City Dreams, com obras do artista plástico congolês Bodys Isek Kingelez. A exposição era composta por diversas maquetes futuristas que buscavam criar uma utopia urbanística africana. Feitas de papel, cartolina, fitas adesivas, latas, dentre outros materiais banais, os espaços visionários de Kingelez eram marcados pelas cores vibrantes, que se materializam em prédios de arranha-céus, pontes, avenidas, shoppings centers, estádios de futebol, parques… Além das cores, essas cidades sonhadas são repletas de curvas que lembram as construções do modernismo africano, construções essas presentes em diferentes cidades do continente e que datam dos anos 1960.

De certa forma, a poesia de Kingelez nos aproxima daquilo que o filósofo camaronês Achille Mbembe denomina como “futuros inumeráveis”. Pensar nesses futuros é um exercício contínuo e, por todo o continente africano, ele vem sendo feito não apenas por artistas plásticos, mas também por músicos, escritores, griôs, filósofos e cientistas. Trata-se de um exercício que ganha ainda mais força quando abarca a experiência presente e a tradição.

Lançado em novembro de 2022, o filme Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever) também pode ser compreendido como um estímulo para pensar os futuros inumeráveis dos territórios africanos. Ainda que a obra dirigida por Ryan Coogler tenha um apelo comercial da franquia Marvel – com cenas repletas de ação e efeitos especiais –, ela traz muitas referências culturais, políticas e econômicas do continente africano sem incorrer na alegoria.

A diversidade e riqueza cultural africana está presente durante todo o filme. Wakanda é como se fosse uma projeção panafricanista, um território onde se encontram algumas pessoas com penteados de argila (dos povos hereros do norte da Namíbia), outras luzindo arranjos florais na cabeça (dos povos surma e musi nas fronteiras entre Etiópia, Tanzânia e Sudão do Sul). A população veste batas e vestidos com diferentes padronagens, como o kente (de Gana), além de ornamentos multicoloridos (dos povos massai do Quênia)… Nas vibrantes ruas da cidade, prédios modernos remetem as maquetes de Kingelez e nas paredes de muitas construções encontram-se pinturas geométricas (dos nbedeles da África do Sul). O comércio dinâmico nas calçadas – seja ele ambulante, seja em feiras – é também uma marca da realidade urbana na maior parte dos países africanos.

Ao trazer explícitas referências a ancestralidade, aos conselhos dos anciãos e à força oral dos griôs, Wakanda para sempre também joga luz na História das sociedades africanas que, durante séculos, se organizaram em clãs, reinos e impérios, tendo as suas chefaturas exercendo a soberania sobre os próprios territórios até o fim do século XIX, quando as nações imperialistas europeias impuseram a violenta experiência colonial à maior parte do continente.

É em função dessa experiência – cujas consequências podem ser sentidas até a atualidade, décadas após as independências dos Estados africanos – que a rainha de Wakanda, X, dispõe de seu poderoso e leal exército de Amazonas (em evidente referência às Amazonas do Reino do Daomé no XIX) para proteger seus recursos naturais, em especial o vibranium.

Ainda que seja fictício, o vibranium é uma espécie de metáfora das riquezas naturais que podem ser encontradas na África. Considerando as reservas mundiais conhecidas, estão no continente: 95% do cromo, 88% da platina, 82% do manganês, 66% do fosfato, 60% do diamante, 55% do ouro, 45% da bauxita, 44% do vanádio, 42% do cobalto, 15% do urânio, 10% do petróleo, 6% do carvão mineral, 5% do cobre e 2% do ferro. Atualmente, muitas dessas riquezas são exploradas por grandes corporações estadunidenses, canadenses, australianas, britânicas, francesas, chinesas e australianas.

Talvez uma das mais importantes contribuições de Wakanda para sempre esteja no tratamento dado à questão tecnológica, não pelos instrumentos e máquinas criados pela protagonista Shuri (interpretada por Letitia Wright) em seu laboratório, mas pela naturalização daquilo que dificilmente se aprende nas escolas: os africanos produzem tecnologia. Da observação e medição astronômica dos antigos egípcios e dos Dogons do Mali às técnicas seculares de cultivo e metalurgia em terrenos tropicais na África Ocidental, e as estratégias de guerra e confecção de armas pelos zulus na África do Sul, a tecnologia está em todo lugar.

O filme também faz uma homenagem a personagens africanos e diaspóricos cujas trajetórias são frequentemente silenciadas nos currículos escolares: Nakia (personagem interpretada por Lupita Nyong’o) é filha de Yaa, que, segundo a historiografia, foi uma rainha Ashanti que, em 1900, liderou uma vitoriosa contraofensiva ao exército britânico na cidade de Kumasi; e a Rainha Ramonda (interpretada por Angela Bassett) leva o sobrenome Lumumba, em referência ao líder da independência do Congo (Patrice Lumumba). Surge na trama também o jovem Toussaint (interpretado por Divine Love Konadu-Sun), cujo nome  remete ao líder da Revolução Haitiana, Touissant Louverture. O Haiti, país caribenho central para a História mundo Atlântico, é um dos pontos de gravação da trama.

Além da experiência do entretenimento, Wakanda para sempre é, em certa medida, um excelente exercício para se pensar o futuro, mas sem desconsiderar as particularidades observáveis de um complexo processo histórico. São muitos os territórios no continente africano e os seus futuros são inumeráveis.

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