Frente Ampla

Sem anistia e sem fake news

Em todo mundo, a extrema-direita usa as redes sociais para rasgar o tecido da realidade. Sua arma são as fake news, com seus fatos distorcidos ao gosto do freguês

Foto: Gustavo Lima/Câmara dos Deputaods
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Lula havia tomado posse havia apenas oito dias quando a horda invadiu a Praça dos Três Poderes. Era o episódio mais grave, até ali, no longo processo de ruptura institucional que o Brasil vinha sofrendo desde a grande fraude jurídica e política de 2016, o impeachment de Dilma Rousseff. O ato 1.

O ato seguinte foi retirar Lula das eleições de 2018 por meio de outra fraude jurídica, a famigerada e hoje totalmente desmoralizada Operação Lava Jato. Uma aversão fabricada à política e às conquistas coletivas que pavimentou a ascensão do semeador de ódios Jair Bolsonaro. Quem não se lembra dos “kits gays” e “mamadeiras fálicas”, da oração “povo desarmado é povo escravizado”? Invenções perversas, criadas para enganar as pessoas e causar pânico moral. Espalhadas livremente pela internet, ao alcance de qualquer um. Geraram um conceito de “cidadão de bem” que acaba por sustentar o autoritarismo e uma política econômica que exclui exatamente a base da pirâmide social onde está boa parte destes seguidores do bolsonarismo.

O 8 de Janeiro foi o resultado de anos seguidos de fake news plantadas pelo bolsonarismo. A principal delas, a de que apenas um golpe militar livraria o Brasil das garras da “ditadura do comunismo” (e, para isso, seria necessário “intervir” na nossa democracia…). Em 1999, Bolsonaro deu uma entrevista em que afirmou, sem meias palavras: “O voto não vai mudar nada no Brasil”, “só vai mudar, infelizmente, quando partirmos para uma guerra civil, fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil”.

Ao longo de todo o seu mandato, Bolsonaro desacreditou as urnas eletrônicas e o processo eleitoral brasileiro. Sabotou e demonizou, como pôde, as instituições democráticas, contra o Parlamento, STF e seus ministros. Gerou desconfiança do processo e a “certeza da fraude”. Difamou o país e o isolou internacionalmente. Instalou um gabinete do ódio dentro do Palácio do Planalto para difamar, ameaçar e calar vozes divergentes. Intensificou a misoginia e o racismo. Armou a população civil. Qualquer discordância era (ainda é) tratada como declaração de guerra. O debate foi interditado.

Sem acesso ao contraditório, isolados em suas bolhas de preconceitos, intolerância e medo, houve quem associasse a vitória de Lula nas urnas, legítima e histórica, em 2022, ao “fim do mundo”. Foram para as portas dos quartéis pedir intervenção militar, rezaram para pneus na chuva, convocaram ETs com celulares na cabeça, agarraram-se a caminhões para “salvar o país”. “Lutam” estimulados por fake news e uma lógica algorítmica que justamente reforça os temores à democracia.

Em todo o mundo, a extrema-direita usa as redes sociais para rasgar o tecido da realidade. Sua arma são as fake news, com seus fatos distorcidos ao gosto do freguês. Daí a campanha permanente de figuras como Trump, Bolsonaro ou Steve Bannon contra a imprensa; a submissão dos veículos à velocidade das redes, em que o jornalismo declaratório toma o espaço de reportagens e investigações, aprofunda mais essa crise.

Ainda assim, não é razoável alguém pensar que está “ajudando” o país ao invadir os Três Poderes para quebrar, saquear, incendiar ou coisa pior. Ficou claro que havia lideranças treinadas nos atos golpistas de invasão. Movidos por mentiras ou não, precisam ser responsabilizados pelo que fizeram.

Muitos já estão presos. Na CPMI do 8 de Janeiro, propusemos, com muitas provas, o indiciamento dos planejadores e financiadores do golpe. Agora, precisamos que os órgãos de investigação e Justiça consigam puni-los dentro do devido processo legal, com a maior celeridade possível.

O tempo corre, e as máquinas de ódio e fake news, bolsonaristas ou não, continuam trabalhando a todo vapor. Porque as mentiras matam. Nas últimas semanas, vimos as consequências trágicas da desregulação absoluta em que vivem todas essas plataformas, com duas mortes decorrentes de “cancelamentos” e campanhas difamatórias online. Um estudo conduzido pelas universidades de Lyon, na França, e Quebec, no Canadá, mostrou que ao menos 17 mil pessoas morreram em seis países por tentar se curar da Covid-19 com hidroxicloroquina. Foram vítimas de fake news.

No Brasil, o principal propagador desta mentira foi Bolsonaro. Quantas mortes estão na conta desta maldade?

O digital interfere no real, e vice-versa. Ano passado, as discussões em torno do PL 2630, que prevê a regulação das redes sociais, foram interrompidas à base de… fake news promovidas pelas próprias big techs que lucram bilhões com elas. Em ano eleitoral, como o que estamos, retomar esta pauta é uma questão urgentíssima. A regulação é tema em todo o mundo neste momento. Nos Estados Unidos, sede de quase todas as principais plataformas digitais, mais de quarenta estados americanos entraram com um processo contra a gigante tecnológica Meta, onde acusam o Facebook e o Instagram de prejudicarem “a saúde física e mental dos jovens”. Não há mais tempo a perder.

As fake news interferem também na política. Um pesado manto de mentiras pulverizadas nas redes sociais para confirmar e alimentar medo e preconceitos têm mantido Donald Trump na liderança pela corrida presidencial nos EUA, mesmo que pesem contra ele mais de 90 acusações, entre elas a morte de um milhão de pessoas na pandemia e a invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Lá, os fatos estão perdendo para as mentiras.

No Brasil, a democracia se mostrou mais resiliente. Resposta imediata e ampla dos três poderes, governos estaduais, prefeitos, lideranças políticas da sociedade civil e importante solidariedade internacional. Um ano depois, Bolsonaro está inelegível, responde a mais de duas dezenas de processos no Judiciário e é um dos 61 indiciados por nós na CPMI do Golpe pelo claro comando, articulação, estímulo, mobilização, planejamento, para o financiamento e execução do 8 de janeiro, e dos eventos que o antecederam (entre eles, as tentativas de invasão à sede da PF e de explodir uma bomba no aeroporto de Brasília).

Também há generais, alguns líderes religiosos, políticos e empresários financiadores, comandantes da PM/DF, que precisam de punições. Ação e omissão. Entre os indiciados, indicamos oito generais, tenente-coronel e demais militares que participaram da tentativa de romper a institucionalidade da República. A corrupção de Bolsonaro e seu governo vem ficando cada vez mais clara desde o exercício de seu mandato presidencial e nas investigações que se aprofundam sobre seu núcleo do Planalto. Lembro aqui da comissão na compra das vacinas, das pedras, das joias, dos relógios e outros presentes que ele vendeu nos EUA, na sua fuga do país.

A CPMI identificou todos os artigos do código penal onde essa turma se encaixa. Entre eles, o da “Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito”. Assim têm feito o TSE, o STF e o MPF. Não nos livraremos da sombra do golpismo se a punição não for exemplar. Não podemos tergiversar ou amenizar a gravidade do que houve há um ano. Só se rebela contra estas condenações e suas consequências quem não compreende o valor da democracia ou a despreza.

Nosso desejo para 2024 é um só: Mais democracia e igualdade.
Sem anistia para golpistas.
E sem fake news.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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