Flagrante permanente é arma e pode motivar perseguições políticas

Por mais nobre que seja o discurso em favor da prisão de Daniel Silveira, há risco de aceitar a violência estatal a pretexto de combatê-la

O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ). Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

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O vídeo do deputado Daniel Silveira com ataques a ministros do Supremo Tribunal Federal merece o repúdio de todos que acreditam nas instituições democráticas e nos valores constitucionais. Porém, em nome desse mesmo propósito, é preciso reconhecer a arbitrariedade de sua prisão com os fundamentos lançados pelo Ministro Alexandre de Moraes.

A Constituição Federal prevê que os membros do Congresso não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Fora dessa hipótese, a prisão de um deputado federal é inconstitucional e, por mais nobres que seja o discurso político que busca legitimá-la, deve ser afastada sob pena de admitirmos a violência estatal a pretexto de combatê-la.

Em primeiro lugar, a argumentação do ministro Alexandre de Moraes para justificar a existência de flagrante delito é teratológica. Em sua decisão, afirma que estaria caracterizado flagrante porque “o referido vídeo permanece disponível e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores, sendo que até o momento, apenas em um canal que fora disponibilizado, o vídeo já conta com mais de 55 mil acessos”.

Prossegue, explicando que “ao postar e permitir a divulgação do referido vídeo, que repiso, permanece disponível nas redes sociais, encontra-se em infração permanente e consequentemente em flagrante delito, o que permite a consumação de sua prisão em flagrante”.

Situação distinta poderia ser a prisão em flagrante justificada por um vídeo recém-publicado, já que o próprio Código de Processo Penal considera em flagrante delito quem acabou de cometer a infração penal.


O rol de crimes inafiançáveis está previsto na Constituição e não inclui ofensas contra a honra de ministros do Supremo ou crimes contra a segurança nacional

Mas a criação de uma espécie de flagrante permanente, para justificar a prisão de alguém enquanto determinado vídeo estiver disponível na internet, é uma arma. É pode abrir caminho para perseguições políticas travestidas de ordem judicial, destinadas a silenciar o discurso crítico de jornalistas, professores, comunicadores e todos aqueles que ousem desagradar o soberano de plantão.

Ao considerar que declarações registradas na internet sejam atos cuja execução se protrai durante todo o tempo em que o vídeo estiver acessível, legitima-se um poder estatal iminente e anômico no plano temporal. Se a possibilidade de prisão em flagrante perdurar durante todo o tempo em que o vídeo estiver na internet, o indivíduo passa a estar sujeito ao aprisionamento a qualquer tempo e sem direito de defesa, ampliando-se a esfera de repressão estatal de modo incompatível com uma democracia constitucional.

Em segundo lugar, não houve imputação da prática de crime inafiançável. Por maior que seja a repulsa causada pelas declarações do deputado federal, o rol de crimes inafiançáveis está previsto na Constituição Federal e não inclui ofensas contra a honra de ministros do Supremo Tribunal Federal ou crimes contra a segurança nacional.

O Supremo Tribunal Federal decidiu pela a legalidade e manutenção da prisão de Daniel Silveira. Falta a Câmara dos Deputados. A prosperar o texto constitucional, não nos parece que haja outra alternativa senão a revogação da prisão diante da inexistência do estado de flagrante delito inafiançável.

Isso não significa, todavia, que não haja outras medidas cabíveis e adequadas, tais como a cassação do mandato pelo voto da maioria absoluta dos deputados. O que não se pode admitir é que critérios políticos sobreponham-se aos limites jurídicos no exercício do poder penal pelo sistema de justiça.

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