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A política externa de Lula está em sintonia com a nova ordem global

Dúvidas. Qual é o problema de ter uma moeda própria para as relações comerciais com a China ou de propor um acordo de paz com responsabilidade compartilhada? – Imagem: Ricardo Stuckert/PR e Anatolii Stepanov/AFP
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Estamos à beira da guerra com China e Rússia em questões que criamos parcialmente, sem nenhum conceito de como isso vai acabar ou a que deve levar… Parece que Biden não tem ideia sobre o que é equilíbrio, pois primeiro você tem de admitir a legitimidade de sua contraparte.
Henry Kissinger

As declarações de Lula durante a visita à China e seu encontro, em Brasília, com o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, provocaram a ira da mídia corporativa no Brasil. Em seus editoriais, O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo se insurgiram contra as falas do presidente. De modo geral, as críticas se voltaram, sobretudo, ao suposto alinhamento do Brasil ao eixo China-Rússia e, consequentemente, ao distanciamento dos EUA.

Para além dos ditos e não ditos que se alternam nas manchetes dos jornais, independentemente da escolha das palavras utilizadas por Lula, o fato é que a posição diplomática brasileira está em sintonia com a maioria das nações no mundo. Ou seja, o Brasil repudia a invasão da Ucrânia pela Rússia, tendo se manifestado sobre isso na ONU, mas é contrária à forma pela qual os EUA e aliados têm se posicionado diante do conflito, seja pela ajuda militar da Otan, seja pela aplicação de sanções econômicas, ou ainda devido à ausência de acordos de paz.

De acordo com a recente reportagem da revista britânica The Economist, em torno de 15% da população do planeta vive em países que condenaram Moscou. Essas nações, por sua vez, são responsáveis por 60% do PIB global. Já os Estados que evitam se alinhar automaticamente a um dos lados do conflito abrigam cerca de 80% da população global, mas representam somente por volta de 35% do PIB mundial. Ou seja, os países com maior vulnerabilidade econômica e mais impactados pelas consequências da guerra são exatamente aqueles que evitam ter uma posição rígida em relação ao conflito. Anseiam por um cessar-fogo.

Como resolver esse impasse na ordem global? O poder bélico e econômico das potências ocidentais não tem sido capaz de atrair apoio ao redor do mundo.

Segundo relatos na mídia norte-americana, especialistas em política externa do establishment elogiam publicamente a resposta de Biden à invasão da Ucrânia pela Rússia, mas privadamente apontam como grave problema a falta de uma estratégia de longo prazo. Além disso, estão preocupados em como conciliar os interesses dos EUA, limitados pelas realidades militar e política, com o desejo de Kiev de expulsar a Rússia de todo o território ucraniano, incluindo a Crimeia.

Documentos vazados da Agência de Inteligência do Departamento de Defesa dos EUA avaliam que a guerra pode continuar produzindo mortes até 2024, sem que nenhum dos lados saia vitorioso. Pior, ambos se recusam a negociar o fim do conflito, mesmo que a Ucrânia consiga reconquistar território significativo. Os papéis foram revelados pelo Washington Post.

Hoje, os países do sul global evitam ao máximo alianças automáticas com as potências. Por que deveríamos abraçar cegamente os EUA?

Talvez, quando o general Mark ­Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, declarou meses atrás que esta guerra não seria resolvida no campo de batalha, e sim na mesa de negociações, ele estivesse antecipando um consenso cada vez maior no plano da diplomacia global. Moscou e Kiev teriam de chegar a um “reconhecimento mútuo” de que ambos terão de ceder. Por que, então, o espanto quando Lula declara que a guerra deve ser vista como responsabilidade compartilhada? Alguém conhece algum acordo de paz efetivo em que apenas uma das partes é considerada responsável?

Apesar das pressões dos EUA aos seus “fiéis aliados”, Arábia Saudita e Emirados Árabes intensificariam o bom relacionamento com a China e a Rússia após a guerra. Países que têm os maiores reservatórios de petróleo do mundo tornaram-se compradores dos produtos russos com descontos, para fins de consumo e refino, e passaram a exportar seus próprios barris de petróleo a preços de mercado, aumentando seus lucros, informa o Wall Street Journal.

Será que Lula foi leviano ao levantar a possibilidade de ter moeda própria para as relações comerciais com a China? Parece que não, assim como não foi o presidente francês, Emmanuel Macron, ao alertar para os riscos da extrema dependência do dólar. É fato que a hegemonia do dólar no comércio global e nos fluxos de investimento vem enfrentando sérios desafios. Em 2022, a queda da moeda como reserva global de valor ocorreu a uma velocidade dez vezes superior à observada ao longo das últimas duas décadas. Se, em 2002, quando teve início o primeiro governo Lula, o dólar representava cerca de 73% do total das reservas internacionais, atualmente a moe­da norte-americana corresponde a 58%.

Muitos críticos do governo Lula têm reiterado o argumento de que o mundo mudou nesses 20 anos e, portanto, não seria conveniente reeditar a doutrina de antes. Ora, além de esses críticos confundirem princípios, que podem ser sempre os mesmos, com as circunstâncias que modelam sua aplicação, as mudanças na ordem global dão ainda mais vigor à doutrina. Creio não haver muita dúvida de que caminhamos inexoravelmente para um mundo cada vez mais multipolar. Como em qualquer transição da ordem internacional, há, porém, uma série de incertezas nas disputas geopolíticas, intensificadas com a guerra da Ucrânia.

Nesse sentido, a grande maioria dos paí­ses do Sul global enxerga como alternativa evitar ao máximo alianças automáticas com as potências sem qualquer tipo de vantagem imediata. Além disso, há aqueles que, como Lula, reivindicam neutralidade nos conflitos, mas apostam nas tendências de mudanças que nos indicam a constituição de uma ordem global cada vez menos dominada pelos EUA. A política externa de Lula está, portanto, perfeitamente sintonizada e articulada com esta nova ordem global que se desenha. •


*Professor livre-docente da PUC de São Paulo e do programa de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP). É ainda coordenador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais e pesquisador do Instituto de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA.

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mundo multipolar’

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