Entrevistas

Peru: Dissolução do Congresso violou Constituição, mas impeachment também, diz ex-ministra

Em entrevista a CartaCapital, a deputada Silvana Robles analisa o cenário após a tentativa de instauração de um regime de exceção por Pedro Castillo

Silvana Robles, deputada do partido Perú Libre e ex-ministra do governo de Pedro Castillo. Foto: Flickr/Congreso de la República del Perú
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A Constituição Política do Peru prevê que a dissolução do Congresso somente é permitida quando os parlamentares negam, por duas vezes, o voto de confiança ao gabinete ministerial do governo.

Essa regra, muito clara, não foi cumprida pelo presidente Pedro Castillo ao anunciar, em uma polêmica mensagem à Nação, que o Legislativo estava dissolvido e que começava ali um regime de exceção.

Foi com base nesse entendimento que os próprios ministros de Castillo decidiram desembarcar do governo após o comunicado. Até mesmo Silvana Robles, ministra da Cultura e deputada do mesmo partido que deu vitória ao presidente, o Perú Libre, afirmou que reconhece a ilegalidade do decreto.

Na data da votação do impeachment, CartaCapital procurou a congressista para questioná-la se concordava em chamar o ato de Castillo como tentativa de golpe. Mesmo com duras críticas ao Congresso, ela respondeu, na ocasião, que não se poderia responder ao golpismo do Parlamento com um “autogolpe”.

Uma semana depois, a reportagem voltou a contatá-la para uma entrevista em que pudesse analisar o cenário com mais calma. A ex-ministra continuou com a mesma posição:

Gostemos ou não, estamos regidos por uma Constituição Política e vivemos num Estado de Direito no Peru“, disse a ex-ministra, em entrevista à CartaCapital, via chamada de vídeo. “Sou consciente de que se violou a Constituição na forma em que se deu a dissolução do Congresso.

Silvana Robles, ex-ministra da Cultura do governo de Pedro Castillo. Foto: Flickr/Ministerio de Cultura Perú

O momento, porém, é ainda mais complexo. Quem está no poder é Dina Boluarte, antes vice-presidente de Castillo e agora detentora de uma missão de pacificação do país, diante de protestos em diversas regiões.

Já o ex-presidente teve a sua imunidade retirada pelo Congresso e está sob um mandado de prisão preventiva pelos crimes de “rebelião” e de “conspiração”, com recurso negado pela Justiça.

Na avaliação de Silvana Robles, Boluarte entrou no poder de forma ilegítima, porque o Congresso não teria agido de acordo com o procedimento legal ao aprovar a moção de vacância contra Castillo. Segundo a parlamentar, o ex-presidente não teve o direito a se defender.

A ex-ministra argumenta ainda em defesa da libertação de Castillo, por discordar que os atos cometidos não correspondem ao que o Código Penal descreve sobre os crimes imputados a ele.

Na votação do impeachment, Robles esteve entre os 11 deputados que votaram pela abstenção, frente aos 101 favoráveis à destituição do presidente e aos seis que foram contrários.

Foi a terceira moção de vacância movida contra Castillo. A razão apontada foi a de “incapacidade moral permanente”, dispositivo já criticado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por riscos à separação dos poderes democráticos e à governabilidade.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Pedro Castillo, ex-presidente do Peru. Foto: Flickr/Presidencia Perú

CartaCapital: Por que, em sua opinião, Castillo tomou aquela decisão, se não tinha apoio das instituições?

Silvana Robles: Efetivamente, foi uma decisão desacertada do presidente Castillo, mais ainda sabendo que não tinha o apoio das Forças Armadas. Talvez, lhe fizeram crer que o tinha e, dada a circunstância, os efetivos do Comando Conjunto avaliaram a situação e sabiam que estavam indo contra a ordem democrática. Gostemos ou não, estamos regidos por uma Constituição Política e vivemos num Estado de Direito no Peru. Portanto, o mandato presidencial tinha que ser cumprido sem irromper a democracia. Reitero: foi um desacerto do presidente.

Mas a análise aqui é o que vem depois. Formula-se um pedido de vacância, e o presidente tinha de exercer o seu direito à defesa no Congresso, com base em uma moção de ordem do dia apresentada por um conjunto de congressistas. Na realidade, nunca se chegou a votar tal moção, nem que o presidente exercesse o direito à defesa, posto que o presidente Castillo decidiu tomar essa decisão horas antes.

Nesse sentido, o que se discute depois da mensagem do presidente da Nação é um decreto de resolução legislativa que o Congresso formula, chamando de ipso facto os congressistas. Isso gerou uma flagrante violação da Constituição Política e do regulamento do Congresso, que tem força de lei. É por isso que o presidente Castillo, em uma de suas notas, afirma que segue sendo o presidente constitucional, legitimamente eleito no Peru. Então, que há aqui é uma clara violação ao devido processo para que se dê a vacância do presidente Castillo.

CC: A senhora considera que Castillo segue como o presidente legítimo?

SR: Claro, porque o Congresso não levou o devido processo para que se possa dar a vacância. Portanto, a sucessão da senhora Dina Boluarte seria inválida. Isso é o que tem ocasionado a crise política. Sim, a Constituição Política do Peru diz que o mandato é da vice-presidente eleita, mas somente se essa sucessão é legal e legítima. Neste caso, a atuação desse Congresso, majoritariamente de direita e de ultradireita, tem violentado as suas próprias normas e a Constituição Política pela sucessão. Isso é o que consternado a população. Temos, nesse momento, uma batalha que pede a liberação do presidente Castillo, pede a Assembleia Constituinte e que reponham Castillo em seu mandato presidencial. Causa muita dor a morte de compatriotas peruanos, que é o que acarreta esse enfrentamento entre a população, que exige a liberação de Castillo, e o governo que exerce agora a Sra. Boluarte.

A nova presidente do Peru, Dina Boluarte. Foto: Presidencia Perú

CC: Congressista, se Castillo pratica uma tentativa de golpe, ele não merece alguma punição? Por que a detenção é injusta?

SR: Bom, imediatamente após a mensagem à Nação do presidente Castillo, o Ministério Público solicita que se realiza a prisão preventiva, pelo delito de conspiração, que está estipulado no Artigo 349 do Código Penal, na modalidade de rebelião, que está no Artigo 346. Na realidade, nunca houve conspiração na modalidade de rebelião. Vou ler o que diz taxativamente esse artigo: Aquele que se levanta em armas para mudar a forma de governo, depor o governo legalmente constituído ou suprimir ou modificar o regime constitucional será reprimido com pena privativa de liberdade não menor que dez anos nem maior que 20 anos. Neste caso, em nenhum momento, o presidente foi encontrado com armas, muito menos para realizar essa conspiração contra o Estado peruano.

CC: Mas, quando um presidente tenta um golpe, qual deve ser a reação das instituições democráticas?

SR: O Congresso da República poderia ter dado a sucessão constitucional à senhora Boluarte, reitero, sempre e quando se tenha realizado o devido procedimento segundo as leis e a Constituição. Mas o que acontece no Peru é que a Mesa Diretora do Congresso tem transgredido flagrantemente as normas do procedimento, que são de cumprimento obrigatório e cuja inobservância neste caso constitui uma causa de nulidade, da qual poderia se prevalecer o presidente Castillo na via jurisdicional nacional e supranacional, se assim for o caso. Esse é o detonante e por que muitos juristas têm se pronunciado.

CC: As eleições seriam realizadas em 2026, mas Dina Boluarte propôs adiantá-las em dois anos. Isso é insuficiente?

SR: O que na minha opinião seria o mais válido que possa acontecer neste momento é a renúncia da Sra. Boluarte para que se possa dar sucessão constitucional, que neste caso recairia sobre o presidente do Congresso, dado que no Peru não há uma segunda vice-presidência. A Constituição Política estipula que, ao receber o mandato constitucional, o presidente do Congresso deve convocar, em um prazo não maior que quatro meses, novas eleições gerais. O que se teme, na verdade, e conheço o monstro por dentro do Congresso, é que esse Legislativo não pretende convocar novas eleições no mais curto prazo. A solução à crise política que se vive no Peru, atendendo ao pedido da população, é que saiamos todos, mas o que lamento também é que não vai se realizar essa convocatória, de uma forma que mude a fórmula de eleger as novas autoridades. Considero que se seguirá elegendo um Congresso majoritário de direita, o que não consignará nenhum avanço tal como pede a população neste momento.

CC: Mas a senhora segue na defesa da eleição geral?

SR: É claro. O que deveria se realizar é que estas eleições gerais venham também com uma cartilha de referendo para ver se a população peruana está ou não de acordo com uma nova Constituição Política. Recordemos que as reclamações neste momento são a Assembleia Constituinte, nova Constituição, liberação do presidente Castillo, que saiam todos, novas eleições. Essa é a lista de reinvindicações. Considero que deve se colocar na agenda das próximas eleições um referendo em que se pergunte se a população está ou não de acordo com uma nova Carta Magna, com um novo pacto social.

As manifestações crescem desde o domingo em várias cidades do norte e do sul do Peru. Foto: Diego Ramos / AFP

CC: Havia uma análise do próprio Perú Libre de que Castillo tinha deixado alguns eixos programáticos de lado. Havia críticas também a alianças de Castillo. Mas, depois, a senhora ingressou no governo como ministra. Como pode explicar sua decisão?

SR: Quando entrou no mandato, lamentavelmente, o presidente Castillo deu um giro a um setor da direita peruana, o que fez com que deixasse o eixo programático principal do partido que o levou ao governo. Nós temos sido bem críticos em muitos aspectos ao governo. Mas algo que temos sempre sustentado é o respeito à democracia. O povo peruano levou o presidente Castillo ao governo. Agora, o que aconteceu nesse ínterim do mandato foi que, em seu momento, o presidente Castillo se retirou totalmente e apresentou a sua renúncia ao partido que o levou ao governo, o que causou bastante inquietação dentro do partido. Apesar disso, temos seguido sustentando o governo, sem revanchismo, esperando pelo giro ao eixo programático pelo qual foi eleito.

Recordemos que em todo o mandato presidencial não se revisaram os contratos-lei que estavam dentro de suas faculdades, a renegociação desses contratos e, sobretudo o fato de que o presidente convoque um executivo a um administrador. Nunca se realizou uma convocatória à militância ou à secretaria-geral do partido. Foi feito um convite pessoal à colega Portalatino na Saúde [Kelly Roxana Portalatino Ávalos, em outubro de 2021] e à minha pessoa na pasta da Cultura. Bom, consultou-se as bases do partido e aceitaram que nós assumíssemos tais responsabilidades. O que causou estranheza é que a decisão do presidente tenha sido bastante unilateral, sem consultar o seu Conselho de Ministros minimamente para poder realizar essa mensagem à Nação.

Pedro Castillo e Keiko Fujimori se confrontaram em 2º turno da eleição peruana. Foto: Sebastian Castaneda/Pool/AFP

CC: Qual sua análise sobre o perfil ideológico de Dina Boluarte?

Silvana Robles: A senhora Boluarte, quando chega à função como vice-presidenta do Peru, mostra uma alienação que a levara ao cargo. Ela sempre foi alheia às decisões partidárias e nunca mostrou inclinação pelo partido. Muito pelo contrário, ela teve um trabalho bastante indistinto do eixo programático. Nunca acudiu à bancada para fazer acordos em temas que deveriam ser de prioridade no seu mandato. Ela assumiu a pasta do Ministério da Inclusão Social, muito importante no Peru, e lamentavelmente jamais tivemos uma aproximação. Isso causou inquietação dentro do Perú Libre. Bem, agora vemos um gabinete bastante tecnocrata e sem consenso das forças de esquerda. Considero que, se não fosse assim, a realidade teria sido diferente, e esta sucessão não causaria tanta agitação.

CC: Quando Castillo anunciou o “regime de exceção”, disse que o Congresso só tinha uma agenda: a sua destituição. Ele estava correto?

SR: Efetivamente. Até o dia de hoje, o Congresso, de direita, pretende dizer que essa crise se origina em 7 de dezembro, por conta da mensagem à Nação que o presidente Castillo fez. Eu assevero que isso é totalmente falso. Essa crise política vem se desenrolando desde 2016, quando a senhora Keiko Fujimori se apresenta como candidata e são cinco presidentes em cinco anos. Há 18 meses, o Legislativo, com um afã golpista, começou com o cerceamento ao Executivo. Lhe tiraram prerrogativas do Executivo e castraram o direito da população peruana ao referendo para uma Assembleia Constituinte. Então, tudo isso tem inflamado a população. Inclusive, muito antes de 28 de junho e da assunção do mandato do presidente Castillo, recordemos que a ultradireita peruana viajou até Washington para pedir à OEA que desconhecesse as eleições gerais, legítimas e legais. Então, com esse assédio, rompeu-se o equilíbrio de poderes no Peru.

CC: A senhora crê que o Congresso teria os votos necessários para a moção de vacância, se Castillo não tivesse tomado a decisão do regime de exceção? E por que a senhora se absteve?

SR: Em referência à moção, que foi apresentada muito antes e para a qual estava convocada a legítima defesa, eu creio que não tinham os votos. Não havia os votos necessários para que se desse a vacância do presidente mediante aquela moção. Eu creio que houve um erro de cálculo do presidente. Se esse foi o motivo para dissolver o Congresso, e foi uma decisão muito ruim, eu creio ele que não teve um bom cálculo.

Com referência à segunda pergunta, eu estava em uma postura de ministra de Estado. Definitivamente, sempre fui respeitosa à ordem democrática e à Constituição Política, pelas quais havíamos sido eleitos. Ante a violação da ordem democrática, sim, correspondia um voto a favor, como foi a maioria. Eu esclareci na hora. Mas, bem, a minha abstenção, dentro da votação, foi porque sou consciente de que se violou a Constituição na forma em que se deu a dissolução do Congresso, mas tampouco eu poderia jogar em parceria com a ultradireita peruana, que todo o tempo, nesses 18 meses, tem buscado as moções de vacância e não poderiam alcançar o seu objetivo tão facilmente.

Lamentavelmente, o presidente Castillo havia colocado a sua cabeça em uma bandeja de prata e estava entregando-a à direita peruana. Foi um momento bastante tenso. Muitos colegas não tinham sinal, nem sequer tinham visto a mensagem à Nação e não sabiam o que estava se passando. Então, houve também uma violação à Constituição e ao regulamento do Congresso por parte da Mesa Diretora, o que, por consequência, induziu todo o plenário ao erro.

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