Carla Jimenez

Jornalista há mais de 30 anos, foi diretora e editora chefa do EL PAÍS no Brasil e co-fundou o portal Sumaúma

Opinião

De Putin a Ortega, Lula dá uma trégua nas gafes

Em seu giro pela Europa, o presidente foi mais austero em suas declarações, e se coloca como ponte entre os vilões do planeta

O presidente Lula (PT), durante a Cúpula do Novo Pacto de Financiamento Global, em Paris, na França. Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República
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O presidente Lula concedia uma entrevista coletiva a jornalistas em Paris, no último sábado, 24, enquanto o grupo mercenário Wagner peitava o presidente russo Vladimir Putin, numa intensa ofensiva com direito a marcha de soldados até Moscou. Chegou-se a supor que o grupo, antigo aliado de Putin, planejava um golpe de Estado em meio à guerra contra a Ucrânia. Por isso, na sala com jornalistas, sobraram perguntas a Lula sobre o episódio. Mas em vez de respondê-las, o presidente saiu pela tangente. “Não posso comentar uma coisa que eu não li, que eu não conheço. Seria precipitado da minha parte fazer juízo de valor sobre qualquer assunto”, disse Lula a uma das repórteres, avisando que leria tudo sobre o tema assim que chegasse ao Brasil antes de emitir uma opinião.

Foi uma maneira elegante de tirar o assunto da pauta e evitar armadilhas como a que ele mesmo armou para si próprio quando, dois meses atrás, tratou a guerra entre a Rússia e a Ucrânia como um conflito causado pelos dois países. Foi um choque para a comunidade internacional, uma vez que o líder brasileiro ignorou o fato de os russos terem invadido o território ucraniano. Lula recebeu inúmeras críticas mundo afora pela gafe. A mais recente delas, veio estampada na capa do jornal francês Liberatión, com o título “Lula, a decepção”, na última sexta, 23, aproveitando sua passagem pela França. Não condenar Putin é visto como um erro gravíssimo, ainda mais para alguém que busca ampliar sua voz no cenário mundial. 

Diante de um cenário menos afável, o presidente foi mais diligente em suas falas, colocando enfaticamente o meio ambiente na pauta de seus encontros, pleiteando investimentos para uma política verde, e também cobrando posições mais coerentes da União Europeia diante das negociações com o Mercosul. 

A carta complementar da UE, redigida em março, sobre o acordo dos dois blocos, prevê novas punições aos países latinos caso descumpram metas ambientais. Para Lula, o documento tinha um tom equivocado. “Não é possível a gente ter uma parceria estratégica e fazer uma carta fazendo ameaças a um parceiro estratégico”, disse Lula, ao discursar na cúpula do Novo Pacto Financeiro Global, em Paris.

Lula sente o peso das suas palavras e parece corrigir a rota para retomar a centralidade do país, ao menos na América Latina

Na França, ele ainda ganhou palco para discursar durante o encontro “Power Our Planet”, que reuniu lideranças mundiais e grandes nomes do cenário musical, em defesa de um novo pacto financeiro global. Diante de uma plateia jovem, Lula cobrou das nações ricas o financiamento a países em desenvolvimento que conservam grande parte da reserva verde do planeta, como o próprio Brasil. “Quem poluiu o planeta nestes últimos 200 anos foram aqueles que fizeram a revolução industrial e por isso tem de pagar a dívida histórica com o planeta Terra.” 

Na Itália, entretanto, durante uma audiência com o Papa Francisco, o presidente brasileiro precisou encarar um outro passivo que ele mesmo gerou para sua imagem, pouco tempo depois de sair da prisão. Em novembro de 2021, durante uma entrevista ao jornal El País, Lula minimizou os graves crimes cometidos por Ortega em seu país, onde persegue e prende opositores, inclusive religiosos, além de cassar a nacionalidade de seus desafetos.

O Papa pediu ajuda ao mandatário brasileiro para que intercedesse junto ao ditador nicaraguense Daniel Ortega na libertação do bispo Rolando Alvarez, condenado a 26 anos de prisão por criticar o governo. Lula se comprometeu a falar com Ortega e ajudar no que fosse possível. 

Apesar da escorregada de Lula naquela entrevista, o Brasil se alinhou à Organização dos Estados Americanos para cobrar o fim das violações de direitos humanos na Nicarágua e se ofereceu para acolher refugiados vindos daquele país. Já há 19 pedidos de refúgio de nicaraguenses até o momento, 6 solicitados neste ano. 

Um mês atrás, o presidente petista também foi infeliz ao falar da ‘democracia’ na Venezuela, desconsiderando que o país governado por Maduro já conta com mais de 5,4 milhões de refugiados em outros países — quase 900 mil entraram pelo Brasil —, buscando condições melhores de vida depois da crise que se abateu antes mesmo do embargo econômico de 2014.

Lula sente o peso das suas palavras e parece corrigir a rota para retomar a centralidade do país, ao menos na América Latina. Por ora, tem se colocado como ponte com os vilões do planeta, sejam eles Daniel Ortega, Nicolás Maduro, ou Vladimir Putin. “Isso tem seu valor. O que choca é o presidente personalizar, justificar as ações e comportamentos de líderes como Ortega ou Maduro, que consensualmente praticam abusos”, diz o diplomata José Alfredo Graça Lima, que é conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

O Brasil tem capital político para mediar conflitos entre nossos vizinhos, lembra Victor do Prado, também conselheiro do Cebri. “Evitou-se uma guerra entre Peru e Equador nos anos 1990, algo que foi feito com imensa competência pelo Brasil.” Fazer isso na vizinhança, OK. Entrar em outras pelejas requer outras habilidades que, por ora, o País não comporta. “A Ucrânia e a Rússia não são a nossa praia, não jogamos nesta ‘liga’”, completa o diplomata, que vive na Europa há 30 anos.

Num momento em que a economia dá sinais de recuperação, e há até uma pesquisa de opinião mostrando uma melhora da imagem do presidente, vale seguir uma toada mais previdente. Somos uma população calejada e com a pele sensível depois de anos de intensa batalha por manter a sanidade sob um governo golpista. Dar munição barata para os adversários da democracia é um erro primário a esta altura do campeonato. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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